É, o preço do barril de petróleo teve uma queda vertiginosa
no mercado mundial de um ano para cá, disso nós sabemos. Mas não é desse barril
que falaremos hoje. Refiro-me, pelo contrário, a um tipo de barril que parece
estar cada vez mais em voga no nosso mercado cervejeiro nacional (e com
tendência de alta nos preços): a barrica de madeira usada na maturação e
envelhecimento de cervejas. Depois de a Bodebrown despontar no ano passado com
o excelente nível dos rótulos de sua Wood-Aged Series, em 2015 foi a vez de
outra microcervejaria curitibana, a DUM, roubar os holofotes. Durante o
Festival Brasileiro de Cerveja de 2015, a micro lançou um conjunto de três
versões de sua prestigiada Russian imperial stout Petroleum, cada uma das quais
envelhecida em um barril de um tipo diferente de madeira.
![]() |
Duas cachaças da Porto
Morretes. A “Ouro” (amarelinha)
é envelhecida em barris de madeira.
Fonte: www.flickr.com/photos/organicsnet |
O projeto é o fruto de uma parceria da DUM com a cachaçaria
Porto Morretes, do PR, e contou com consultoria do professor da UFPR Agenor
Maccari Júnior, que é especialista no uso de madeiras brasileiras na produção
de bebidas alcoólicas. A princípio, foram selecionados três barris de
diferentes madeiras e diferentes intensidades de tosta, todos usados
anteriormente para a maturação das cachaças da Porto Morretes. O resultado foi
lançado comercialmente em um kit contendo 4 garrafas: uma versão convencional
da Petroleum e mais uma garrafa de cada uma das três versões envelhecidas em
diferentes barris. O kit chegou ao consumidor na faixa dos R$ 120. Levando-se
em conta que a Petroleum convencional chegava então ao consumidor (paulista)
custando pouco acima de R$ 20, isso significa que cada uma das versões com
maturação em barris custou um pouco mais de R$ 30. Na minha opinião, um preço
dentro dos padrões do nosso mercado.
Já falei aqui no blog que um dos maiores diferenciais da
indústria de bebidas alcoólicas no Brasil é o uso corrente e corriqueiro de
diversos tipos de madeira para maturação e envelhecimento, diferentemente de
outros países, que tendem a se concentrar no carvalho. Acho natural, e bastante
interessante, que a nossa indústria cervejeira se valha desse expediente. Lá
fora, quando se quer obter variações de wood-aged beers, costuma-se usar barris
previamente utilizados para o envelhecimento de diferentes bebidas (barril de
vinho tinto, barril de uísque, barril de Bourbon, barril de vinho do Porto, e
por aí vamos), mas quase sempre de carvalho. A secular indústria brasileira da
cachaça traz todo um horizonte de novas madeiras nativas a explorar: amburana,
amendoim, jequitibá, araruva, cabreúva ou bálsamo, ipê, castanheira, entre
outras. E o melhor é que cada madeira tem um impacto sensorial diferente sobre
a bebida. Acredito que nossas micros podem se destacar internacionalmente pelo
uso consciente de toda essa biodiversidade.
O que a madeira faz
pela minha cerveja?
O experimento da DUM consistiu em maturar sua Petroleum em
barris de três madeiras diferentes, todos oriundos da Porto Morretes: o
primeiro de umburana, com tosta intensa, o segundo de castanheira do Pará (com
tosta mediana, pelo que entendi), e o terceiro de carvalho francês, com tosta
leve. O resultado são três cervejas muito diferentes entre si, que servem para
quebrar aquele velho mito de que a cerveja maturada em barris usados
previamente para alguma outra bebida vai necessariamente “pegar o gosto da
bebida”. Fala-se que cervejas maturadas em barris de uísque têm gosto de
uísque, cervejas maturadas em barris de vinho tinto têm gosto de vinho tinto, e
assim por diante. Se isso explicasse toda a história, todas as três Petroleum
teriam o mesmo “gosto de cachaça” – o que está muito longe da verdade.
