terça-feira, 22 de julho de 2014

Um ano prolífico para a Wäls - Parte I: Pesos-pena

Quem acompanha este blog provavelmente já sabe da minha profunda admiração pela microcervejaria mineira Wäls, sobre a qual já escrevi aqui e que, para mim, sempre figurou entre as 3 melhores cervejarias nacionais pelo conjunto da obra. A cervejaria iniciou suas atividades em um distante 1999, mas despontou no cenário nacional em 2007, com o lançamento de sua hoje premiadíssima Dubbel. O último ano trouxe uma série de novidades e eventos marcantes para a Wäls – no bom e também no mau sentido, infelizmente – e, acima de tudo, um montão de novas cervejas sobre as quais quero falar nesta postagem e na próxima.

Altos e baixos

Pelo menos este caneco é nosso...
Fonte: revistabeerart.com
Em abril de 2014, a Wäls realizou um feito inédito para as cervejarias brasileiras: conquistar o maior prêmio do concorridíssimo World Beer Cup, concurso realizado anualmente nos EUA e que talvez tenha peso maior do que qualquer outro certame realizado no mundo. Aliás, dois prêmios de uma só vez: uma medalha de ouro para a Wäls Dubbel na categoria “Belgian-style Dubbel” e uma medalha de prata para a Wäls Quadruppel, na categoria “Belgian-style Ale”. Difícil saber qual medalha é mais significativa. Claro que o ouro é a consagração máxima, mas a prata da Quadruppel foi obtida numa categoria mais difícil, concorrendo com uma ampla gama de cervejas de inspiração belga sem estilo definido. A honra de ser uma cervejaria brasileira premiada nesse concurso é dividida apenas com a Eisenbahn, que conquistara uma prata em 2008 com sua Dunkel. A premiação veio em ótima hora, já que a Wäls começou a exportar para os EUA e planeja produzir em território americano em breve.

No mesmo ano em que a Wäls atingiu seu máximo reconhecimento, porém, também teve aquele que talvez tenha sido o mais duro golpe em sua imagem no mercado nacional. Desde 2009, quando do lançamento da Quadruppel, a Wäls comercializa algumas cervejas de sua linha em garrafas de vidro verde com rolha. A princípio, as rolhas eram de cortiça natural – e, devo dizer, eram dificílimas de se remover. Depois, a cervejaria trocou a cortiça por rolhas de um material sintético. E a perda do charme da cortiça não foi a única consequência. Cerca de um ano atrás, o fornecedor das rolhas mudou a composição do material, e o pesadelo começou. As garrafas arrolhadas começaram a exibir repetidamente sintomas de oxidação, perda de carbonatação e contaminação bacteriana. Aparentemente, o novo material tinha problemas de vedação. As reclamações começaram a chover, e comprar cervejas arrolhadas da Wäls tornou-se quase uma loteria. Eu mesmo cheguei a tomar pelo menos uma garrafa totalmente comprometida. O blog O Mosto Crítico escreveu uma matéria sobre isso que conta todos os detalhes. A cervejaria veio a público explicando o problema e dizendo que o material das rolhas já havia sido trocado por um outro, que não exibe o mesmo problema. Todas as garrafas envasadas a partir de março de 2014 já saíram de fábrica com o material novo. Mas as garrafas “de loteria” ainda estão por aí, nos pontos de venda, esperando para surpreender consumidores incautos.

Os últimos 12 meses, porém, não foram só marcados por conquistas e polêmicas envolvendo a cervejaria. Desde agosto de 2013, a Wäls tem lançado uma enxurrada de novas cervejas, e é sobre elas que eu quero falar aqui. Desde o lançamento da Dubbel em 2007, a Wäls vinha se especializando em estilos belgas. Mas, como não é novidade para ninguém, 2013 foi o ano da escola americana e das IPAs no Brasil. E a Wäls entrou na tendência, lançando um monte de novas receitas, a maior parte das quais inspirada em estilos yankees. Tentei provar todas, mas, sinceramente, o ritmo de lançamentos foi tão intenso que tive de deixar de fora uma: a Wäls Have a Nice Saison, saison de natal feita com exclusividade para o clube de cervejas Have a Nice Beer. Mas não vai faltar cerveja para abordarmos!

