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Esse cara sabe dar uma
festa!
Bacanal, de Michel-Ange Houasse (1719)
Fonte:
http://www.lib-art.com/ |
Tenho uma confissão a fazer aos meus leitores cervejeiros.
Andei pulando a cerca. Sim, eu fui infiel a Gambrinus e às hostes do malte de
cevada. À noite, quando ninguém via (OK, talvez eu tenha dado bandeira vez ou
outra), andei saindo de fininho para frequentar umas festinhas dadas pelo
colega Baco. A bebida e a comida estavam ótimas e eu cheguei à conclusão de que
as regras da monogamia definitivamente não se aplicam às bebidas alcoólicas.
Faço até apologia aberta e deslavada à infidelidade: meus amigos cervejeiros,
bebamos vinho de quando em quando!
Faz algum tempo que eu tenho degustado vinhos e estudado um
pouco sobre o nobre fermentado de uvas, e devo dizer que tem sido bastante
revigorante. Para o apreciador de cervejas, o vinho é familiar o suficiente
para que consigamos atingir o mesmo prazer da degustação que estamos
acostumados a ter com um bom copo de cerveja; ao mesmo tempo, ele é diferente o
bastante para que sejamos desafiados sensorialmente. É como estar perdido em
território desconhecido, mas sabendo que você tem uma bússola nas mãos. É
aquela sensação que todo professor sente quando entra pela primeira vez na sala
de aula de uma turma nova: ele está careca de dar aula e sabe de cor e salteado
o que fazer, mas não consegue evitar aquele leve frio na barriga. Todo
apreciador de cerveja um dia chega a um ponto de seu aprendizado em que ele já
não pode mais ser surpreendido com facilidade por um fermentado de cevada.
Nesses momentos, o vinho pode te dar de novo aquele pico de quando você ainda
tinha muito a aprender.
Decidi compartilhar um pouco dessa experiência com meus
leitores na esperança de motivá-los a buscar, talvez, uma experiência
semelhante. E resolvi começar por um dos meus tipos preferidos de vinho:
espumantes. Para restringir um pouco o vasto universo dos espumantes, falarei
sobre os brasileiros, especificamente, que são vinhos de ótimo custo-benefício
e uma excelente porta de entrada ao estilo. Todo mundo sabe o que é um
espumante e todo mundo já bebeu pelo menos uma tacinha no final do ano. Mas,
para muitos, ainda é aquele tipo de vinho que meio que “corre por fora”, que
você não leva realmente tão a sério quanto um tinto de responsa. Poucos vinhos
são bebidos com tanta frequência mesmo sendo tão mal compreendidos. Tá assim de
gente que nunca gastaria cem reais numa garrafa de vinho, mas se vê pagando R$
250 num Champagne sem nem entender direito o porquê. A verdade é que vinhos
espumantes podem ser tão encantadores, complexos e sofisticados quanto os
melhores tintos, e têm a capacidade de surpreender e hipnotizar com leveza e
sutileza. Mas, antes de continuarmos, convém limpar o terreno e esclarecer
alguns conceitos fundamentais. Afinal de contas, o que é um espumante?
Champagne ou espumante?
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Taí: em amarelo, a região
de Champagne,
na França. Se não veio daí, não é Champagne.
Fonte: http://www.terroir-france.com/
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Muita gente faz confusão no uso dessas palavras. Pudera: o
mundo dos vinhos tem um monte de denominações diferentes, mais até do que o
universo cervejeiro. Alguns acham que Champagne
é sinônimo de espumante. Outros consideram, pelo contrário, que são duas
bebidas completamente diferentes, e que o espumante seria uma espécie de versão
de menor qualidade do Champagne. Não
é nenhuma das duas coisas. O vinho espumante é um termo mais amplo, usado para
designar qualquer vinho efervescente, ou seja, com carbonatação – feito com
qualquer tipo de uva, qualquer que seja sua coloração. Já Champagne é uma AOC, ou “appelation d’origine controlé”, ou seja,
uma denominação controlada que só pode ser ostentada pelo vinho que cumprir uma
série de determinações. Para ser chamado de Champagne, o vinho espumante
precisa ser produzido na região francesa de Champagne, no nordeste da França,
deve ser feito empregando o método tradicional de refermentação na garrafa
(sobre o qual falaremos mais adiante) e não pode empregar nenhuma outra casta
de uva além da branca Chardonnay e das tintas Pinot Noir e Pinot Meunier.
