É fato: as cervejas com maturação em madeira vieram para
ficar. Se, há alguns anos, rótulos envelhecidos em barris de carvalho eram
raros e difíceis de encontrar, hoje a oferta desse tipo de cerveja cresceu
muito no mercado brasileiro. Mais importante que isso: antes eram apenas algumas
poucas importadas que tinham estágio em madeira, enquanto hoje as principais
microcervejarias brasileiras também têm feito experimentos com barris. Os
primeiros resultados desse “surto madeireiro” brazuca já estão nas prateleiras,
e não há dúvida de que mais outros chegarão.
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O extraordinário barrel room da
cervejaria
Goose Island, em Chicago. Um dia a gente chega lá.
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A maturação em madeira é uma técnica cervejeira muito
antiga, já que, antes do surgimento de tanques de maturação feitos em aço, os
barris e tonéis de madeira eram o recipiente mais comum para fermentação e
maturação das cervejas. A maioria das cervejarias migrou para o aço ao longo do
século XIX, de modo que o uso da madeira foi se tornando mais e mais raro. Isso
não foi fortuito. A madeira apresenta algumas dificuldades para o cervejeiro:
em comparação com o inox, ela é porosa e difícil de higienizar completamente,
ocasionando o surgimento de infecções e microorganismos indesejáveis para a
maior parte dos estilos cervejeiros. Além disso, a troca de compostos químicos
entre a madeira e o líquido ocasiona alterações no sabor, no aroma e na textura
da cerveja, gerando diferenças difíceis de serem padronizadas. A idade da
madeira, o tamanho dos barris, o tratamento e a tosta empregados, tudo isso
causa alterações no produto final, de modo que é possível dizer que cada barril
vai dar origem a uma cerveja diferente. A substituição da madeira pelo inox,
portanto, fez parte do conjunto de transformações da indústria cervejeira no
século XIX, que garantiram maior padronização dos produtos.
Ainda assim, a madeira seguiu sendo usada em alguns estilos
tradicionais, como algumas old ales inglesas, bem como as lambics e as Flanders
red ales da Bélgica. Mais recentemente, a maturação em madeira foi resgatada
pela escola norteamericana, que voltou a empregar barris para maturar uma
enorme diversidade de estilos. A princípio, a madeira passou a ser usada para a
produção de estilos alcoólicos e robustos, como imperial stouts. Com o tempo,
porém, começaram a ser usados em outros estilos, e hoje há até IPAs maturadas
em madeira. O guia de estilos da Brewers Association, antenado às principais
tendências do mercado cervejeiro, inclui nada menos que 5 categorias especialmente
reservadas para cervejas envelhecidas em madeira (sem contar os estilos em que
a madeira já era tradicionalmente empregada), atentando para diferenças em
coloração, teor alcoólico e acidez da cerveja-base.
Madeira, madeiras
Um dos experimentos mais interessantes feitos pelas
microcervejarias é o emprego de diferentes tipos de barris para maturar a mesma
cerveja-base. As diferenças no produto final são surpreendentes. O estratagema
mais frequentemente empregado pelas cervejarias para variar a madeira é maturar
suas cervejas em barris de segundo uso que foram usados antes para maturar
outros tipos de bebidas. Assim, pode-se oferecer uma mesma imperial stout
maturada em barris de cognac, vinho tinto, vinho do Porto, uísque, Bourbon, e
por aí vamos – como faz a belga Struise com sua prestigiada linha Black Damnation. O uso ubíquo de barris de segundo uso levou até ao surgimento de um
conceito equivocado de que a bebida anteriormente usada nos barris afetaria o
produto final mais do que a madeira em si – assim, cervejas maturadas em barris
de uísque são descritas como tendo “sabor de uísque”, por exemplo, o que é uma
tremenda simplificação dos efeitos da madeira sobre a cerveja. A Mikkeller foi
ainda mais longe para produzir sua série Forêt: maturou a mesma cerveja-base
(uma “barley wine” de 19,3% ABV) em barris feitos com carvalho francês de três
diferentes origens geográficas, variando o grau de tosta dos barris.
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A majestosa amburana, cuja madeira é
amplamente
empregada na indústria da cachaça.
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Contudo, o que permanece quase sempre constante nas cervejas
maturadas em madeira mundo afora é que, com pouquíssimas exceções, os barris
empregados são sempre de carvalho – seja francês, seja americano. Isso reflete
o fato de que o carvalho é a madeira mais amplamente empregada na produção de
bebidas alcoólicas ao redor do mundo, devido à sua durabilidade,
impermeabilidade e bom impacto sensorial nas bebidas. Contudo, nesse quesito em
particular, o Brasil oferece uma interessante exceção: nossa brasileiríssima cachaça
é uma das poucas bebidas que são corriqueiramente maturadas em barris e tonéis
de diferentes tipos de madeira. Há cachaças envelhecidas em barris de carvalho,
ipê, amendoim, amburana, bálsamo, jequitibá, e por aí vamos. E cada tipo de
madeira interage de formas muito diferentes com a bebida dentro dos barris,
gerando resultados completamente distintos.
