terça-feira, 1 de março de 2016

As novas cervejas da AB-InBev

Na última postagem do blog, eu me permiti fazer algumas reflexões pessoais e digressões acerca da entrada da gigante AB-InBev no mercado nacional de cervejas artesanais em 2015. Essa presença da megacompanhia se efetivou no ano passado por meio da compra de duas importantes microcervejarias brasileiras (a Wäls e a Colorado) e por meio do lançamento de novas cervejas com “cara de artesanal” nos portfolios das marcas da AB-InBev, com estilos diferentes da loira gelada de sempre. A polêmica foi grande, tanto na época da notícia quanto na repercussão do texto, mas não é disso que quero falar hoje: agora, o que me interessa é saber quão bons são esses novos produtos apresentados pela gigante cervejeira. A seguir, farei uma degustação atenta de todas as cervejas da nova linha da Bohemia e da linha Brahma Extra. Convido meu leitor a fazer o mesmo e tirar suas próprias conclusões.

A nova Bohemia: uma velha tradição repaginada


As novas Bohemias: artesanais ou “artesanescas”?
Fonte: www.bohemia.com.br
No início de 2015, a Bohemia aportou no mercado artesanal com três novos rótulos: a Bela Rosa, a Caá-Yari e a JabutIPA. Mas a verdade é que essa não é a primeira vez que a Bohemia lança cervejas em estilos diferentes da “pilsen” de sempre. Em 2005, quando eu ainda nem ligava muito para essa coisa de diversidade cervejeira, a Bohemia lançou no mercado uma cerveja envasada em uma garrafa imitando cerâmica, com rótulo de ares medievais e monásticos. Seguia o estilo Belgian blond ale, com receita claramente inspirada pela Leffe Blonde (que, à época, já pertencia à InBev), e chamava-se Bohemia Confraria. Foi uma das portas de entrada de muita gente (eu incluído) para o universo da diversidade cervejeira. Não era uma má cerveja. Era uma blond bem doce, com mais presença de malte e frutas em compota do que de especiarias, um pouco enjoativa, mas saborosa. Depois, a Bohemia repaginou a Confraria e a relançou em uma linha de cervejas que incluía ainda a Bohemia Escura (uma Schwarzbier muito leve) e a Bohemia Weiss (uma Weissbier de estilo alemão que cumpria bem seu papel por um preço módico). Depois vieram ainda a Bohemia Oaken, receita bem fraquinha maturada com chips de carvalho, e a Bohemia Imperial, uma receita pretensamente histórica com ares de Vienna lager. Ainda era uma linha pouco antenada com o que estava acontecendo no mercado de cervejas artesanais, dando a impressão de um produto da década passada.

Com o tempo, e com o crescimento do mercado artesanal, a Bohemia decidiu repensar sua estratégia para o segmento e descontinuou essa antiga linha, deixando no mercado apenas a clássica Bohemia Pilsen. Isso foi ainda em 2014, salvo engano. No seu lugar, no começo de 2015, entrou a nova linha da Bohemia, com uma identidade visual e conceitual muito mais próxima daquilo que o mercado de cervejas artesanais veio a se tornar nos últimos anos. Os nomes, como é comum em muitas microcervejarias, remetem a ingredientes ou elementos culturais brasileiros. A identidade visual é moderna, colorida e descontraída, bem no padrão atual das micros. As receitas seguem os seguintes estilos: a Caá-Yari é uma Belgian blond ale, a Bela Rosa é uma witbier e a JabutIPA é uma IPA de perfil inglês. Com a exceção talvez da blond (estilo que já é figurinha fácil no portfolio da AB-InBev), são todos estilos que estão em evidência no mercado cervejeiro nos últimos dois anos. Seguindo um modismo recente das cervejarias nacionais, toda a linha emprega ingredientes tipicamente brasileiros na receita: a Caá-Yari leva erva mate; a JabutIPA é produzida com jabuticaba e, por fim, a Bela Rosa leva pimenta-rosa e limão. Na verdade, todas as cervejas são produzidas com extratos de seus respectivos ingredientes, para facilitar a padronização do produto, mas o resultado, do ponto de vista do marketing, é o mesmo. Em resumo: a Bohemia fez sua lição de casa e mimetizou de forma mais ou menos fiel aquilo que estava acontecendo nas microcervejarias brasileiras. Lançou uma linha de cervejas artesanais aparentemente crível. Vejamos como essa credibilidade se sai no copo.

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
A Bohemia Bela Rosa tem como base uma receita de witbier, a clássica cerveja de trigo belga, tradicionalmente temperada com sementes de coentro e raspas de laranja. Em adição a esses ingredientes, a Bela Rosa leva ainda extrato de limão e extrato de pimenta-rosa – fruto da aroeira, árvore nativa do Brasil. Foi a primeira que eu provei da linha, animado pelos bons relatos a respeito do lançamento do chope. Infelizmente, o desempenho da versão engarrafada não parece ter ficado à altura, embora ela não seja uma má cerveja. No copo, apresentou coloração amarela bem clarinha, com um matiz esverdeado, condizente com o estilo, mas com uma turbidez que me pareceu um pouco excessiva. Espuma de bom desempenho. No aroma, percebe-se com muita clareza a adição dos extratos da receita: a pimenta-rosa predomina de forma avassaladora, dando um toque extremamente picante ao aroma. Em segundo plano, um aroma forte, mas incomodamente artificial, de limão, lembrando capim-limão e desinfetante. Raspas de laranja são perceptíveis, mas as sementes de coentro ficaram bem apagadas. Aromas de fermento, aveia e rosas complementam o perfil aromático. Na boca ela entra docinha, depois mostra uma boa e refrescante acidez (seu ponto mais forte) e termina num final longo, com bom equilíbrio entre doce e ácido e aromas residuais de aveia, fermento e limão. Amargor muito sutil. O corpo é leve, talvez em excesso, com textura algo aguada e carbonatação muito vívida. No conjunto, o ponto positivo fica para o bom balanço entre doçura e acidez, que refresca, limpa o paladar e convida ao novo gole sem assustar o bebedor menos acostumado. O ponto mais fraco é o aroma, com uma sensação muito artificial e com protagonismo demasiado dos extratos de pimenta-rosa e limão. Não é uma má cerveja: tem personalidade, tem boa sensação na boca e boa evolução. Mas não é uma witbier que se destaque positivamente diante das melhores concorrentes do estilo. Para o meu gosto, não foi nem minha preferida, nem a que mais desagradou. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
A Bohemia JabutIPA é uma IPA de perfil inglês, produzida com adição de extrato de jabuticaba. Muitos consumidores saudaram de braços abertos esse rótulo como uma opção acessível de IPA num mercado em que há poucos exemplares populares de um estilo com fortíssima demanda. Mas o resultado acabou decepcionando que está acostumado com IPAs americanas de forte personalidade aromática. No copo, é a mais escura das três, com uma coloração alaranjada profunda e translúcida, pendendo ao cobre, e com creme de baixo desempenho. O aroma é inusitadamente fora de padrão para o estilo: no lugar dos lúpulos como protagonistas, a JabutIPA traz as sensações frutadas: um forte aroma esterificado de abacaxi em calda e presença expressiva de frutas vermelhas (que eu imagino serem advindas do extrato de jabuticaba). Em segundo plano vêm o malte, com notas de caramelo e uma sugestão de castanhas, e finalmente o lúpulo, possivelmente de variedade inglesa, trazendo grama molhada e rosas. Há um perceptível acento mineral no nariz. Infelizmente, o frescor do lúpulo fica muito aquém do esperado para o estilo. Na boca, ela entra medianamente doce e depois evolui para um amargor razoavelmente pesado, bem ousado até para um rótulo da Bohemia, culminando num final amargo, mineral e relativamente seco. O corpo é mediano para intenso, no padrão inglês do estilo, com textura mineral muito correta, mas com excesso de carbonatação. O aquecimento alcoólico e a adstringência são perceptíveis, diminuindo a drinkability. No conjunto, meu entendimento é o de que ela está completamente fora do estilo. O amargor é intenso e correto, mas o aroma é muito descaracterizado, dominado pelas notas frutadas e quase sem frescor de lúpulo. O extrato de jabuticaba acaba um pouco “perdido” no meio da receita, unidimensional, sem aquela gostosa complexidade de sensações em camadas da fruta fresca (doce, frutas vermelhas, terroso, fresco, levemente adstringente). No conjunto, ela parece mais uma Belgian pale ale mais amarga do que uma IPA, para ser sincero. É uma receita em que a sigla “IPA” significa, simplesmente, que se trata de uma cerveja amarga.  Das três cervejas da nova linha, foi a que menos me agradou. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: degustaterapia.blogspot.com
Por fim, a Bohemia Caá-Yari é uma leve e bem-resolvida Belgian blond ale com adição de extrato de erva mate. No copo, uma bonita coloração alaranjada profunda, brilhante, mas com espuma de baixo desempenho. O aroma é relativamente complexo, em camadas: em primeiro lugar, sente-se um jogo equilibrado entre ésteres (compota de abacaxi bem marcante, um tiquinho de banana) e cravo, remetendo imediatamente ao perfil aromático de levedura da Leffe Blonde. Em segundo plano, mel, rosas e um toque de ervas (orégano?) do lúpulo. Uma sensação metálica prejudicou o frescor do aroma. Na boca ela entra surpreendentemente leve e ácida, um tiquinho salgada, bem apetitosa, tornando-se depois mais rica e doce e finalizando com um final adocicado com leve amargor secundário, em que o malte é ressaltado pelo rico e macio sabor da erva mate. O corpo é leve para mediano, bem seco em comparação com outros exemplares do estilo, com textura frisante e crocante e carbonatação expressiva. O aquecimento é pouco perceptível, o que, junto com o corpo leve e a apetitosa acidez, eleva muito a drinkability. No conjunto, é uma receita inteligente. Parece ser fermentada com a mesma cepa de leveduras da Leffe Blonde, apresentando o mesmo perfil típico de abacaxi-e-cravo. Contudo, seu corpo é bem mais leve e crocante, ela é mais seca e possui acidez mais expressiva, junto com uma sugestão salgada, o que lhe dá uma gostosa sensação de aperitivo. É menos complexa nos maltes, o que a faz perder em intensidade e em riqueza de paladar em comparação com outras do estilo, mas é mais refrescante e apetitosa. A erva mate é sutil, bem integrada à receita, e só ajuda a reforçar as sensações de malte. Foi minha preferida dentre essas três novas receitas da Bohemia que chegaram aos supermercados. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

