Na última postagem do blog, eu me permiti fazer algumas
reflexões pessoais e digressões acerca da entrada da gigante AB-InBev no
mercado nacional de cervejas artesanais em 2015. Essa presença da megacompanhia
se efetivou no ano passado por meio da compra de duas importantes
microcervejarias brasileiras (a Wäls e a Colorado) e por meio do lançamento de
novas cervejas com “cara de artesanal” nos portfolios das marcas da AB-InBev,
com estilos diferentes da loira gelada de sempre. A polêmica foi grande, tanto
na época da notícia quanto na repercussão do texto, mas não é disso que quero
falar hoje: agora, o que me interessa é saber quão bons são esses novos
produtos apresentados pela gigante cervejeira. A seguir, farei uma degustação
atenta de todas as cervejas da nova linha da Bohemia e da linha Brahma Extra.
Convido meu leitor a fazer o mesmo e tirar suas próprias conclusões.
A nova Bohemia: uma velha tradição repaginada
As novas Bohemias:
artesanais ou “artesanescas”?
Fonte: www.bohemia.com.br |
No início de 2015, a Bohemia aportou no mercado artesanal
com três novos rótulos: a Bela Rosa,
a Caá-Yari e a JabutIPA. Mas a verdade é que essa não é a primeira vez que a
Bohemia lança cervejas em estilos diferentes da “pilsen” de sempre. Em 2005,
quando eu ainda nem ligava muito para essa coisa de diversidade cervejeira, a
Bohemia lançou no mercado uma cerveja envasada em uma garrafa imitando
cerâmica, com rótulo de ares medievais e monásticos. Seguia o estilo Belgian
blond ale, com receita claramente inspirada pela Leffe Blonde (que, à época, já pertencia à InBev), e chamava-se Bohemia Confraria. Foi uma das portas
de entrada de muita gente (eu incluído) para o universo da diversidade
cervejeira. Não era uma má cerveja. Era uma blond bem doce, com mais presença
de malte e frutas em compota do que de especiarias, um pouco enjoativa, mas
saborosa. Depois, a Bohemia repaginou a Confraria e a relançou em uma linha de
cervejas que incluía ainda a Bohemia Escura (uma Schwarzbier muito leve) e a
Bohemia Weiss (uma Weissbier de estilo alemão que cumpria bem seu papel por um
preço módico). Depois vieram ainda a Bohemia Oaken, receita bem fraquinha
maturada com chips de carvalho, e a Bohemia Imperial, uma receita pretensamente histórica com ares de Vienna lager.
Ainda era uma linha pouco antenada com o que estava acontecendo no mercado de
cervejas artesanais, dando a impressão de um produto da década passada.
Com o tempo, e com o crescimento do mercado artesanal, a
Bohemia decidiu repensar sua estratégia para o segmento e descontinuou essa
antiga linha, deixando no mercado apenas a clássica Bohemia Pilsen. Isso foi ainda em 2014, salvo engano. No seu lugar,
no começo de 2015, entrou a nova linha da Bohemia, com uma identidade visual e
conceitual muito mais próxima daquilo que o mercado de cervejas artesanais veio
a se tornar nos últimos anos. Os nomes, como é comum em muitas
microcervejarias, remetem a ingredientes ou elementos culturais brasileiros. A
identidade visual é moderna, colorida e descontraída, bem no padrão atual das
micros. As receitas seguem os seguintes estilos: a Caá-Yari é uma Belgian blond ale, a Bela Rosa é uma witbier e a JabutIPA
é uma IPA de perfil inglês. Com a exceção talvez da blond (estilo que já é
figurinha fácil no portfolio da AB-InBev), são todos estilos que estão em evidência
no mercado cervejeiro nos últimos dois anos. Seguindo um modismo recente das
cervejarias nacionais, toda a linha emprega ingredientes tipicamente
brasileiros na receita: a Caá-Yari
leva erva mate; a JabutIPA é
produzida com jabuticaba e, por fim, a Bela Rosa leva pimenta-rosa e limão. Na verdade, todas as cervejas são
produzidas com extratos de seus
respectivos ingredientes, para facilitar a padronização do produto, mas o
resultado, do ponto de vista do marketing, é o mesmo. Em resumo: a Bohemia fez
sua lição de casa e mimetizou de forma mais ou menos fiel aquilo que estava
acontecendo nas microcervejarias brasileiras. Lançou uma linha de cervejas
artesanais aparentemente crível. Vejamos como essa credibilidade se sai no
copo.