Parece-me evidente que, se a indústria cervejeira brasileira
busca um diferencial na produção de estilos maturados em madeira, deve se valer
da experiência das cachaçarias brasileiras com o uso de diferentes tipos de
madeira. Por enquanto, o carvalho ainda predomina nas salas de maturação das
microcervejarias nacionais, mas há experimentos com outras madeiras que podem
abrir todo um imenso horizonte de variações de cores, sabores, texturas e
aromas. Em especial, algumas cervejarias têm investido no emprego de uma
madeira tipicamente sul-americana chamada amburana (conhecida ainda como
umburana, imburana-de-cheiro ou cumaru), extraída de uma árvore (a Amburana cearensis) que, infelizmente,
encontra-se ameaçada de extinção.
A amburana é uma velha conhecida dos apreciadores de cachaça
– e, devo dizer, uma das minhas madeiras preferidas para maturação de uma boa “amarelinha”.
Uma das minhas cachaças preferidas, a mineira Claudionor, da cidade de Januária,
é maturada em amburana por 1 ano antes de ser engarrafada. A amburana tem um
aroma marcante, adocicado e sedutor, que me lembra muito cocada preta,
baunilha, móveis da fazenda (a amburana também é usada na fabricação de
mobiliário, em parte devido ao seu odor agradável) e um toque de especiarias
doces, como a canela.
Três cervejas maturadas em
amburana
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Fonte: |
Temos hoje, no mercado cervejeiro, três rótulos com
maturação em barris de amburana, todos com perfis muito diferentes. O pioneiro
foi lançado em 2011 e faz parte de uma série especial, de inspiração norteamericana,
produzida pela cervejaria Bäcker, intitulada 3 Lobos. A 3 Lobos Bravo é uma imperial porter que matura em barris de
umburana, com receita do mestre Paulo Schiaveto. É provavelmente a cerveja com
estágio em barris mais barata do mercado artesanal, com um excelente
custo-benefício, podendo ser encontrada a partir de R$ 12 pela long neck. A
mais escura das três, apresenta uma coloração marrom bem escura, quase preta.
Seu aroma exala indulgência e doçura em doses cavalares: muito chocolate ao
leite, açúcar mascavo e caramelo dos maltes interagindo com toques acentuados
da umburana, remetendo a cocada preta, madeira doce e mobiliário colonial.
Impossível não lembrar de cachaça! Toques frutados (banana e ameixas) ficam em
segundo plano. Na boca, uma avalanche de doçura do começo ao fim, com amargor
secundário mas correto (os respeitáveis 42 IBUs só equilibram a doçura do
malte) e final longo, persistente, com retrogosto de coco, chocolate e madeira.
O corpo é intenso e a textura é bem licorosa, açucarada. Os 9% de álcool são
perceptíveis, mas não chegam a incomodar decisivamente. Os primeiros lotes
dessa cerveja ficaram prejudicados por um toque muito intenso de acetaldeído
(que tem aroma químico e acentua desagradavelmente o álcool), o que fez com que
a cerveja deixasse uma má impressão nos degustadores, mas tenho a impressão de
que a receita foi mais bem ajustada depois, o que elevou a qualidade da cerveja
significativamente. A 3 Lobos Bravo
tem boas condições para envelhecimento, de modo que é uma ótima opção para
encher a adega!