No geral, a linha toda me dá a impressão de que a Bohemia está fazendo um grande esforço para se adaptar aos produtos do mercado brasileiro de cervejas artesanais. Não há como negar que essas três cervejas apresentam uma identidade “artesanal” bem mais definida do que todos os antigos rótulos “diferentes” da marca. Há uma convergência para uma identidade visual mais moderna, mais próxima das usadas pelas microcervejarias – com rótulos bastante agradáveis e bonitos, por sinal. Há também um trabalho com as receitas que, excetuando-se o irritante uso das essências, também está afinado com o esforço dos nossos microcervejeiros para usar ingredientes nacionais. As receitas, aliás, têm sofrido alguns ajustes sob a responsabilidade de José Felipe Carneiro, cervejeiro responsável pela Wäls. Esse é um fator bastante interessante da compra das microcervejarias pela AB-InBev: em adição às marcas e ao portofolio de cervejas artesanais das micros, a AB-InBev está se beneficiando também da injeção de know-how e expertise de microcervejeiros brasileiros consagrados.

Do meu ponto de vista, a Caá-Yari é a mais interessante e bem-executada cerveja dessa nova linha fixa da Bohemia que encontramos nas prateleiras dos supermercados. A receita-base é inteligente e funciona bem, e a adição da erva-mate agrega positivamente ao conjunto. Não é uma cerveja marcante nem especialmente rica e saborosa, mas não decepciona. As outras duas, ao meu ver, têm problemas estruturais mais ou menos sérios. A Bela Rosa tem boa sensação na boca, mas as essências de pimenta-rosa e limão mascaram suas qualidades e adicionam aromas artificiais, sem a complexidade de especiarias que se espera de uma boa witbier. Uma pena. Já ouvi relatos de que o chope, quando foi lançado, era significativamente superior a essa versão engarrafada, mas não tive a oportunidade de provar. Já a JabutIPA, a meu ver, não chega nem a ter muitas qualidades além de um amargor sólido para o padrão das macrocervejarias. Ela não tem nem o frescor aromático de uma IPA, nem a complexidade frutada de uma boa fruit beer, ficando incomodamente fora de estilo e proposta.

Afinal de contas, como avaliar o custo-benefício dessa nova linha mezzo-artisanale da Bohemia? O preço das três gira atualmente em torno dos R$ 12 pela garrafa de 600ml, ou R$ 6,50 pela caçulinha de 300ml. Isso as situa numa faixa equivalente ou um pouco abaixo das artesanais regionais mais baratas, com distribuição em supermercados – aqui em São Paulo, penso, por exemplo, nas cervejas da Therezópolis, da Baden Baden, da Burgman ou da Dama Bier, relativamente fáceis de encontrar. O problema é que as Bohemias não convencem como boas cervejas diante dessas concorrentes diretas. Não são boas o bastante para substituírem uma artesanal “de verdade”, mas também não são baratas o bastante para que essa diferença de qualidade seja irrelevante. Para quem sabe o que está comprando, vale mais a pena pagar 20%, até 50% a mais por uma cerveja de qualidade significativamente superior. Para falar a verdade, há até opções melhores e mais baratas, como algumas Therezópolis ou as Eisenbahn. Mas é preciso levar em conta que eu não faço parte do público-alvo dessas cervejas. Aliás, você que está lendo esse blog provavelmente também não faz. Se eu entendo a estratégia da AB-InBev, essa nova linha está voltada para o “curioso hesitante”: aquele que tem vontade de experimentar cervejas artesanais, mas não sabe o que comprar e fica perdido diante da diversidade, sem saber que microcervejaria vale a pena o investimento.

Duas “outras” Bohemias: correndo por fora

Em adição a essas três cervejas de ampla distribuição, a Bohemia também lançou, em  2015, dois outros rótulos de distribuição mais restrita, com uma pegada um pouco diferente dessa linha “básica”. Parece-me que elas têm um caráter experimental, e talvez a Bohemia ainda esteja estudando a possibilidade de elas entrarem no portfolio permanente. Ambas, aliás, parecem ter sido feitas com participação mais intensiva da Wäls no processo.

Fonte: www.brejas.com.br
A primeira delas é a Bohemia Oito e Um Session Stout, uma dry stout produzida com adição de extratos de laranja e hortelã, além de flocos de aveia. Ressalte-se, ainda, o emprego de extrato de lúpulo (no lugar dos tradicionais pellets de lúpulo) na receita: a Bohemia está trilhando um caminho definido de padronização por meio do uso de extratos. O termo “session stout” refere-se ao fato de que a cerveja possui teor alcoólico relativamente baixo (4%) e foi pensada como uma cerveja para consumo em quantidade, mas, ao contrário do que fica sugerido, isso não significa que seja uma versão menos alcoólica de uma stout: na verdade, ela fica dentro da faixa de ABV tradicional do estilo dry stout. O nome “Oito e um” é uma referência ao famoso chocolate inglês com menta, chamado After Eight, pois a cerveja busca emular o mesmo perfil sensorial, combinando torrado (chocolate) e refrescante (laranja e hortelã). O resultado, para ser sincero, é surpreendentemente bem resolvido e agradável. Na taça, ela apresenta coloração marrom bem escura, mas não chega a ser totalmente preta, encimada com um creme de baixo volume e persistência apenas mediana. O aroma é equilibrado, complexo e vívido: o perfil torrado de malte é macio e rico (com chocolate, café de coador e casca de pão torrada em equilíbrio) e a laranja faz um contraponto cítrico preciso. Em segundo plano, hortelã e mentolado aparecem sem roubar a cena. O lúpulo, de perfil inglês, é deliciosamente presente, com notas apimentadas, de frutas vermelhas frescas e toque de limão. Circundando tudo, uma presença mineral definida. Na boca, ela entra com uma doçura muito breve que logo é sobrepujada por um amargor mineral e seco, que se prolonga no final persistente, como deve ser. O corpo fica entre leve e mediano, muito macio e acetinado, mas não pesado o suficiente para diminuir a drinkability, com uma sensação mineral muito inglesa. No conjunto, uma bela dry stout com a adição de uma “alegria” cítrica e mentolada. O perfil torrado é rico e profundo, os extratos aparecem bem integrados ao conjunto, sem sensação de artificialidade, e os lúpulos são uma surpresa inesperada e bem-vinda. O corpo é mineral e macio na medida, com pegada bem inglesa. Essa é a melhor cerveja que já provei da Bohemia até hoje. Poderia destronar a Guinness no mercado se fosse apresentada como concorrente direta com um trabalho bem feito de marketing. Como curiosidade, é interessante apontar que, embora o rótulo apresente apenas a marca Bohemia, a cerveja foi produzida na fábrica da Wäls. Na faixa dos R$ 12 pela garrafa de 600ml, é uma compra que vale a pena. Espero que entre na linha permanente e seja distribuída em supermercados como as demais. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: www.instafotom.net
Por fim, em 2015 a Bohemia também lançou sua primeira cerveja colaborativa, com a microcervejaria fluminense Therezópolis: a Bohemia/Therezópolis Tripel Travessia Petrópolis-Teresópolis. O nome alude a uma desafiadora trilha que liga as cidades de Petrópolis (sede da Bohemia) e Teresópolis (onde se localiza a fábrica da Therezópolis). O estilo escolhido foi a tripel de abadia belga, e a receita ficou a encargo de José Felipe Carneiro, da Wäls/Bohemia, e Gabriel di Martino, da Therezópolis – em cuja fábrica a cerveja foi produzida. Sinceramente, fiquei um pouco na dúvida a respeito da receita. A divulgação nas redes sociais sugeria que a cerveja seria produzida com ingredientes típicos da região, como casca de mexerica ponkan e folhas da ponkan. Além disso, a receita empregaria trigo e aveia defumados com folhas de ponkan. Contudo, o rótulo indica apenas “maltes” (sem especificar quais e sem fazer alusão à defumação), “essência natural de ponkan” e “essência natural de coentro”. Na degustação, a cerveja decepcionou bastante. Pela expertise da Wäls em estilos belgas, pelo preço elevado (na faixa dos R$ 30) e pela receita, eu esperava algo muito mais ousado e bem executado. Mas ela acabou se mostrando unidimensional e enjoativa, para o meu paladar. Na taça, verteu um líquido alaranjado profundo e levemente turvo, com enorme creme branco. No aroma, uma avalanche de mel e geleia de laranja, com muita compota de abacaxi e um toque de rosas. Todo o restante ficou encoberto sob o caminhão de doçura e laranja. Lembra um xarope de frutas amarelas, sem complexidade. Se é que há mesmo um caráter de defumação, ele fica mascarado sob a doçura frutada. Na boca, a doçura é pesada e predomina do início ao fim, sem amargor ou acidez suficientes para equilibrar. O corpo é intenso e agradável, talvez o único ponto forte da degustação. O resultado geral é uma cerveja desequilibrada, de baixo drinkability e unidimensional, que não faz jus nem à receita, nem à linha belga da Wäls. Por elevados R$ 30 pela garrafa de 750ml, é a pior compra que já fiz de todo o portfolio da Bohemia. Se a receita não for dramaticamente aprimorada, não vejo muita viabilidade para este rótulo. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A nova Brahma Extra