Leves e refrescantes

Fonte: screamyell.com.br
Curiosamente, os novos lançamentos da Wäls podem ser divididos em cervejas leves e refrescantes, por um lado, e cervejas pesadas e intensas, por outro. 8 ou 80. Comecemos pelas primeiras. A Wäls Stadt Jever homenageia o bar homônimo, localizado em Belo Horizonte e de propriedade da família Carneiro, a mesma que comanda a Wäls. A receita é uma lager sutilmente tostada, à semelhança de uma Vienna lager, com dry hopping de uma variedade de lúpulo alemã chamada “Mandarina bavaria”. Traz coloração dourada bem escura, quase alaranjada, e bom creme. No aroma, predominam as sensações trazidas pelo lúpulo Mandarina, com sensação floral/herbal tipicamente alemã (lembrando gerânios, lavanda, mentol e alecrim) acompanhada de notas cítricas (laranja e limão) e um aroma marcante de petróleo. Pão integral e castanha de caju denunciam a leve tosta do malte, e um toque de fermento ressalta a impressão de panificação. Há um breve ataque de doçura na boca, mas predomina um amargor preciso e refrescante, que termina num final oleoso e levemente salgado, muito apetitoso. O corpo é leve para mediano, com alguma cremosidade. Ótima cerveja para se beber às talagadas, de preferência embalada por uma boa conversa em mesa de bar e uma carne grelhada sequinha. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Verdade seja dita: o blog Calmantes com 
Champagne 2.0 manda muito bem 
nas fotos de cervejas.
Fonte: screamyell.com.br
A Wäls Verano é uma American pale ale com um interessante toque maltado lembrando a escola alemã. No copo, apresenta cor âmbar escura, levemente acobreada, com levíssima turbidez. Há um dueto afinado entre o malte e o lúpulo, numa receita que prima pelo equilíbrio entre os ingredientes. O malte traz uma riqueza e profundidade de sabores atípicos para o estilo, lembrando até uma pilsner tcheca com seus tons de panificação, massa fresca e mel. O lúpulo traz uma primeira investida cítrica e herbal, bem americana, com mousse de maracujá, capim fresco e laranja, mas depois vai abrindo um aroma mais floral, com rosas, camomila e tons apimentados que reforça ainda mais a semelhança com uma Bohemia pilsner. A cervejaria divulga apenas o lúpulo Columbus, mas eu tive uma impressão muito forte da variedade tcheca Saaz. Doçura e amargor se alternam na boca e conduzem a um final em que ambos se dão as mãos em equilíbrio. O corpo é leve, aguado e refrescante, com aquela sensação de limpeza de paladar advinda da baixa mineralização da água, lembrando mais o final de uma lager do que de uma pale ale. Cerveja equilibrada e de bom drinkability, com curiosa mistura de elementos da escola americana e alemã mas sem grande destaque. (Clique aqui para ver a avaliação completa)


Devidamente harmonizada com um hambúrguer da casa.
Fonte: vejabh.abril.com.br
A Wäls Duke’n’Duke Jazzy Pale Ale foi feita para a hamburgueria Duke’n’Duke, em Belo Horizonte (que, aliás, vale muito a visita pelo ambiente, pela trilha sonora jazzística e pelas batatas fritas matadoras). Confesso que não entendi o estilo. A cerveja se autointitula “pale ale”, mas é uma lager. Refere-se ao estilo inglês, mas é mais clara que uma English pale ale tem lúpulos com forte acento “novo-mundista”. Que seja. No copo, mostra um dourado bem escura, já pendendo ao âmbar. No aroma, o predomínio é dos lúpulos, de perfil bem cítrico e herbal, lembrando um pouco a deliciosa variedade Sorachi Ace. Lichia, lima-da-pérsia, capim-limão, pinho e gerânios convivem com toques de pimenta e laranja, em ótima complexidade. O malte traz pão branco e mel. Ela entra amarga na boca, segue-se uma doçura maltada ao engolir e, ao final, persiste novamente um amargor oleoso que, no entanto, é um pouco inexpressivo. O corpo é leve para mediano, mais seco que uma English pale ale, com textura pouco marcante. Acredito que, se o intuito era harmonizar com os hambúrgueres da Duke’n’Duke, um perfil de malte levemente mais tostado, mais na linha inglesa, teria caído bem. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Uma session convincente

A mais recente das cervejas leves e refrescantes da Wäls segue a tendência atual das chamadas “session beers”, receitas de teor alcoólico mais baixo, pensadas para serem bebidas em grande quantidade. Você pode perfeitamente chamar estilos tradicionalmente mais leves de session beers, mas o termo tem sido usado recentemente para versões de baixo teor alcoólico de outros estilos normalmente mais intensos. Tenho minhas reservas em relação ao conceito, como ele tem sido posto em prática pelas micros nacionais. Para que uma session beer cumprisse adequadamente seu papel, que é o de ser bebida em quantidade, ela precisaria ter preço mais baixo, mas não é isso que tem ocorrido com as session artesanais brasileiras. Aí fica difícil.