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No geral, a linha toda me dá a impressão de que a Bohemia
está fazendo um grande esforço para se adaptar aos produtos do mercado
brasileiro de cervejas artesanais. Não há como negar que essas três cervejas
apresentam uma identidade “artesanal” bem mais definida do que todos os antigos
rótulos “diferentes” da marca. Há uma convergência para uma identidade visual
mais moderna, mais próxima das usadas pelas microcervejarias – com rótulos
bastante agradáveis e bonitos, por sinal. Há também um trabalho com as receitas
que, excetuando-se o irritante uso das essências, também está afinado com o
esforço dos nossos microcervejeiros para usar ingredientes nacionais. As
receitas, aliás, têm sofrido alguns ajustes sob a responsabilidade de José
Felipe Carneiro, cervejeiro responsável pela Wäls. Esse é um fator bastante
interessante da compra das microcervejarias pela AB-InBev: em adição às marcas
e ao portofolio de cervejas artesanais das micros, a AB-InBev está se
beneficiando também da injeção de know-how e expertise de microcervejeiros
brasileiros consagrados.
Do meu ponto de vista, a Caá-Yari é a mais interessante e bem-executada cerveja dessa nova
linha fixa da Bohemia que encontramos nas prateleiras dos supermercados. A
receita-base é inteligente e funciona bem, e a adição da erva-mate agrega
positivamente ao conjunto. Não é uma cerveja marcante nem especialmente rica e
saborosa, mas não decepciona. As outras duas, ao meu ver, têm problemas
estruturais mais ou menos sérios. A Bela Rosa tem boa sensação na boca, mas as essências de pimenta-rosa e limão
mascaram suas qualidades e adicionam aromas artificiais, sem a complexidade de
especiarias que se espera de uma boa witbier. Uma pena. Já ouvi relatos de que
o chope, quando foi lançado, era significativamente superior a essa versão
engarrafada, mas não tive a oportunidade de provar. Já a JabutIPA, a meu ver, não chega nem a ter muitas qualidades além de
um amargor sólido para o padrão das macrocervejarias. Ela não tem nem o frescor
aromático de uma IPA, nem a complexidade frutada de uma boa fruit beer, ficando
incomodamente fora de estilo e proposta.
Afinal de contas, como avaliar o custo-benefício dessa nova
linha mezzo-artisanale da Bohemia? O preço das três gira atualmente em torno
dos R$ 12 pela garrafa de 600ml, ou R$ 6,50 pela caçulinha de 300ml. Isso as
situa numa faixa equivalente ou um pouco abaixo das artesanais regionais mais
baratas, com distribuição em supermercados – aqui em São Paulo, penso, por
exemplo, nas cervejas da Therezópolis, da Baden Baden, da Burgman ou da Dama
Bier, relativamente fáceis de encontrar. O problema é que as Bohemias não convencem
como boas cervejas diante dessas concorrentes diretas. Não são boas o bastante
para substituírem uma artesanal “de verdade”, mas também não são baratas o
bastante para que essa diferença de qualidade seja irrelevante. Para quem sabe
o que está comprando, vale mais a pena pagar 20%, até 50% a mais por uma
cerveja de qualidade significativamente superior. Para falar a verdade, há até opções
melhores e mais baratas, como algumas
Therezópolis ou as Eisenbahn. Mas é preciso levar em conta que eu não faço
parte do público-alvo dessas cervejas. Aliás, você que está lendo esse blog
provavelmente também não faz. Se eu entendo a estratégia da AB-InBev, essa nova
linha está voltada para o “curioso hesitante”: aquele que tem vontade de
experimentar cervejas artesanais, mas não sabe o que comprar e fica perdido
diante da diversidade, sem saber que microcervejaria vale a pena o
investimento.