Fonte: www.capitalgourmet.com.br
Mas não foi só com a Bohemia ou com as aquisições que a AB-InBev atacou o mercado das cervejas artesanais. Paradoxalmente, a iniciativa mais agressiva e impactante da megacervejaria nesse quesito talvez tenha sido justamente aquela que teve menor visibilidade e atraiu menos comentários da comunidade cervejeira: a reformulação da Brahma Extra. Até meados de 2015, a Brahma Extra era uma premium American lager produzida com cereais não-maltados, que não trazia grande diferencial num mercado já saturado de produtos semelhantes. Na segunda metade do ano passado, a AB-InBev transformou a Brahma Extra em uma linha com três rótulos diferentes, cada qual num estilo cervejeiro, e lançou as cervejas em supermercados a preços populares (o mesmo preço da antiga Brahma Extra, aliás), abaixo dos R$ 3 pela long neck.

A Brahma Extra Lager é a antiga Brahma Extra repaginada. É uma premium American lager puro-malte que já não é mais anunciada como “pilsen”, mas sim como “lager” – atendendo a uma antiga demanda de setores do público consumidor de cervejas artesanais, que preferia ver a designação “pilsner” como exclusiva dos estilos tradicionais europeus (as pilsner alemãs e boêmias, bem mais amargas que as nossas “pilsen” comuns). É uma American lager de doçura acentuada, não tão seca quanto outras do estilo e quase sem amargor, a fim de ressaltar o corpo e o sabor do malte de cevada. Na taça, mostra-se amarela clara e transparente, com creme de desempenho mediano. No aroma, são os aromas doces do malte que predominam, lembrando pão branco, com uma presença frutada lembrando banana ao fundo e o lúpulo suave, de perfil floral, sem grandes surpresas. Os aromas sulfúricos do malte de cevada, lembrando flocos de milho e legumes cozidos, sobressaem incomodamente no conjunto. A doçura predomina de cabo a rabo, com uma suave acidez inicial e amargor praticamente nulo, o que a torna um pouco enjoativa. O corpo é leve para mediano, encorpado se considerarmos o estilo, levemente cremoso e com alta carbonatação. No conjunto, uma premium American lager sem destaques, com sabor de malte sólido, mas um pouco doce para o estilo e quase sem amargor para equilibrar. Se a nova Brahma Extra se limitasse a ela, não haveria nenhuma novidade relevante. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A coisa fica um pouco mais interessante nos dois outros rótulos da linha. A Brahma Extra Red Lager é uma amber lager puro-malte leve, de perfil suave e baixa lupulagem, algo como uma releitura da premium American lager com perfil de malte levemente tostado. No meu copo, ela mostrou uma coloração âmbar escura, mas que não chega ao vermelho, transparente e com bom creme. O aroma entrega o malte tostado em primeiro plano, com remissões a castanhas e caramelo e, novamente, uma forte e incômoda presença de compostos sulfúricos de malte lembrando flocos de milho e legumes cozidos. Em segundo plano, maçãs vermelhas e gerânios. A combinação tostado-maçã-gerânios lembra um pouco o perfil aromático da velha e saudosa Kaiser Bock, da qual ficamos órfãos depois que a Heineken decidiu descontinuar essa sazonal de inverno da Kaiser. Na boca, porém, ela tem muito menos intensidade do que a extinta bock: a doçura predomina, com equilibrada acidez inicial e um final persistente, adocicado, um pouco fechado mas agradável, com retrogosto de castanhas e maçãs. O corpo é leve, seco, crocante, um tanto mineral, com forte carbonatação. Não chega a ter a drinkability fácil e descomplicada de uma “pilsen”, mas já permite goles relativamente largos. No conjunto, é uma cerveja muito honesta, que se apresenta como se fosse uma American lager um pouco mais marcante e mais saborosa, válida como variação para o dia a dia. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

A mais interessante da linha, a meu ver, é a Brahma Extra Weiss. Encomendada pelo e-commerce da AB-InBev (pois estou com dificuldade de encontrar este rótulo específico nas gôndolas dos supermercados), chegou à minha casa fresquinha (com menos de um mês desde o envase), como deve ser, e me agradou bastante. Na taça, ostenta uma coloração amarela clara, com turbidez mediana, até tímida para o estilo, mas bem perceptível (ela não é filtrada) e creme de volume mediano – de novo, considerando o nababesco padrão do estilo – mas boa persistência. Vou confessar que, pela repercussão negativa que ela teve nas redes sociais, eu levei a taça ao nariz com desconfiança, pensando que seria uma “Weiss-pega-trouxa”, sem nenhuma característica do estilo. Não é. Pelo contrário, ela mostrou aromas afinados e bem-equilibrados, com boa tipicidade: banana em primeiro plano, cravo bem perceptível, um tiquinho de maçã vermelha. O malte aparece com pão branco, o aroma de fermento é bem evidente e ela ainda mostra notas secundárias comuns no estilo: um toque cítrico lembrando laranja e um notável perfume de rosas. Complexidade aromática acima da expectativa. Na boca, ela se mostra um pouco leve em excesso: a doçura predomina e a acidez deveria ser um pouco mais elevada para equilibrá-la melhor. O corpo é leve, um pouco aguado, decepcionante para o estilo, presumivelmente para elevar a drinkability. Acredito que o uso de cereais não-maltados na receita explique, em parte, o pouco corpo. Mas, no conjunto, é uma Weiss honesta e interessante desde que você aceite que se trata de uma “roupagem atenuada” do estilo. O destaque fica para a boa complexidade aromática, melhor até do que muita Weiss artesanal por aí. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

O que é extraordinário nessa nova linha da Brahma Extra não é o perfil sensorial marcante ou ousado. Pelo contrário, são cervejas de perfil conservador para o público acostumado com as artesanais, com características atenuadas para evitar rejeição da parte do grande público. O que realmente chama a atenção é o preço a que chegaram ao mercado: R$ 2,80 da última vez que chequei as prateleiras. Isso está abaixo do preço de muitas American lagers premium do nosso mercado, como a Heineken. Com isso, a Brahma Extra se torna uma opção viável para realmente substituir a cerveja de todo dia com estilos diferentes. Com ela, hoje é possível beber uma Weiss suave, mas saborosa e honesta, no lugar da pilsen de sempre. Eu sempre tive uma preferência pessoal pela Bohemia Pilsen e pela Heineken para encher a minha geladeira no dia a dia. A Brahma Extra entra definitivamente para esse rol. E, como corolário, resta a reflexão de que são cervejas de produção em larguíssima escala. Talvez seja a primeira vez, em décadas, que teremos uma ale sendo bebida nesse volume no Brasil. Serão talvez centenas de milhares de consumidores que nunca tinham bebida nada além da “loira gelada”. Isso é algo novo.

Qual o balanço geral que fica dessas duas novas linhas da AB-InBev? Retomando o que falei anteriormente, acho que a nova linha da Bohemia tem um perfil bastante “conservador”, no sentido de que não apresenta nada radicalmente diferente da forma como o mercado microcervejeiro já funciona no Brasil. Aumentou apenas a escala, mas os parâmetros fundamentais do produto (receita, preço, identidade e marketing) continuam mais ou menos parecidos com o que as nossas micros já fazem. Do meu ponto de vista, o lançamento realmente “revolucionário” de 2015 foi a Brahma Extra. Olhando com frieza, são cervejas menos interessantes e marcantes do que as Bohemias, isso é verdade. Mas têm o mérito de serem baratas num mercado ainda excessivamente elitizado. Elas permitem que eu “saia da mesmice” no meu dia a dia e beba algo diferente da loira gelada de sempre, sem comprometer meu orçamento. Ora, não era isso que os microcervejeiros pregavam que nós fizéssemos, que buscássemos algo diferente das cervejas “sem graça” da AB-InBev? Infelizmente, os preços comuns do mercado coibiam essa prática, mesmo para quem é entusiasta. Paradoxalmente, quem está nos oferecendo uma alternativa real é a própria AB-InBev.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

As gigantes cervejeiras e a "revolução artesanal"

Quem tem medo do lobo mau?
Fonte: money.cnn.com
2015 acabou enfim, e é hora de fazermos um balanço sobre alguns dos destaques cervejeiros que chamaram a minha atenção nesse ano que se foi. É verdade que não consegui acompanhar inteiramente os novos lançamentos cervejeiros de 2015, por dois motivos – um bom e um mau. O mau é que, depois de terminar meu doutorado, fiquei um tempo sem emprego e sem condições de gastar dinheiro para acompanhar os lançamentos. Felizmente, isso vai mudar muito em breve. O bom motivo foi simplesmente o volume avassalador de novos rótulos, sobretudo nacionais, que tivemos no mercado. Num ano em que as novas importadas perderam um pouco do lugar na prateleira devido à alta do dólar, as cervejarias nacionais brilharam. Provei o que o orçamento apertado permitiu, aqui e ali, dentre aquilo que mais interessou.