Champagne, então, é apenas um tipo de espumante. Mas existem
vários outros, inclusive outras denominações controladas para vinhos
espumantes. Na Itália, o Asti é um espumante meio-doce, feito com a uva
Moscato, de baixo teor alcoólico, tradicional da região de Asti. O Prosecco é
um vinho espumante feito com a uva homônima, e a denominação só pode ser
empregada no Vêneto, na Itália – em todos os outros lugares do mundo, a uva
Prosecco deve ser chamada de Glera, embora essa restrição seja recente e ainda
não tenha “pegado” muito bem. Ainda na Itália, o Franciacorta é produzido pelo
método tradicional na região de Brescia, na Lombardia, usando as uvas
Chardonnay, Pinot Blanc e Pinot Noir. Na Espanha, o Cava é um vinho espumante
produzido pelo método tradicional em oito regiões delimitadas (sobretudo na
Catalunha), empregando normalmente as uvas Macabeu, Parellada e Xarel-Lo.
Todos os demais, produzidos fora das regiões controladas ou
que não atendam às exigências respectivas de cada região, devem ser chamados
simplesmente de espumantes. Hoje em dia, há espumantes produzidos em
praticamente todas as regiões produtoras de vinhos no mundo; contudo, poucas
são as que conseguiram estabelecer um padrão e uma identidade própria para
sustentar a criação de denominações de origem controlada. Em resumo: sim, o Champagne
é um vinho espumante, mas os dois termos não são sinônimos e nem
intercambiáveis. Toda maçã é uma fruta; mas nem toda fruta é uma maçã.
Uma breve história
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Há um motivo pelo qual
aprendemos a chamar
isso de “garrafa de Champagne”.
Fonte: |
O surgimento do vinho espumante pode ser considerado mais ou menos contemporâneo à adoção das garrafas na produção de vinhos, o que ocorreu por
volta do século XVII, quando se desenvolveu na Europa uma indústria de produção
de vidros. E essa história começou na região de Champagne, na França. Champagne
se localiza próxima ao paralelo 49º norte, para além do qual o cultivo das uvas
e a produção de vinhos de qualidade é muito difícil. Seu clima é frio e chuvoso,
com longos e rigorosos invernos que não favorecem a plena maturação das uvas e
nem a fermentação completa do mosto. Como resultado, no início da era moderna,
por volta do século XVI, Champagne produzia vinhos de qualidade inferior, de
baixo teor alcoólico e excessivamente ácidos, tanto que eram frequentemente
adoçados para mascarar a acidez. Para piorar, devido à fragilidade do clima
para a produção de uvas, algumas safras boas poderiam ser sucedidas por vinhos
extremamente desagradáveis nas safras subsequentes, impossibilitando a
padronização do produto.
Uma das particularidades do vinho de Champagne era o fato de
que sua fermentação era interrompida durante o inverno. Como as uvas eram
colhidas no outono, época de sua maturação, o vinho começava a fermentar e logo
vinham as baixas temperaturas do inverno, que interrompiam a atividade das
leveduras e a fermentação. Na primavera, a temperatura voltava a subir e o
vinho voltava a fermentar, espumando vigorosamente nas cubas. Quando o vinho
passou a ser engarrafado, surgiu outra dificuldade: quando recomeçava a
fermentação na primavera, o gás carbônico era produzido no interior das
garrafas fechadas, o que aumentava a pressão do líquido e fazia com que boa
parte das garrafas simplesmente explodisse. Os produtores (com atuação
destacada do abade Pérignon) desenvolveram várias técnicas de envase e
maturação para impedir as explosões e a perda do vinho, mas, por mais que
tentassem, não conseguiam impedir que o vinho resultante ficasse cheio de borbulhas,
o que lhes parecia um defeito seríssimo.