Duas “outras” Bohemias: correndo por fora
Em adição a essas três cervejas de ampla distribuição, a
Bohemia também lançou, em 2015, dois
outros rótulos de distribuição mais restrita, com uma pegada um pouco diferente
dessa linha “básica”. Parece-me que elas têm um caráter experimental, e talvez
a Bohemia ainda esteja estudando a possibilidade de elas entrarem no portfolio
permanente. Ambas, aliás, parecem ter sido feitas com participação mais
intensiva da Wäls no processo.
Fonte: www.brejas.com.br |
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A nova Brahma Extra
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A Brahma Extra Lager
é a antiga Brahma Extra repaginada. É uma premium American lager puro-malte que
já não é mais anunciada como “pilsen”, mas sim como “lager” – atendendo a uma
antiga demanda de setores do público consumidor de cervejas artesanais, que
preferia ver a designação “pilsner” como exclusiva dos estilos tradicionais
europeus (as pilsner alemãs e boêmias, bem mais amargas que as nossas “pilsen”
comuns). É uma American lager de doçura acentuada, não tão seca quanto outras
do estilo e quase sem amargor, a fim de ressaltar o corpo e o sabor do malte de
cevada. Na taça, mostra-se amarela clara e transparente, com creme de
desempenho mediano. No aroma, são os aromas doces do malte que predominam,
lembrando pão branco, com uma presença frutada lembrando banana ao fundo e o
lúpulo suave, de perfil floral, sem grandes surpresas. Os aromas sulfúricos do
malte de cevada, lembrando flocos de milho e legumes cozidos, sobressaem
incomodamente no conjunto. A doçura predomina de cabo a rabo, com uma suave acidez
inicial e amargor praticamente nulo, o que a torna um pouco enjoativa. O corpo
é leve para mediano, encorpado se considerarmos o estilo, levemente cremoso e
com alta carbonatação. No conjunto, uma premium American lager sem destaques,
com sabor de malte sólido, mas um pouco doce para o estilo e quase sem amargor
para equilibrar. Se a nova Brahma Extra se limitasse a ela, não haveria nenhuma
novidade relevante. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
A coisa fica um pouco mais interessante nos dois outros
rótulos da linha. A Brahma Extra Red Lager é uma amber lager puro-malte leve, de perfil suave e baixa lupulagem,
algo como uma releitura da premium American lager com perfil de malte levemente
tostado. No meu copo, ela mostrou uma coloração âmbar escura, mas que não chega
ao vermelho, transparente e com bom creme. O aroma entrega o malte tostado em primeiro
plano, com remissões a castanhas e caramelo e, novamente, uma forte e incômoda
presença de compostos sulfúricos de malte lembrando flocos de milho e legumes
cozidos. Em segundo plano, maçãs vermelhas e gerânios. A combinação
tostado-maçã-gerânios lembra um pouco o perfil aromático da velha e saudosa
Kaiser Bock, da qual ficamos órfãos depois que a Heineken decidiu descontinuar
essa sazonal de inverno da Kaiser. Na boca, porém, ela tem muito menos
intensidade do que a extinta bock: a doçura predomina, com equilibrada acidez
inicial e um final persistente, adocicado, um pouco fechado mas agradável, com
retrogosto de castanhas e maçãs. O corpo é leve, seco, crocante, um tanto mineral,
com forte carbonatação. Não chega a ter a drinkability fácil e descomplicada de
uma “pilsen”, mas já permite goles relativamente largos. No conjunto, é uma
cerveja muito honesta, que se apresenta como se fosse uma American lager um
pouco mais marcante e mais saborosa, válida como variação para o dia a dia. (Clique
aqui para ver a avaliação completa)
A mais interessante da linha, a meu ver, é a Brahma Extra Weiss. Encomendada pelo
e-commerce da AB-InBev (pois estou com dificuldade de encontrar este rótulo
específico nas gôndolas dos supermercados), chegou à minha casa fresquinha (com
menos de um mês desde o envase), como deve ser, e me agradou bastante. Na taça,
ostenta uma coloração amarela clara, com turbidez mediana, até tímida para o
estilo, mas bem perceptível (ela não é filtrada) e creme de volume mediano – de
novo, considerando o nababesco padrão do estilo – mas boa persistência. Vou
confessar que, pela repercussão negativa que ela teve nas redes sociais, eu
levei a taça ao nariz com desconfiança, pensando que seria uma “Weiss-pega-trouxa”,
sem nenhuma característica do estilo. Não é. Pelo contrário, ela mostrou aromas
afinados e bem-equilibrados, com boa tipicidade: banana em primeiro plano,
cravo bem perceptível, um tiquinho de maçã vermelha. O malte aparece com pão
branco, o aroma de fermento é bem evidente e ela ainda mostra notas secundárias
comuns no estilo: um toque cítrico lembrando laranja e um notável perfume de
rosas. Complexidade aromática acima da expectativa. Na boca, ela se mostra um
pouco leve em excesso: a doçura predomina e a acidez deveria ser um pouco mais
elevada para equilibrá-la melhor. O corpo é leve, um pouco aguado,
decepcionante para o estilo, presumivelmente para elevar a drinkability.