Ao contrário do que fiz nos anos anteriores, não farei uma listagem com as cervejas mais interessantes que provei ao longo de 2015. Nem sei se a amostragem foi suficiente para uma listagem minimamente justa com o conjunto do mercado. Na verdade, quero apenas comentar alguns fatos que acabaram concentrando as minhas atenções nesse ano que acabou: a entrada da AB-InBev no mercado cervejeiro (com os dois pés no peito) e o crescimento na produção de cervejas ácidas por cervejarias nacionais. Nesta postagem, comento a questão da AB-InBev e do significado da entrada dos grandes grupos no cenário cervejeiro. Na próxima parte, falarei um pouco sobre a nova linha de artesanais e mezzo-artizanale da Bohemia e da Brahma. As ácidas de 2015 ficam para um momento posterior. Não queremos atropelar tudo, não é mesmo?

Artesanal ou industrial?

Como a maior parte dos que acompanham o cenário cervejeiro sabe muito bem, o ano de 2015 começou com uma notícia relativamente inesperada, até mesmo chocante para alguns: a gigante cervejeira AB-InBev comprou duas das microcervejarias mais icônicas e tradicionais do mercado brasileiro: a Wäls, de Belo Horizonte, e a Colorado, de Ribeirão Preto. No caso da Wäls, não se tratou meramente de uma compra: a Cervejaria Bohemia e a Wäls “associaram-se” numa nova empresa com controle acionário majoritário da AB-InBev (até agora, sem mudança nenhuma na existência de duas marcas independentes). OK, na prática, o resultado é mais ou menos o mesmo que o de uma compra, embora o vocabulário esteja cheio das elipses típicas das grandes operações do mercado de capitais.

Eu não compro das grandes corporações! Exceto meu 
iPhone, claro. E meu tênis Adidas. E meu Honda Fit. 
Ah, deixa para lá.
Fonte: cervezaplease.com
A notícia causou rebuliço, e as cervejarias prontamente ganharam acusadores e defensores na vasta, insólita e selvagem arena de batalha constituída pelas redes sociais. Recapitulemos os principais argumentos, de um e de outro lado (não, meu objetivo aqui não é tomar o partido de nenhum dos lados, e muito menos afirmar, de cima de muro, que “ambos estão relativamente corretos e é preciso buscar uma opinião intermediária”). Primeiramente, os críticos: uma parte do público prontamente rejeitou as duas marcas, chamando-as de “vendidas” ou de traidoras da suposta “revolução artesanal”. Como se as microcervejarias fossem entidades beneficentes que não visam nenhum tipo de lucro, mas apenas e tão-somente o combate revolucionário por um ideal abnegado e altruísta. Sei. Outros consumidores rejeitaram a marca e promoveram boicotes a seus produtos porque não querem dar seu dinheiro à AB-InBev (porque, imagino, já dão dinheiro demais a tantas outras megacorporações). Alguns até sugeriram que o padrão de qualidade das cervejas da Wäls e da Colorado iria cair depois da aquisição – porque, claro, o prazer supremo do Carlos Brito e da AB-InBev é produzir cerveja ruim e sistematicamente estragar as boas bebidas que existem no mundo, até sobrar só soda italiana e guaraná Dolly e eles poderem vender água pura a preço de uísque single malt. Outros, por fim, condenaram a concentração de capitais no mercado artesanal, com todas as práticas nefastas à concorrência que isso pode acarretar: acordos monopolistas nos pontos de venda e manipulações de preços em escala para prejudicar a concorrência. Disso eu realmente tenho medo. Aliás, já estamos vendo isso acontecer.

Era essa a sua ideia de “cerveja popular”?
Fonte: @eapsp (Instagram)
Por outro lado, houve aqueles que acolheram a notícia com braços abertos, afirmando que ela vai popularizar o consumo de boas cervejas no Brasil. Alguns previram uma queda no patamar de preços devido à maior eficiência no processo produtivo e à aquisição de matérias primas em escala maior. Não estamos observando isso. Aliás, pelo contrário: a Wäls só tem lançado novos rótulos com patamar de preços significativamente superior, chegando a astronômicos R$ 60 por uma garrafinha. As cervejas da Colorado também têm sofrido um aumento de preços considerável, chegando ao patamar dos R$ 20 pela garrafa de 600ml nos supermercados, o que, pelo menos por enquanto, invalida o argumento da redução dos custos. Outros louvaram o fato de que boas cervejas nacionais passarão a ser distribuídas pela estrutura logística da AB-InBev, atingindo mais pontos de venda e regiões mais remotas do país, melhorando a acessibilidade do consumidor a esses produtos. O fato é que, aqui em São Paulo, já tínhamos Wäls e Colorado em supermercados, mas eu imagino que não fosse assim em todos os lugares do país, de modo que esse ganho logístico realmente fará muita diferença para os consumidores distantes do eixo sul-sudeste. Outras pessoas, por fim, imaginam que a aquisição por um grande grupo possa possibilitar uma injeção maciça de capitais, necessária para aumentar a estrutura produtiva dessas marcas. De fato, as novas fábricas da Wäls e da Colorado terão capacidade produtiva imensamente superior e maquinário de ponta, e é muita inocência imaginar que elas não faziam parte do acordo de aquisição das duas empresas pela AB-InBev.

Argumentos à parte – e há argumentos bons, razoáveis e até prováveis de ambos os lados –, a verdade é que a reação da maior parte dos consumidores foi guiada pela emoção pura. A verdade tem de ser dita: boa parte do público consumidor de cervejas artesanais (pelo menos se levarmos em conta os “raivosos” que se manifestam nas redes sociais) rejeitou a notícia simplesmente porque se sentiu “traída”. Porque são pessoas que se acostumaram a acreditar no besteirol de que tinham um gosto mais “sofisticado” e “evoluído” do que a grande indústria que atende as massas (mesmo que estivessem enchendo a lata de Skol até anteontem). Porque consomem “artesanal”, e não “industrial” (mesmo que não consigam definir precisamente qual é a diferença entre uma coisa e outra). Porque se acostumaram a desdenhar da AB-InBev como uma empresa para “bebedores ignorantes”. No fim das contas, muitos repudiaram a notícia porque – vamos ser sinceros? – têm um medo enorme de que “a Massa” passe a beber as mesmas cervejas que eles e eles não possam mais dizer que estão acima das outras pessoas. Entraram na ciranda do consumo de artesanais justamente porque era um mercado elitizado (e não a despeito disso), e agora estão correndo o risco de se sentirem novamente confundidos com o populacho. Convenhamos: esse é o pior motivo possível para repudiar a notícia.

Quem tem medo de “revolucionar”?

Desce um Velho Barreiro para cada um; 
e depois uma Cantillon Grand Cru Bruocsella!
Fonte: temmais.com
Eu, como consumidor, estou do lado da popularização da diversidade cervejeira. Do lado de uma cultura de consumo com opções de verdade e com acesso fácil e popular. Quero cervejas boas, baratas e com variedade. Quero entrar num boteco da esquina (digo a esquina aqui de casa, na Vila Guilherme, e não uma esquina gourmet em Pinheiros ou nos Jardins) e ver meia dúzia de pés-rapados que nem eu comendo salaminho e bebendo American lager, ou bock, ou pale ale, ou dubbel, ou weiss, ou barleywine, não para pagar disso ou daquilo, mas porque realmente podem escolher o que querem beber pelo gosto pessoal, já que são todas igualmente acessíveis e disponíveis.

Uma das palavras mais constantes do vocabulário do público de cervejas artesanais é “revolução”. Também é uma das mais vazias de significado. Empresas e consumidores levantam a bandeira de que a produção e o consumo das cervejas artesanais estariam “revolucionando” a sociedade brasileira. Nessas horas, o historiador dentro de mim se revira. Alguém por favor me explica que raio de “revolução” é essa? No jargão das ciências humanas, “revolução” é um termo empregado para qualificar processos históricos que impliquem reformulação completa das estruturas econômicas ou políticas de uma sociedade. Alguns historiadores usam o termo num sentido mais amplo, falando em “revoluções culturais”, mas ainda assim a palavra indica um processo de virar tudo de ponta-cabeça. Aliás, o termo “revolução”, etimologicamente, vem da astronomia e significa “o ato de girar”. Não sei se estou olhando para o lado errado, mas eu não vi nada virando de ponta-cabeça no padrão de consumo de bebidas alcoólicas no Brasil. Só vi as velhas estruturas do consumismo de luxo sendo solidificadas: paga-se bem mais por um produto com prestígio e status social agregado (a “cerveja especial”) para diferenciar o padrão de consumo das classes A e B daquele que predomina nas classes inferiores. Como sempre foi nesse Brasil metido a besta. Só que antes era com outros produtos e outras bebidas – nomeadamente, o uísque, o vinho e a vodca importada. Agora é com cervejas especiais. “Revolucionamos” exatamente o quê? Só se tivermos revolucionado a conta bancária de meia dúzia de microcervejeiros, aí pode ser.