Fonte: gastrolandia.uol.com.br
Mas, à parte essa minha reserva de degustador de renda restrita, do ponto de vista meramente sensorial, a Wäls, Session! Citra IPA é um espetáculo. A receita coroou com perfeição os intuitos da Wäls de lançar uma cerveja leve e de alta drinkability dentro da escola norte-americana. A impressão que dá é que as receitas anteriores haviam sido como “testes” para esta - que foi bem mais divulgada, diga-se de passagem. A cervejaria usa apenas o lúpulo Citra, visivelmente mais em dry-hopping do que na fervura, resultando em amargor gentil e aroma profuso e vívido. Muitas frutas cítricas, com notas de maracujá, limão e uma lichia perfumada com nuances petroquímicas (que lembra vinhos brancos feitos com a deliciosa uva Gewürtztraminer), e também muito herbal, com capim fresco, cidreira e pinheiro, além de um toque de lavanda. O malte, sugerindo pão branco, ainda se faz sentir.

Mas é na boca que vem a verdadeira surpresa: o corpo é muito leve, crocante, aguado num bom sentido, com um final de boca extremamente limpo e leve. Há uma refrescante acidez cítrica inicial, mas depois predomina um amargor gentil que persiste elegantemente na boca, e não na garganta, como é mais comum ocorrer com IPAs. O toque de mestre da receita (além da extração virtuosa de tanta complexidade do lúpulo Citra) foi a baixa mineralização da água, que deixou a Session! Citra IPA com uma sensação leve como pluma na boca, com final levíssima que convida a beber em talagadas. Acredito que a Wäls realmente conseguiu imprimir um diferencial “session” nesta receita, diferentemente do que acontece com outras session beers que simplesmente têm teor alcoólico mais baixo, mas não trazem nada que chame atenção na boca. Para mim, um dos melhores lançamentos nacionais de 2014 até agora – e olha que eu nem sou muito chegado nessas novas “session beers”! (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Na próxima postagem, falaremos sobre os novos lançamentos pesos-pesados da Wäls, incluindo a receita de maior teor alcoólico da cervejaria até o momento! Também falaremos sobre as surpresas que tive em minha última visita à fábrica. Não perca!


terça-feira, 1 de julho de 2014

Yes, nós somos selvagens! - Way Beer Sour Me Not

Há algum tempo eu tinha escrito aqui uma postagem sobre o desolador cenário do mercado de cervejas brasileiras para quem, como eu, é fã de sour ales. Reclamei da virtual inexistência de cervejas selvagens produzidas pelas cervejarias nacionais, salvo raríssimas exceções de rótulos praticamente inacessíveis ao consumidor comum – seja por não serem distribuídos comercialmente, seja pelo preço abusivo. As sour ales são um grupo de estilos cervejeiros em franca ascensão no mercado mundial, mas o Brasil parecia estar dormindo no ponto – mesmo apesar da tradição de fermentados selvagens autóctones que temos em terras brasílicas.

A linha Sour Me Not, da cervejaria Way.
Fonte: www.beershow.com.br
Isso foi em janeiro deste ano. Seis meses atrás. Hoje posso me alegrar em dizer que já há sinais de que as cervejarias nacionais estão despertando para as fascinantes contribuições que micro-organismos como as Brettanomyces, os Lactobacillus ou os Pediococcus podem dar às cervejas ditas “selvagens” ou “azedas”. Neste ano, tenho visto cervejarias se movimentando para produzirem rótulos com fermentação lática, com adição de Brettanomyces e até sour ales tradicionais “completas”, com maturação em madeira, que provavelmente ainda demorarão alguns anos para atingir as prateleiras. Em março, no Festival Brasileiro de Cerveja, foi possível ver os primeiros sinais desse despertar selvagem. Os primeiros frutos a chegarem ao consumidor regular foram as cervejas da linha Sour Me Not, lançada pela microcervajaria Way, da região metropolitana de Curitiba, às quais quero dedicar o texto de hoje.

Sour Me Not

A microcervejaria Way Beer tem se destacado no mercado nacional por produzir estilos cervejeiros modernos, sintonizados com tendências globais, e também por colocar seus lançamentos no mercado com boa distribuição e preços interessantes. A linha Sour Me Not não foge da regra. Trata-se de três cervejas fermentadas com uma cultura mista de Saccharomyces (leveduras cervejeiras tradicionais), Pediococcus e Lactobacillus (bactérias produtoras da ácido lático). As três usam a mesma receita-base, que possui um baixo teor alcoólico de 3,5% e lupulagem muito discreta, e se diferenciam pela posterior adição de frutas – morango, graviola e acerola. A cervejaria chegou a testar 15 frutas diferentes e optou por essas 3 para o lançamento da linha, mas já prepara novos rótulos com outras frutas.