Ao longo do século XVII, porém, alguns produtores começaram
a buscar, deliberadamente, produzir vinhos borbulhantes, em parte para atender
ao mercado inglês, que começara a valorizar esse tipo de vinho. Estava feita a
transição: Champagne deixou de tentar imitar os vinhos tranquilos da Borgonha e
passou a produzir vinhos espumantes, que se tornaram uma especialidade local.
Com o tempo, os atributos distintivos do vinho espumante de Champagne começaram
a ser enfatizados pelos produtores. À época, o vinho era refermentado na
garrafa e comercializado com o depósito de leveduras no fundo (como ocorre
ainda hoje com as cervejas com refermentação na garrafa), mas isso tornava a
bebida turva e dificultava a visualização das bolhas. No século XIX, na casa
produtora da viúva (veuve, em
francês) Cliquot, foi desenvolvido um método para remover o fermento: a garrafa
era posta em pupitres, grandes suportes que permitiam colocar as garrafas progressivamente
de ponta-cabeça, propiciando o acúmulo de todo o fermento no gargalo. Esse
fermento era removido manualmente, deixando a bebida clara e límpida. Mais que
isso: com o aumento na qualidade dos vinhos, foi possível controlar melhor
aquilo que era um dos maiores defeitos do vinho de Champagne: sua alta acidez.
Com isso, tornou-se cada vez menos necessário adicionar açúcar para mascarar o
ácido, e começaram a surgir versões progressivamente mais secas da bebida,
muito mais elegantes e vibrantes.
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Pupitres com garrafas maturando.
Fonte: http://www.finewineconcierge.com/ |
A história da vinicultura de Champagne é um testemunho
acerca de como é possível converter um defeito em uma qualidade ao acentuar e
valorizar as características distintivas do produto local. Por questões
climáticas, Champagne nunca faria vinhos tintos tranquilos tão bons quanto os
da Borgonha. Seus vinhos eram ácidos, fracos e borbulhantes. Como reação, os
produtores locais começaram a aperfeiçoar justamente essas características. A
acidez foi mais bem controlada e exibida com orgulho por meio da adição de
quantidades cada vez menores de açúcar. As técnicas da segunda fermentação na
garrafa permitiram atingir um teor alcoólico mais compatível com o de outros
vinhos, compensando a submaturação das uvas. E a remoção do fermento da garrafa
possibilitou que as borbulhas pudessem ser observadas em toda sua fascinante
beleza. Champagne conseguiu converter todos os seus defeitos em qualidades, e
com isso produziu um tipo de vinho que viria a ser copiado por diversas outras
regiões produtoras.
Champagne nos dá a prova de que nem sempre o melhor caminho
para aperfeiçoar algum trabalho ou produto (qualquer que seja ele) reside em
tentar copiar modelos estrangeiros, que quase nunca podem ser aplicados
perfeitamente em outros locais. O segredo do vinho de Champagne foi desenvolver,
da melhor forma possível, sua própria vocação e suas características
singulares. Eis uma lição para a nossa indústria cervejeira brasileira, que às
vezes parece mais preocupada em copiar impossíveis padrões e estilos
estrangeiros e não dá a devida atenção àquilo que nós podemos fazer de melhor.
Nas próximas partes desta matéria sobre vinhos espumantes
brasileiros, falaremos sobre as várias técnicas de produção do espumante e seu
perfil sensorial, para só depois falarmos sobre as versões brasileiras, que
serão o nosso foco aqui. Acompanhe!