Viva la revolución!
Fonte: www.pinterest.com/jcerveau/che-guevara/
A verdade é que as microcervejarias brasileiras adoram se dizer revolucionárias, mas pouquíssimas ousaram realmente fazer algo no sentido de promover a única “revolução” que poderia mudar esse quadro: tornar seu produto acessível para que pudesse ser consumido de forma casual, retirando-lhe a aura de prestígio e status. Ou seja, fazer cerveja artesanal para beber como se fosse a “de sempre”. Aliás, é mais ou menos assim que a coisa sempre funcionou nos mercados norte-americano e europeu – onde os nossos cervejeiros dizem buscar inspiração. Nos EUA ou na Bélgica, as pessoas bebem corriqueiramente cerveja artesanal nos cafés, levam six-packs para beber em casa com os amigos, e fazem isso porque elas não são dramaticamente mais caras do que as cervejas comuns. Mas muito pouca gente tentou caminhar nessa direção no Brasil. Alguém já viu clientes entrando em um empório para comprar six-pack de IPA ou imperial stout (a não ser em promoção)? Nossos supermercados nem sequer oferecem engradados de cerveja artesanal nas gôndolas!

Pelo contrário, o mercado microcervejeiro, sobretudo nos últimos 5 anos, tendeu a se acomodar num certo modelo de negócios típico de mercados emergentes onde o padrão de renda está em alta, puxando o consumo de luxo. Esse modelo se baseia em apostar numa demanda crescente oriunda das classes A e B. Essa demanda é restrita e não poderia sustentar uma grande produção em massa, mas é suficiente para impulsionar uma produção industrial ou importação de pequena escala. Busca-se capturar o consumidor pela curiosidade (ou o “modismo”) ou pelo seu afã de se diferenciar, com o intuito de convencê-lo a comprar, uma vez, um produto de altíssimo valor agregado. Vendeu uma garrafa para esse consumidor, é hora de buscar o próximo.

É um mercado baseado na lógica da prova e da degustação, porque o valor do produto justifica uma “nova experiência” e/ou um dia de “ostentação”, mas não justificaria o consumo regular. Os consumidores constituem um grupo mais ou menos restrito de “entusiastas”, que veem a cerveja quase como um hobby. Os produtores e vendedores, via de regra, não procuraram capturar os consumidores mais ou menos indiferentes, que não vão ficar correndo atrás da última sour session oak-aged India black ale do mercado. Numa dada altura, o mercado se acomodou ao tamanho dessa comunidade de entusiastas e conseguiu, por meio de vários testes de percepção de valor, entender o quanto esse consumidor estava disposto a pagar por uma nova degustação. Fixou-se então esse valor como o preço básico para qualquer cerveja. No Brasil dos últimos dois anos (sobretudo depois da escalada do dólar, que impactou o preço das cervejas importadas), esse preço gira em torno de R$ 15 a 25 para uma garrafinha. Qualquer uma. Todo grupo de entusiastas é, por natureza, um universo pequeno de pessoas, mas o crescimento mais ou menos espontâneo desse grupo ao longo dos últimos anos deu fôlego suficiente para o aparecimento de novas microcervejarias.

Há um fator limitante nesse modelo de negócios: você só vende cada cerveja para um consumidor individual uma única vez. Então, para aumentar suas vendas, a cervejaria só tem duas opções: ou ampliar a base de consumidores, ou lançar novas cervejas. A busca por novos consumidores implicaria visar um bebedor que não faz parte desse perfil do entusiasta disposto a gastar R$ 20 para provar cada nova cerveja. Implicaria mudar toda a estratégia. A segunda opção apresenta-se como a saída mais fácil para o problema, o que torna compreensível por que as microcervejarias inundaram o mercado de novos rótulos, nem sempre com qualidade consistente. Para quem só vai vender uma garrafa por consumidor, não é preciso investir em padrão de qualidade constante, pois a experiência de degustação não será repetida. De que vale investir em aprimorar uma receita antiga se ela não vai mais vender? É preciso investir, isso sim, em novas cervejas. Por mais medíocre que seja o resultado, a curiosidade, a paixão sincera ou a mera “síndrome de colecionismo” dos consumidores vai garantir que um primeiro lote venda. E aí nem é mais preciso fazer segundo lote, em muitos casos: basta passar para uma nova receita. Essa enorme rotatividade, que muita gente louva como sendo fruto da criatividade dos cervejeiros, na verdade pode ser entendido como um requisito do modelo de negócios do setor artesanal. Afinal, onde está a tão propalada “criatividade” em se lançar um caminhão de IPAs, sessions IPAs e saisons com frutas tropicais, quase nenhuma bem-feita o suficiente (com consistência) para ser uma boa representante do estilo?

Abra seu coração para algo totalmente inovador, 
sobre o qual você nunca tinha ouvido falar: IPA.
Fonte: www.avsforum.com
Acontece que esse modelo de negócios tem perna curta, porque essa demanda sobre a qual o castelo de cartas da cerveja artesanal brasileira está erguido é altamente específica e relativamente inelástica. O modelo funcionou muito bem enquanto ainda havia um grande contingente de público que nunca havia entrado em contato com a diversidade de estilos cervejeiros. As inúmeras matérias na mídia e ações de divulgação e degustação transformaram toda essa gente em consumidores potenciais. Acontece que eles já provaram e já decidiram se gostam ou não. Os que tinham de virar entusiastas já o fizeram. Já saciaram a curiosidade – que era o móvel principal da demanda até então. Agora sobraram poucos pagãos para converter, por assim dizer. Para piorar, a aura de novidade e exclusividade da cerveja artesanal está passando (hoje em dia, quem é que se sente “especial” porque sabe o que é uma IPA?), o que diminui o encanto daqueles que haviam entrado no barco só porque queriam estar antenados. Por fim, a demanda era vigorosa em um contexto de crescimento econômico, mas, com o cenário de recessão que estamos vivendo atualmente no Brasil, o consumo de luxo deixou de ser uma prioridade e passou a ser a primeira coisa a ser cortada no orçamento da classe B. A torneira está começando a secar. Não sou empresário nem bidu, mas não acredito que esse modelo tenha vida muito longa.

Qual a alternativa, então? Parece-me que seria preciso buscar um novo tipo de consumidor que não seja o “entusiasta” que tem sustentado o mercado artesanal até aqui. Um que consuma cerveja artesanal casualmente, sem precisar fazer parte de alguma espécie de “confraria dos iluminados de São Gambrinus”. Um que, em vez de sair caçado a última edição limitada de uma raríssima Scotch ale com manteiga de karité envelhecida em barris de vinho do Porto, contente-se em pegar uma Münchner dunkel gostosa para beber junto com a pizza na sua pizzaria preferida do bairro. Ou seja, alguém que beba uma artesanal como quem bebe as “de sempre”. Contudo, isso depende de algumas condições. Em primeiro lugar, a cerveja tem de ter boa distribuição, precisa chegar ao ponto de consumo casual do consumidor comum, e não apenas ficar restrita aos bares cervejeiros frequentados pelos entusiastas. Em segundo lugar, ela precisa ter preço justo e acessível, para que possa substituir a de sempre. Não digo que precise necessariamente ter o mesmo preço de uma Skol, mas seria interessante se uma witbier ou uma pale ale pudesse custar, digamos, não mais do que 30-50% a mais que uma premium de massa. Em terceiro lugar, num cenário (ainda muito distante) em que haveria várias cervejas nessas condições, é preciso haver qualidade e consistência no produto para impulsionar a repetibilidade da compra.

Olha, não sou nenhum empresário do ramo. Mas, do meu ponto de vista, uma microcervejaria só pode almejar a isso se conseguir consolidar um mercado regional, buscando distribuir seu produto para o pequeno comércio de sua região com o intuito de cortar custos de logística e transporte a fim de atingir um patamar de preços competitivo (com o benefício adicional de preservar o frescor do produto), e se procurar atingir o gosto do consumidor regular, e não somente do entusiasta em busca de sabores exóticos. E, acima disso tudo, é preciso promover uma política de preços mais agressiva, que não se restrinja a brigar pelo entusiasta empoleirado num bar cervejeiro disposto a gastar uma soma vultosa em cerveja hipster, mas que tente entrar no território do consumidor que estava inicialmente disposto a tomar só uma American lager de massa. Distribuição, acessibilidade e custo-benefício, em suma, seriam as palavras-chave para, quem sabe, “revolucionar” alguma coisa no mercado cervejeiro no Brasil. É, vou deixar meu preciosismo historiográfico de lado e admitir que, nessas condições, poderíamos talvez falar em “revolução cervejeira”.

O bicho-papão papou!

Comprinha básica para o churras da galera.
Fonte: brooklynbuzz.com
Não estou dizendo nada de novo. Faz muito tempo que essa bola já vinha sendo cantada. Desde 2008, quando comecei a beber cerveja “diferentona”, a gente já escutava que o mercado ia crescer, que o público ia começar a se interessar por cerveja artesanal, que o volume de produção e consumo ia aumentar e que, depois disso tudo, finalmente os preços iam cair e a gente ia poder beber Rauchbier e IPA no churrasco. E que, aí, a cerveja artesanal ia se consolidar como um produto corriqueiro no Brasil. Todo mundo que fazia a concessão de pagar R$ 15 numa garrafa de artesanal, naquela época, tinha em mente essa espécie de utopia futura, quando a cerveja teria um preço mais razoável. Só que o mercado cresceu e os preços só fizeram aumentar. Naquela época, a cervejaria nacional que pedisse R$ 15-20 numa long neck de pale ale se arriscava a ser motivo de chacota pública. Hoje, não há nada mais corriqueiro. Mas todo mundo sabia que, uma hora, esse modelo de mercado ia começar a se esgotar. Com ou sem crise, com ou sem o assédio das megacorporações. A receita era simplesmente insustentável a longo prazo. E quase ninguém fez nada para mudar isso.