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Fonte: pessoal |
A segunda cerveja maturada em umburana a ser lançada no
mercado brasileiro foi a Way Amburana Lager. É uma das poucas opções de lagers envelhecidas em madeira, sendo que
a receita-base se inspira levemente no estilo doppelbock, mas é um pouco mais
seca e delicada. Na verdade, a receita foi toda pensada para interagir com a
madeira, e a cervejaria também desenvolveu uma tosta específica dos barris para
alcançar o resultado almejado. A Way Amburana Lager tem uma proposta bem diferente da 3 Lobos: trata-se de uma
cerveja mais leve, com alta drinkability considerando seu teor alcoólico, de
sabor e sensação amena e agradável na boca, mas sem abdicar de um toque
decididamente amadeirado no sabor. Sua coloração lembra o mogno, com um bonito
marrom-avermelhado e uma ótima espuma clara, muito persistente, deixando rendas
na lateral do copo. O aroma é o menos expressivo das três cervejas analisadas
aqui, predominando no nariz um perfume floral um pouco chapado dos lúpulos e um
toque do malte caramelado, lembrando ainda melaço de cana. O que lhe falta de
profundidade no nariz, porém, é compensado pela profusão de sabores na boca: o
caramelo e o melaço do malte interagem lindamente com a madeira criando a
impressão de toffee e até um toque de cappuccino. A amburana está lá com
sabores de cocada preta, móveis coloniais, baunilha doce e um toquezinho sutil
de defumação. Além disso, sentem-se frutas escuras e vermelhas, com destaque
para cerejas e um agradável sabor de Amaretto que persiste na boca. Predomina a
doçura do malte, mas o amargor secundário se faz perceber de forma firme e
equilibrada no final. O corpo é leve para mediano, sutil para o estilo, com
carbonatação suave e textura macia e agradavelmente acetinada. Os 8.4% ABV
estão diabolicamente ocultados, tornando-a perigosamente fácil de beber. Falta-lhe
a intensidade avassaladora que aprendemos a esperar de cervejas maturadas em
madeira, mas ela compensa mostrando-se fácil de beber e agradável. Uma cerveja
mais suave que a média do estilo, mas com um sabor agradavelmente amadeirado.
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Fonte: |
A mais recente cerveja com maturação em amburana que chegou
ao mercado faz parte da recente e já muito prestigiada linha Wood-Aged Series,
da microcervejaria curitibana Bodebrown. A proposta da linha é apresentar
diferentes cervejas com perfil adequado para longos períodos de guarda, todas
maturadas em diferentes tipos de madeira. Depois da estreia da série com uma
excelente strong ale maturada em carvalho, o segundo rótulo foi a Bodebrown Wee Heavy Wood Aged Series 2014.
Trata-se de uma versão da premiada strong Scotch ale da cervejaria, maturada
durante 6 meses em dornas de amburana de 750 litros, anteriormente utilizadas
para a produção de cachaça pela cachaçaria gaúcha Weber Haus. Cerveja séria,
seríssima. De coloração marrom-avermelhada, mostrou pouca espuma, o que é comum
em cervejas maturadas em madeira. Seu aroma é, de longe, o mais complexo das
três cervejas analisadas: uma tonelada de toffee, doce de leite e cocada-preta
interagem em primeiro plano. A umburana imprime notas de baunilha, especiarias
doces (canela e cravo) e uma sensação mineral, lembrando cal e gerânios, que se
encontra em algumas cervejas maturadas em madeira, e que não é totalmente
agradável – provavelmente seu maior defeito. Bananas passas e tâmaras secas
dão-lhe um interessante toque frutado. Um quê de defumação, lembrando copa e
embutidos defumados, reflete a pequena porcentagem de maltes defumados da
receita-base e interage bem com a doçura do conjunto, sem ofuscá-la. Há uma
certa untuosidade de DMS ao fundo, que não chega a comprometer a cerveja
decisivamente. Na boca, mais uma vez a doçura é intensa e predominante, com
amargor suficiente apenas para equilibrá-la, sem roubar a cena, e o retrogosto
é muito persistente, macio e vívido. O corpo é intenso e licoroso sem exageros –
em algum lugar entre a leveza da Way e o peso da 3 Lobos. Para mim, é a mais
interessante e complexa das três cervejas avaliadas, ainda que tenha
apresentado algumas arestas a aparar no aroma. A cerveja foi vendida apenas no
site da cervejaria, em sistema de pré-venda – portanto, quando sair a safra
2015, não bobeie e garanta as suas garrafas!
Se compararmos as três cervejas pelas suas principais
características, chegaremos ao seguinte resultado:
A 3 Lobos Bravo
se destaca pela torrefação doce e pela intensidade. A Way Amburana Lager, por sua vez, mostra um perfil mais suave e
elegante, fácil de beber. A Bodebrown Wee Heavy Wood Aged Series 2014 se localiza numa espécie de intermediário
entre as duas anteriores, mas ganha proeminência especialmente pela complexidade
aromática. Três excelentes cervejas maturadas em madeira, cada uma com suas
características. Mais importantes que as diferenças, porém, é a marcante
semelhança entre três cervejas de propostas e estilos-base tão distintos entre
si. Essa unidade prontamente perceptível entre as três, que as diferencia de
quaisquer outras wood-aged beers que eu já provei, vem evidentemente do perfume
doce e inebriante da amburana. Prova de que o uso criativo da nossa
biodiversidade na produção cervejeira não precisa se restringir à profusão, já
um tanto banal, de frutos tropicais em cervejas brasileiras. Se buscarmos nossa
inspiração na secular indústria colonial da cachaça e na sua diversidade de
madeiras, encontraremos um sólido manancial para experimentação de técnicas
produtivas que pode conferir às microcervejarias brasileiras um diferencial
decisivo na produção de cervejas maturadas em madeira.