Para quem não está familiarizado com a enorme variedade de estilos de cervejas selvagens, vale a pena fazer alguns adendos, até para desmistificar informações equivocadas que vejo circularem por aí. Essas não são cervejas de fermentação espontânea – as bactérias são adicionadas no processo produtivo de forma controlada, lado a lado com as leveduras tradicionais de ales. Também não recebem adição de Brettanomyces e, portanto, não desenvolvem as duas características associadas a essas leveduras: superatenuação e compostos fenólicos de aromas animais. Sendo assim, as cervejas da linha Sour Me Not não têm praticamente nada a ver com fruit lambics, que fermentam espontaneamente e têm as Brettanomyces como protagonistas em seu perfil sensorial. Por favor, corrija quem quer que você escute falando essa bobagem.

Berliner Weisse, com adição de xaropes aromatizantes.
Fonte: www.lecker.de
Na verdade, se quisermos aproximar as cervejas da Way de algum estilo selvagem tradicional, o modelo mais próximo talvez sejam as Berliner Weisse, as cervejas de trigo da região de Berlim, que contam com fermentação lática. Em comum com o estilo alemão, as cervejas da Way possuem o baixo teor alcoólico, a refrescante acidez lática, a ausência de Brettanomyces (resultando em um aroma mais simples e direto) e o sabor perceptível de maltes claros. A diferença é que as Way levam adição de frutas (morango, acerola e graviola) após a fermentação. Na verdade, a cervejaria usa a polpa pasteurizada das frutas, imagino que para evitar contaminação com outros tipos de micro-organismos, incluindo eventuais Brettanomyces residentes nas cascas das frutas in natura.

As três azedas da Way

Comecemos pelas características comuns aos três rótulos da linha, que não são poucas, já que todos usam a mesma receita-base. Na verdade, é possível encarar as Way Sour Me Not não como cervejas totalmente diferentes, mas como variações de uma mesma cerveja – mais ou menos como se faz quando se adicionam diferentes aromatizantes a uma mesma Berliner Weisse.

Not for babies.
Fonte: my10online.com/
Aviso aos navegantes: essas não são sour ales suaves e amigáveis. Em todas elas, a acidez lática é assertiva e chega até a ser agressiva em alguns momentos, o que certamente vai incomodar quem não está acostumado com esse tipo de cerveja. Não acho que sejam boas portas de entrada para o mundo das cervejas selvagens, portanto. Contudo, a receita-base traz bastante doçura de malte com o intuito de equilibrar a acidez – as cervejas não são tão secas quanto sugere a descrição comercial do rótulo, e nem de longe tão secas quanto uma lambic. Todas trazem um ataque ácido muito intenso na língua e nas bochechas e depois fecham o gole trazendo doçura residual do malte, lembrando sabores de pão branco, biscoito doce e baunilha, em diferentes intensidades. A textura tem boa adstringência, com sensação de amarrar a boca que ajuda e equilibrar a doçura.

Quanto ao aroma, os traços das frutas são suaves, muito menos vívidos do que numa fruit lambic. Na verdade, predomina inicialmente um aroma residual de fermentação lática, que lembra muito o cheiro de probióticos láticos do tipo Yakult, e que me incomodou um pouco. Os sabores da fruta vêm em segundo plano e vão se abrindo com o tempo e o aumento da temperatura. Um ponto negativo é que esses aromas, em vez de remeterem às frutas frescas ou maduras, lembram mais o cheiro de fruta passada ou fermentada (isso é claro na versão com morango), o que traz novamente um certo incômodo. Já o corpo é mediano, não tão seco quanto a maioria das sour ales, com uma certa cremosidade que reflete a doçura residual do malte. No conjunto, são sour ales simples e diretas, sem grande complexidade, que põem em primeiro plano a interação entre acidez, fruta e malte.