As microcervejarias não tentaram roubar o consumidor da AB-InBev – contentaram-se com o mercado relativamente restrito, mas lucrativo, dos entusiastas e das confrarias de esclarecidos que conseguiram amealhar. E sabe quem foi lá e aproveitou a oportunidade para roubar o bebedor da AB-InBev? A própria AB-InBev! Pois é. Todo mundo estava dizendo que era preciso mudar o modelo para buscar atingir o consumidor comum. Mas ninguém se mobilizou a tempo para isso, então as grandes corporações vieram para fazer o serviço. A compra da Wäls e da Colorado foram só a pontinha do iceberg, foram aquisições para entender como o mercado funcionava e ganhar expertise e para entrar nesse nicho dos entusiastas. Mas a entrada da AB-InBev tem objetivos mais largos.

Ao mesmo tempo em que essas aquisições foram anunciadas, a Bohemia lançou uma nova linha de cervejas com “cara de artesanal”: uma IPA com (essência de) jabuticaba, uma witbier com (essência de) pimenta-rosa e uma Belgian blond ale com (essência de) erva mate. Inundaram os supermercados, os bares e os pontos de venda com essas novas cervejas, a um patamar de preços convenientemente próximo, mas um pouco abaixo das artesanais mais baratas. Como quem diz: “não daremos motivo para você desconfiar do nosso produto; ele é tão bom quanto essas outras aí, mas é um pouquinho mais barato e é de uma marca em quem você já confia.” Com isso, começou a forçar a porta para um novo mercado que está disposto a consumir artesanais, mas ainda tem receio devido ao preço e ao fato de as marcas serem pouco conhecidas. Com essa linha, a AB-InBev começou a engolir os consumidores que estavam quase dispostos a consumir as artesanais, ou seja, que já eram clientes em potencial. Ou aqueles que haviam provado uma ou duas e tinham gostado da brincadeira, mas que estavam só procurando uma um pouco mais barata para poder encher a geladeira. Ao mesmo tempo, atacou em uma segunda frente: repaginou a Brahma Extra, transformando-a numa linha que inclui uma amber lager e uma Weissbier a preços populares – o mesmo preço da American lager comum da marca, por sinal. Aqui, o público-alvo é outro: é o brahmeiro que até pode ter ficado curioso com tanta cerveja diferente no mercado, mas que tem um perfil conservador demais (ou tem poder aquisitivo de menos) para se permitir gastar mais de R$ 10 numa garrafa de cerveja.

Com isso, a AB-InBev está começando a roer o osso pelas duas pontas ao mesmo tempo: buscando o consumidor que ainda poderia comprar artesanais das micros que temos hoje em dia e, no outro espectro, ampliando enormemente a base de curiosos por novos estilos a partir do público que não está disposto a gastar mais do que já gasta para provar uma nova cerveja. O mercado já começou a se mobilizar por meio da concorrência para se adaptar a essa investida. Infelizmente, não me refiro à concorrência das microcervejarias estabelecidas, mas sim dos outros grandes grupos cervejeiros. A Brasil Kirin recentemente diminuiu os preços de toda a sua linha da Eisenbahn na tentativa de chegar antes da Brahma Extra ao consumidor de cervejas de massa. Pela nova política da Kirin, a Eisenbahn Pilsen deve custar o mesmo que a Heineken nos pontos de venda. E as demais da linha devem ficar em torno de 50% acima disso. É claro qual é o público pelo qual as gigantes estão brigando: o mesmo público pelo qual as microcervejarias não tiveram nem peito, nem fôlego para brigar ao longo dos últimos 5 ou 10 anos.

A pergunta que muita gente está se fazendo, a essa altura, é a seguinte: afinal de contas, a entrada da AB-InBev e a briga de “cachorro grande” que está começando no mercado artesanal é algo positivo ou negativo para o consumidor? Como eu disse, há bons argumentos para defender ambas as possibilidades. Contudo, minha questão não é essa. A questão é que era necessário, imperioso até, mudar um certo modelo de negócios com o qual todo mundo meio que “se acostumou”, na camaradagem. Alguém ia ter de fazer isso mais hora, menos hora. O triste é ver que pouquíssimas das nossas “revolucionárias” microcervejarias tiveram coragem para tentar fazer isso. Uma ou outra o fez, sejamos justos. Mas a maioria continuou num plano de negócios mais ou menos inercial, apostando em que o cenário de inchaço ia continuar para sempre. Agora o grande capital entrou no negócio para valer. E ele tem os meios de tornar essa briga bastante desleal para os pequenos. Será muito mais difícil agora as microcervejarias fazerem qualquer “revolução” com a AB-InBev e a Kirin tomando posições mais agressivas no mercado. Por um lado, é uma alegria para mim, como consumidor, ver que esse movimento de popularização real pode finalmente estar começando. Por outro lado, é uma tristeza ver que minhas cervejarias preferidas não toparam esse desafio e quem está fazendo isso é a AB-InBev, com uma série de práticas de mercado escusas e potencialmente prejudiciais a uma concorrência saudável nesse setor.

Resta sentar, abrir uma cervejinha descompromissada (que agora pode ser uma Weiss, ou quem sabe até uma kölsch ou uma Belgian golden strong ale) e observar os rumos que os acontecimentos vão tomar nos próximos anos. Na próxima postagem, vou provar e comentar todos os rótulos dessa nova linha de cervejas “artesanais” da Bohemia e da Brahma Extra. Não perca!


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Zwarte Piet: (mais) notas sobre o racismo em rótulos de cerveja

É natal aqui no O Cru e o Maltado! E, por mais estranho que isso vá soar, não poderia haver época mais adequada para continuarmos nossa conversa sobre estereótipos imperialistas e racistas em rótulos de cerveja. Na última postagem, contei aos meus leitores a “linda história de amor” de John Stedman e de Joana, e argumentei que o rótulo inicialmente proposto pela cervejaria Evil Twin para sua Imperial Brazilian Wax reiterava e corroborava estereótipos ligados à exploração sexual de mulheres negras por europeus nos trópicos. Papo brabo. Mas agora quero mostrar um exemplo contrário, evidenciando como uma outra cervejaria europeia discutiu com ironia e humor a cultura do racismo e do imperialismo em um rótulo de cerveja de inspiração natalina. Estou falando da cervejaria belga Brasserie de la Senne e de sua Belgian dark strong ale chamada Zwarte Piet.

Mas não vamos nos apressar e pôr os carros na frente dos bois. Esse rótulo é uma espécie de “piada interna” difícil de entender para nós, brasileiros. Para compreendê-lo, primeiro precisaremos saber um pouquinho sobre a história e o folclore natalinos da Holanda e da Bélgica.

São Nicolau e o “Pedro Preto”

Ícone russo de São Nicolau de Mira, 
do século XIX.
Fonte: commons.wikimedia.org
Você já deve ter ouvido falar que o Papai Noel, o nosso conhecido “bom velhinho” natalino, tem sua origem na figura de um santo católico chamado São Nicolau de Mira. Bom, se nunca tinha ouvido falar nisso, ouviu agora! Nicolau foi bispo da cidade de Mira, na Turquia, durante o século IV da era cristã, e a ele se atribuem diversos milagres. Entre suas pias obras, destacam-se a assistência e a educação de crianças pobres, o que veio a lhe render a fama de um benfeitor de crianças. São Nicolau tornou-se muito celebrado como patrono da igreja na Rússia e na Noruega, onde cresceu a veneração ao santo. O aniversário de sua morte é comemorado em 6 de dezembro, data próxima ao natal, o que facilitou a identificação do “bom velhinho” com a festa do nascimento de Cristo. Seu nome (“Saint Nikolaos”) foi sofrendo uma série de corruptelas até assumir a forma, em holandês, de “Sinterklaas”, de onde surgiu “Santa Claus”, o Papai Noel.

Ocorre que, na Holanda e na Bélgica, o bom velhinho não é comemorado na data do natal (25 de dezembro). Pelo contrário, existe uma grande celebração popular do santo, conhecido pelo nome holandês de Sinterklaas, no dia 6 de dezembro, data de sua morte. Diz a lenda natalina do “nosso” Papai Noel (como devem saber todos os que um dia tiveram infância) que ele entrega presentes para as crianças do mundo inteiro auxiliado por suas renas mágicas e por um montão de “elfos” ou “duendes”. Pois bem: no folclore flamengo e holandês, a lenda é um pouquinho diferente. Lá, Sinterklaas tem um ajudante negro chamado “Zwarte Piet” – ou, traduzindo para o português, “Pedro Preto”.

Ilustração de Zwarte Piet como criado 
doméstico de São Nicolau, do 
livro de Jan Schenkman (1850). Aqui, 
ele é negro e veste roupas mouriscas.
Fonte: de.wikipedia.org
A figura do Zwarte Piet surgiu durante o século XIX, quando ele era retratado como um serviçal (vestindo roupas típicas de criados medievais) de pele escura, alternativamente mouro ou negro. Suas atribuições não se limitavam a ser uma espécie de auxiliar de Papai Noel. Zwarte Piet também era uma figura meio assustadora, que, no lugar de dar presentes, punia as crianças que não haviam se comportado bem durante o ano. Como se fosse o “lado B” do bom velhinho: se você se comportou ao longo do ano, ganha presentes de Sinterklaas. Se não se comportou, apanha do Zwarte Piet. Ao longo do século XX, essa imagem “malévola” do Zwarte Piet foi sendo gradualmente atenuada: hoje em dia, na maior parte dos festivais de Sinterklaas, o Zwarte Piet funciona como uma espécie de ajudante trapalhão que, invariavelmente, acaba sem querer fazendo alguma besteira com os presentes e põe em risco o natal das crianças. E aí sucedem-se mil trapalhadas e é preciso que as pessoas acorram para restabelecer a ordem e salvar o natal.