Acredito que o uso de cereais não-maltados na receita explique, em parte, o
pouco corpo. Mas, no conjunto, é uma Weiss honesta e interessante desde que
você aceite que se trata de uma “roupagem atenuada” do estilo. O destaque fica
para a boa complexidade aromática, melhor até do que muita Weiss artesanal por
aí. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
O que é extraordinário nessa nova linha da Brahma Extra não
é o perfil sensorial marcante ou ousado. Pelo contrário, são cervejas de perfil
conservador para o público acostumado com as artesanais, com características
atenuadas para evitar rejeição da parte do grande público. O que realmente
chama a atenção é o preço a que chegaram ao mercado: R$ 2,80 da última vez que
chequei as prateleiras. Isso está abaixo do preço de muitas American lagers
premium do nosso mercado, como a Heineken. Com isso, a Brahma Extra se torna
uma opção viável para realmente substituir
a cerveja de todo dia com estilos diferentes. Com ela, hoje é possível beber
uma Weiss suave, mas saborosa e honesta, no lugar da pilsen de sempre. Eu
sempre tive uma preferência pessoal pela Bohemia Pilsen e pela Heineken para
encher a minha geladeira no dia a dia. A Brahma Extra entra definitivamente
para esse rol. E, como corolário, resta a reflexão de que são cervejas de
produção em larguíssima escala. Talvez seja a primeira vez, em décadas, que
teremos uma ale sendo bebida nesse volume no Brasil. Serão talvez centenas de
milhares de consumidores que nunca tinham bebida nada além da “loira gelada”.
Isso é algo novo.
Qual o balanço geral que fica dessas duas novas linhas da
AB-InBev? Retomando o que falei anteriormente, acho que a nova linha da Bohemia
tem um perfil bastante “conservador”, no sentido de que não apresenta nada
radicalmente diferente da forma como o mercado microcervejeiro já funciona no
Brasil. Aumentou apenas a escala, mas os parâmetros fundamentais do produto (receita,
preço, identidade e marketing) continuam mais ou menos parecidos com o que as
nossas micros já fazem. Do meu ponto de vista, o lançamento realmente
“revolucionário” de 2015 foi a Brahma Extra. Olhando com frieza, são cervejas menos
interessantes e marcantes do que as Bohemias, isso é verdade. Mas têm o mérito
de serem baratas num mercado ainda excessivamente elitizado. Elas permitem que
eu “saia da mesmice” no meu dia a dia e beba algo diferente da loira gelada de
sempre, sem comprometer meu orçamento. Ora, não era isso que os
microcervejeiros pregavam que nós fizéssemos, que buscássemos algo diferente das
cervejas “sem graça” da AB-InBev? Infelizmente, os preços comuns do mercado
coibiam essa prática, mesmo para quem é entusiasta. Paradoxalmente, quem está
nos oferecendo uma alternativa real é a própria AB-InBev.