A versão que menos me agradou foi a que recebe adição de morango. O caráter da fruta é apenas moderado e lembra a sensação de morangos cozidos e passados, e não da fruta fresca e madura. A doçura final é alta e vai ficando um pouco enjoativa com o tempo. A mistura de doce/abaunilhado, lático e da fruta lembra um pouco a sensação de um cheesecake. (Clique aqui para ver a avaliação completa) A versão com acerola, por sua vez, é a mais seca e firme na boca, e traz uma acidez mais elevada, que consegue cortar melhor a doçura do malte, resultando em uma cerveja mais refrescante. Os taninos da fruta dão uma forte e gostosa sensação de adstringência. O aroma da fruta é o mais discreto da linha, mas sente-se uma certa citricidade que remete a acerola e a suco de laranja. É a mais interessante na boca, embora possa ser um pouco chocante devido à intensidade da acidez. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: http://screamyell.com.br/
A versão com graviola, a meu ver, é a que tem conjunto mais equilibrado e bem-acabado, considerando tanto a sensação na boca quanto o aroma. O aroma da fruta vai se abrindo com o tempo e traz boa vivacidade e suculência, adicionando tons cítricos, tropicais e terrosos bem típicos da graviola (que eu adoro), em alguns momentos conseguindo encobrir a sensação de “passado” da fermentação lática. Na boca, sua doçura fica em um ponto intermediário entre a versão com morango e a com acerola: nem tão enjoativamente doce quanto a primeira, nem tão ácida e firme quanto a segunda. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Afiando a produção nacional da sour ales

As cervejas da linha Way Sour Me Not são excelentes sour ales? Sinceramente, eu adoraria dizer que sim, mas não seria verdade. Na real, elas têm diversas arestas e pontas soltas a aparar. Na minha visão subjetiva, como apreciador de cervejas selvagens, elas têm acidez um pouco agressiva demais e, para compensar, trazem doçura residual de malte em excesso. O resultado não é equilibrado, mas as torna apenas um pouco difíceis de beber e enjoativas. Eu tomei as três em três dias consecutivos e já fiquei um pouco empapuçado – imagino como seria se eu tentasse beber todas na sequência. Na minha visão, elas deveriam ser bem mais secas e, ao mesmo tempo, ter acidez mais gentil, o que resultaria em um conjunto mais delicado, refrescante e fácil de beber, como são as Berliner Weisse. Uma fermentação lática menos vigorosa poderia não só atenuar a acidez como também disfarçar melhor o aroma de probiótico, que ficou intenso demais (já que não há Brettanomyces para cobrir o aroma da fermentação lática).

Ao mesmo tempo, o aroma da fruta precisa se tornar mais afiado e fresco. Talvez o uso da fruta fresca (ou quem sabe da fruta congelada, mas inteira), em vez da polpa pasteurizada, possa ajudar nesse sentido. As cascas concentram boa parte do frescor aromático das frutas, e as sementes adicionam mais camadas de complexidade e aromas inusitados que contribuem com a complexidade geral (basta ver a diferença gritante entre as lambics comerciais, que empregam suco de frutas, e as tradicionais, que usam a fruta inteira). Um aroma mais vigoroso da fruta também ajudaria a encobrir o aroma lácteo da fermentação e potencializaria a refrescância da cerveja.

Isso significa que devemos esquecer as cervejas da linha Way Sour Me Not? Óbvio que não! É preciso considerá-las como experimentos, ou como degraus que ajudarão a construir uma tradição mais sólida de estilos selvagens no Brasil. Seu valor reflete mais a ousadia e a importância histórica do que a qualidade intrínseca das cervejas – pelo menos por enquanto, no primeiro lote. Fermentação lática é algo muito novo no Brasil e as cervejas não possuem o know-how para realizá-la, então eu tenho a expectativa de que, com o tempo e o acúmulo de experiência, as cervejas da linha sejam progressivamente aprimoradas. Os norte-americanos também erraram muito nas suas primeiras sour ales, mas hoje já estão fazendo produtos de qualidade comparável aos rótulos do Velho Mundo.

Outro mérito indiscutível da linha Way Sour Me Not é a tentativa de transformar as sour ales em produtos acessíveis ao consumidor. Cervejas selvagens são estilo difíceis de produzir, que podem alcançar preços muito altos em comparação com ales normais. Considerando o alto patamar de preços de boas cervejas no Brasil, isso poderia facilmente elevar o preço de uma sour ale a patamares que praticamente inviabilizariam seu consumo. A Way conseguiu pôr no mercado três sours mais simples a um preço bastante amigável, não muito superior à linha básica da cervejaria. Aqui em São Paulo, encontram-se as garrafinhas de 310ml da linha em torno dos R$ 15. E, acredite, você não precisa de mais que 310ml delas.


Espero que esta postagem tenha incentivado as pessoas a prestigiar essas cervejas que talvez sejam os primeiros movimentos de um despertar selvagem brasileiro a frutificar a médio prazo. Fica, ainda, a sugestão de degustar uma delas comparando-a a uma lambic com frutas de boa qualidade para entender, com humildade, o quanto ainda precisamos nos aprimorar.