Não é fortuito que o Zwarte Piet tenha surgido no folclore flamengo e holandês bem no século XIX. Essa foi justamente a época em que, no pensamento europeu, começaram a ser desenvolvidas várias teorias pseudocientíficas que supostamente “provavam” a inferioridade congênita da raça negra, em comparação com os brancos. Também foi a época em que, apoiadas nessa crença espúria de que os negros seriam naturalmente inferiores e mais selvagens, as grandes potências europeias invadiram o continente africano e impuseram uma brutal dominação colonial que durou até depois da II Guerra Mundial. O Zwarte Piet, como um serviçal mau ou abobalhado, era perfeitamente condizente com essas ideias racistas que dominavam a cultura do período. Ele era um subalterno da autoridade de um bondoso e sábio senhor branco em posição superior (São Nicolau) e uma figura de capacidades limitadas e moral duvidosa, com um gosto pela violência. Na Bélgica e na Holanda, até hoje o Zwarte Piet é uma figura central das celebrações públicas e festejos do Sinterklaas, em 6 de dezembro. Multidões de belgas e holandeses saem às ruas e muitos se vestem como Zwarte Piet, pintando os rostos de preto, usando batom vermelho para imitar lábios grossos de negro e usando uma peruca afro e vestes de serviçal.

Sim, é assustador. E um pouco constrangedor mesmo.
Fonte: zwartepiet.nl
Mas nós estamos no século XXI, e a cultura do racismo começou a ser sistematicamente questionada em todos os lugares. Nas últimas décadas, a Europa se encheu de imigrantes de suas ex-colônias (incluindo ex-colonos negros do Congo e Caribe, no caso da Bélgica e da Holanda), que se sentiram bastante incomodados com a representação do Zwarte Piet. A partir dos anos 1970, mais ou menos, os protestos foram recorrentes. As coisas esquentaram nos últimos anos: em 2011, dois manifestantes negros contrários ao festejo foram presos pela polícia. Já em 2013, Verene Shepherd, eminente acadêmica jamaicana estudiosa da escravidão e representante da ONU, manifestou-se a favor do fim do costume de representar o Zwarte Piet nos festejos públicos de Sinterklaas. A manifestação de Shepherd gerou forte reação contrária da parte de tradicionalistas da Holanda e Bélgica. Outros grupos desses dois países, porém, começaram a incluir nos festejos de Sinterklaas figuras de Zwarte Piet com a pele verde e azul, em adição ao negro, como forma de mitigar o caráter racista da figura. A Bélgica e a Holanda começaram a repensar uma antiga tradição folclórica que todo mundo, até então, simplesmente reproduzia sem pensar muito a respeito do seu significado.

A questão ainda permanece em aberto, mas hoje é muito mais difícil ocultar ou ignorar o teor racista dessa antiga tradição folclórica dos belgas e holandeses. E foi justamente no meio de toda essa confusão que aterrissou o rótulo que quero discutir hoje.

Brasserie de la Senne e sua “Zwarte Piet”

A Brasserie de la Senne é uma das cervejarias belga da “nova geração”. Fundada em 2006, atuou como cervejaria cigana por alguns anos, produzindo suas cervejas em outras fábricas, até conseguir estabelecer sua própria estrutura produtiva em Bruxelas em 2010. O nome deriva do rio Senne, que banha a cidade. Seu portfolio inclui alguns produtos em estilos tradicionais belgas e outros em estilos característicos da nova escola mundial. A “Zwarte Piet” é uma Belgian dark strong ale. A mesma receita já era produzida pela cervejaria sob o nome de Equinox, mas foi rebatizada como Zwarte Piet em 2012 – bem no meio da rebordosa em torno dos protestos antirracistas contra o Sinterklaas. O nome, portanto, era altamente provocativo.

A partir desse nome, esperaríamos que o rótulo trouxesse algum tipo de variação estilizada (como é comum na identidade visual da marca) do ajudante negro do Papai Noel. Mas não é nada disso que encontramos. Vejamos:

 
"Cadê o natal?"
Fonte: beerpulse.com
Um negro vestido com as roupas típicas de um explorador europeu na África, carregando um fuzil e fazendo gesto de quem está observando o terreno. Sua boca é de um vermelho vivo, lembrando os lábios grossos pintados de batom vermelho das pessoas (brancas) que se fantasiam de Zwarte Piet no 6 de dezembro. À sua frente, como se fosse um batedor, vemos uma galinha. Em segundo plano, uma fera espreita incógnita, talvez pronta para devorar os dois incautos exploradores. O cenário lembra uma vegetação tropical, mas ao fundo vemos um horizonte urbano e, bem à esquerda, é possível divisar o Atomium, um dos principais pontos turísticos de Bruxelas. Mas que diabos é isso, afinal de contas? Não tem nada de Zwarte Piet, nem de Sinterklaas ou de natal aqui! Pois é. Os caras da Brasserie de la Senne ficaram loucos? Ou será que o rótulo é só uma viagem sem nenhum sentido mesmo? Comparemos a ilustração do rótulo com a imagem abaixo, que é a capa de uma revista em quadrinhos de 1931, chamada As aventuras de Tintim no Congo:

Fonte: forum.touteslesbieres.fr
Agora vemos claramente de onde saiu a inspiração para o rótulo da Zwarte Piet. A referência é inequívoca – até o bizarro formato das meias de Tintim é reproduzido no explorador do rótulo da Brasserie de la Senne. Para quem nunca ouviu falar, Tintim é um herói de quadrinhos extremamente popular na Bélgica – país que é conhecido tanto pelos seus quadrinhos quanto por suas cervejas. A Brasserie de la Senne, portanto, está citando no rótulo dois elementos que são motivo de orgulho para os belgas: um de seus mais famosos personagens de ficção (Tintim) e uma de suas maiores festas folclóricas (o Sinterklaas com seu Zwarte Piet). Mas será que o rótulo pode ser lido como uma homenagem a essas duas coisas? No meu ponto de vista, decididamente não. Como entender então essa bizarra dupla inspiração da Brasserie de la Senne?

Na verdade, é mais produtivo encarar o rótulo como uma ironia, ou até uma crítica a essas duas tradições belgas. Vejamos. Na capa original do quadrinho, Tintim era apresentado como um intrépido explorador que, apenas com a ajuda de seu fiel cãozinho Milu, partia para uma perigosa viagem de descobrimento pelo Congo. Eram os anos 1930. Na época, o Congo ainda era uma colônia belga. Aliás, o regime colonial belga no Congo ficou nas páginas da história como um dos mais brutais e violentos regimes de dominação colonial do continente africano. As populações nativas eram forçadas a trabalhar na extração de produtos agrícolas de exportação (principalmente a borracha) e na construção de linhas férreas no meio da mata, em condições de segurança e saúde abomináveis. Morriam às pencas. Diz uma lenda popular no Congo que, durante a construção da estrada de ferro que liga Matadi a Kinshasa, um africano morreu por cada dormente de madeira instalado. Alguns estudiosos especulam que as condições de saúde da população tornaram-se tão frágeis que isso criou condições que facilitaram o surgimento do vírus do HIV – que talvez nunca tivesse se desenvolvido e propagado em uma população saudável. (E você que achava que os belgas eram todos uns monges pacíficos que passavam o dia fazendo cerveja, hein?) A brutalidade do regime colonial belga no Congo foi denunciada pelo escritor anglo-polonês Joseph Conrad em seu clássico livro O coração das trevas – o mesmo que serviu de inspiração para o filme Apocalipse Now. Pois é: originalmente, o apocalipse era no Congo, e não no Vietnã.

Voltemos a Tintim. Suas aventuras no Congo, em plena época de colonização belga, são a marca da presença colonial belga na região e da violência do regime de dominação. No entanto, Tintim parece caminhar garbosamente (a roupa ainda estava limpinha!) por um terreno totalmente desabitado, povoado apenas por bestas selvagens. Nenhum traço dos milhares de nativos negros oprimidos pelo regime colonial. Era costume, nos relatos de viagem do século XIX, descrever os territórios africanos “descobertos” pelos viajantes-aventureiros europeus como se eles fossem “vazios”, apenas esperando que os brancos chegassem, “descobrissem-nos” e tomassem posse deles. Na verdade, sabemos pelos documentos que esses exploradores sempre andavam em caravanas organizadas pelos nativos, que os levavam a lugares já bem conhecidos em troca de mercadorias – ou, em casos extremos, sob ameaça de represália militar. Essas terras estavam muito longe de serem desconhecidas e mesmo desabitadas, mas era assim que elas eram representadas para o público leitor europeu ávido pelas aventuras de grandes exploradores como David Livingstone ou Richard Burton. O continente era descrito como uma grande “vazio humano” disponível para a ocupação europeia. Tintim era o substituto ficcional, no século XX, desses lendários aventureiros reais que percorreram a África no século anterior.

O missionário inglês David Livingstone 
em um momento “thug life”. Era assim 
que um europeu viajava pela África 
com estilo!
Fonte: www.scalarchives.it/
Para a crítica literária Mary Louise Pratt (que analisou magistralmente esses relatos de viagem oitocentistas em seu livro Os olhos do império), a atitude mantida por esses viajantes-exploradores era a de possuir com o olhar: como se, ao ver uma paisagem, eles pudessem legitimamente tomá-la como possessão para seus países. Mais ou menos como quando Pedro Álvares Cabral declarou a “descoberta” do Brasil e mandou Pero Vaz de Caminha descrever a terra em sua célebre carta como forma de declarar a posse portuguesa de um território que, na verdade, já era densamente povoado por populações indígenas. Mary Louise Pratt descreveu esse olhar agressivamente masculino e possuidor, comum aos exploradores europeus, como uma atitude do “monarca-de-tudo-o-que-vejo”. Pois bem: eis aqui Tintim, em pleno Congo belga, com a mão esquerda cobrindo os olhos em gesto de observação da paisagem, como um autêntico “monarca-de-tudo-o-que-vejo” europeu em terras africanas. Ele carrega um rifle, sim, mas sua verdadeira arma para dominar a terra é o olhar, já que, pela ilustração, parece nem haver pessoas contra as quais seria necessário lutar para conquistar a região (o que, obviamente, nunca foi verdade no Congo belga). A capa d’As aventuras de Tintim no Congo, portanto, pode ser interpretada como uma saudosa homenagem a esses grandes viajantes representantes do imperialismo europeu na África. Olhando a partir do século XXI (muito depois do fim das colônias europeias na África), é um tributo a uma história muito feia de opressão e violência.

Relações perigosas

Mas o que diabos São Nicolau e o “Pedro Preto” têm a ver com Tintim, à parte o fato de ambos serem elementos tipicamente associados à cultura belga? Quando uma cervejaria batiza sua cerveja de Zwarte Piet mas, em vez do folclórico ajudante negro do Papai Noel, ilustra o rótulo com uma alusão ao Tintim, está querendo que pensemos em qual seria a semelhança entre essas duas figuras. O que torna possível “trocar” o Zwarte Piet pelo Tintim no Congo? Ora, a característica comum a ambos é sua associação com um histórico e uma sensibilidade associados ao racismo e ao imperialismo. Assim como o Zwarte Piet expressa uma visão negativa dos negros, o Tintim no Congo traduz as aspirações imperialistas belgas que pressupunham, também, a inferioridade dos negros e sua dominação pelos exploradores brancos.

O que o rótulo faz, no entanto, não é reforçar ou endossar essa sensibilidade, mas invertê-la de forma irônica e paródica. Se o Zwarte Piet do folclore natalino é um branco fantasiado de negro fantasiado de serviçal, o Zwarte Piet da cervejaria é um negro igualmente fantasiado, mas desta vez de dominador colonial. Os papéis foram trocados. Seu olhar abobalhado é tanto uma paródia da suposta “inocência” do explorador europeu (o “monarca-de-tudo-o-que-vejo” que não dispara um tiro e só observa a paisagem) quanto uma referência ao aspecto parvo e atrapalhado do Zwarte Piet nos festejos belgas de natal. No lugar de Milu, o fiel cão de Tintim, vemos uma galinha, animal normalmente associado a populações pobres africanas (em contraste com o aristocrático cão de caça do ariano Tintim). O animal feroz ao fundo se mantém, mas, no lugar de um leopardo, aparece apenas como um vulto negro indefinido – será o bicho-papão do colonizador branco pronto para devorar os frutos do trabalho, a saúde e a vida dos súditos coloniais?

Reconhece?
Fonte: www.independent.co.uk
O rótulo faz questão de nos dizer claramente que, a despeito da alusão à capa do Tintim, ele não está falando do Congo, mas sim da Bélgica. Como apontei, se prestarmos atenção ao cenário, conseguiremos notar ao fundo a silhueta do Atomium, um dos mais famosos pontos turísticos de Bruxelas. O cenário é a Europa moderna (dilacerada pelos protestos de e contra imigrantes negros), e não o Congo dos anos 1930. O rótulo do Zwarte Piet é um cutucão provocativo à cultura do racismo na Bélgica contemporânea. Em primeiro lugar, ele ironiza o hábito de pessoas brancas se fantasiarem como negras no Sinterklaas e mostra como essa proposta é descabida ao fazer o contrário: vestir um negro como um explorador branco na África, criando uma situação inversa e igualmente espúria. Mais do que isso, o rótulo junta dois elementos considerados centrais do orgulho nacional belga – o Sinterklaas e Tintim – e mostra como ambos são solidários com uma cultura de racismo e de exploração imperial na África. É um duro ataque, feito com humor inteligente, que tem o poder de conduzir os belgas a refletirem o quanto de sua cultura “típica” está baseada em atitudes racistas e em históricos muito pouco lisonjeiros de dominação imperial e discriminação racial.

Na postagem anterior, sobre o rótulo da Evil Twin Imperial Brazilian Wax, tentei demonstrar como uma cervejaria europeia reproduziu hábitos arraigados de pensamento com conotações imperialistas, machistas e racistas. O rótulo da Brasserie de la Senne Zwarte Piet, pelo contrário, oferece um revigorante contraponto, e mostra uma outra cervejaria – igualmente europeia, mas com uma atitude política totalmente diferente – disposta a desconstruir e ironizar esses hábitos de pensamento arraigadamente imperialistas e racistas de uma parte importante da cultura europeia. Alguns cervejeiros e consumidores brasileiros, incomodados com os protestos contra rótulos ideologicamente problemáticos como o Imperial Brazilian Wax, frequentemente se queixam de uma suposta “patrulha ideológica do politicamente correto”, e alegam que não se pode mais fazer alusão a nenhum grupo social subalterno e/ou marginalizado sem ser taxado de preconceituoso. E aí desfilam todo o rosário histriônico do saudosismo conservador sobre como “o nosso mundo está perdido” e sobre como “o politicamente correto acabou com o humor e a criatividade” das pessoas, e todo aquele blablabla que estamos carecas de saber.

Ora, o rótulo da Brasserie de la Senne Zwarte Piet é uma clara demonstração de que isso é uma enorme bobagem: a cervejaria mobilizou vários estereótipos delicados (para dizer o mínimo) com humor e inteligência, sem ser preconceituosa nem reforçar a discriminação. Muito pelo contrário, aliás: em tempos de polarização da opinião pública belga em torno dos festejos de Sinterklaas, a cervejaria lançou uma provocadora proposta para que os belgas repensassem sua cultura de discriminação. Basta saber onde você está mexendo e assumir uma atitude crítica e questionadora diante das babaquices que circulam por aí no nosso mundo. É perfeitamente possível ser bem humorado e espirituoso sem se escorar na muleta fácil de uma cultura que sempre ridicularizou as minorias. Façamos um brinde à Brasserie de la Senne e ao humor criativo!

A cerveja

Ué, mas e a cerveja? Como é a Zwarte Piet no copo? Um rótulo desses com certeza merece uma descrição sensorial! Como mencionei, a Zwarte Piet é uma Belgian dark strong ale, o mesmo estilo de tradicionalíssimas cervejas monásticas belgas. Nada mais adequado, aliás, para um rótulo que faz alusão ao folclore natalino do que um estilo desenvolvido pelos cervejeiros católicos. Mas é uma reinterpretação moderna do estilo, com lupulagem assertiva (tanto em aroma quanto em amargor), uma certa secura e com perfil de maltes um pouco mais torrado. Trata-se, portanto, de uma releitura moderna da tradição – muito adequada, aliás, para uma cervejaria do século XXI que não se limita a reproduzir as tradições belgas (como o Sinterklaas racista ou as cervejas de abadia), mas que inova criativamente a partir delas e nos oferece uma variação atual sobre o tema. Vejamos como ela se comporta no copo:

Ah, é, a cerveja!
Fonte: bieresbelges.skynetblogs.be
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 8.2%
Aparência: a coloração é típica do estilo, um marrom-escuro com reflexos em tom bordô, talvez um pouco mais escura do que o tradicional, com creme alto e de boa persistência.
Aroma: curioso e atípico para o estilo. No lugar do trio caramelo-frutas-especiarias que encontramos em outras Belgian dark strong ales, a Zwarte Piet apresenta um perfil de malte mais torrado (muito cacau em pó e um toque de café) e lupulagem bem perceptiva, lembrando variedades nobres (gerânios e ervas finas). Mamão e cravo dão o suave toque “belga” da receita, e nuances exóticas de amêndoas cruas, coco e cal/mineral vai se desenvolvendo, lembrando até cervejas com maturação em madeira. Com o tempo, esses elementos começam até a predominar, descaracterizando um pouco o estilo e roubando algo da complexidade da receita.
Paladar: inicialmente há um equilíbrio entre a doçura do malte e o amargor dos lúpulos, mas ela vai se tornando seca ao longo do gole e finaliza com amargor que predomina visivelmente sobre a doçura, o que é atípico para o estilo, conduzindo a um retrogosto intensamente amargo e seco com toques de ervas e café.
Sensação na boca: o aquecimento alcoólico é bem suave para seus 8.2% e o corpo é surpreendemente seco e leve para o estilo, sem o peso de outras Belgian dark strong ales, mas com uma textura acetinada bem agradável.

No cômputo geral, é uma releitura bastante moderna e experimental do estilo, com um toque lupulado característico da “nova escola” cervejeira mundial. Não tem o peso, nem a complexidade frutada e envolvente, nem a picância dos exemplares canônicos do estilo, perdendo em profundidade, mas traz alguns aromas exóticos e interessantes para compensar. (Clique aqui para ver a avaliação completa)


Mas, pensando bem, diante do rótulo, não poderíamos mesmo esperar que a Brasserie de la Senne se limitasse a reproduzir as características “tradicionais” do estilo, assim como se recusou a reproduzir o teor tradicionalmente racista dos festejos de natal belgas. Mais um brinde à inovação, ao bom humor e à modernidade!