Há mil fatores que influenciam o impacto da madeira sobre
uma bebida – o tipo e origem da madeira, o processo de limpeza usado para
reutilizar o barril, o tipo de tosta empregada no interior do barril, o tamanho
do barril, o número de vezes que o barril já foi usado, o tempo durante o qual
a cerveja ficou no barril, entre vários outros fatores mais ou menos
imponderáveis, como a porosidade de cada barril específico e a microflora local
instalada na madeira. Há um universo de variáveis que podem ser manipuladas
para alterar consideravelmente o resultado final. Precisamos parar de dar tanta
atenção à questão da procedência do barril (o “barril da bebida X” ou o “barril
da destilaria Y”) e começar a considerar de forma mais sistemática todas essas
outras variáveis fundamentais, como já se faz com outras bebidas há muito mais
tempo. Só assim os produtores de cerveja poderão amadurecer as técnicas de
emprego de madeira e gerar produtos cada vez mais consistentes e interessantes.
Mas, antes de entender as diferenças entre as três versões
da DUM Petroleum, convém tentarmos mapear um pouco melhor os efeitos da madeira
sobre as cervejas. O que o envelhecimento em madeira pode oferecer a uma
cerveja? Historicamente, o envelhecimento de cervejas em madeira era usado no
Velho Mundo por dois motivos: para conferir uma acidez agradável e traços
selvagens à cerveja (já que a madeira abrigava micro-organismos responsáveis
pela acidificação da bebida), e para induzir o envelhecimento da cerveja (já
que o barril de madeira propicia uma micro-oxigenação do líquido, acelerando os
processos de oxidação e evolução). Era basicamente para isso que a madeira
servia na produção das sour ales belgas e das stock e old ales inglesas.
Ocorre que, além desses dois efeitos, a madeira também
transmite à cerveja uma série de novos compostos aromáticos, dentre os quais se
destacam os aromas de baunilha (tipicamente associados ao carvalho), as notas
de especiarias e os toques de defumação e torrefação que podem advir da tosta
da madeira. Cada madeira e cada tipo de tosta oferecerá uma combinação única de
sabores e aromas. Foram provavelmente os cervejeiros norte-americanos, a partir
dos anos 1990, que colocaram em primeiro plano esses aromas “amadeirados”,
buscando enfatizá-los em suas primeiras barrel-aged beers e dando-lhes até mais
importância do que a acidez e a micro-oxigenação. Em certa medida, essa
tendência mimetizou o que ocorreu também com os vinhos estadunidenses e
americanos, em geral, que buscaram reafirmar sua identidade perante os vinhos
europeus por meio da pegada intensamente amadeirada do carvalho – ainda mais
levando-se em conta a suculência e a doçura abaunilhada que são típicas das
variedades nativas americanas de carvalho.
Como resultado dessa “madeirização” das wood-aged beers por
parte das microcervejarias americanas, passou a haver o entendimento de que a
principal característica da cerveja maturada em barris era o aroma de madeira
(e não o perfil selvagem ou de envelhecimento). O tempo durante o qual a
cerveja ficava dentro do barril também diminuiu consideravelmente, já que o
sabor amadeirado se desenvolve mais rapidamente do que os perfis selvagem e de
evolução. Wood-aged beer virou praticamente sinônimo de cerveja abaunilhada. E
havia um estilo de cerveja que combinou especialmente bem com a intensidade dos
aromas doces e abaunilhados do carvalho americano: a Russian imperial stout. A
combinação entre baunilha, café e chocolate mostrou-se tão irresistível quanto
aquele pudim de chocolate que insiste em nos tentar ao final da refeição, mesmo
que saibamos que já estamos saciados. Em pouco tempo, as Russian imperial
stouts se tornaram as escolhas prioritárias das cervejarias norte-americanas
para o envelhecimento em madeira. Estava praticamente criado um novo,
indulgente e delicioso estilo: a barrel-aged Russian imperial stout.
DUM Petroleum em três
versões
Foi essa tradição de imperial stouts americanas envelhecidas
em barris que serviu de inspiração para o kit da DUM. A graça do experimento
foi ver o impacto da madeira em si na cerveja. Mas o “twist” brasileiro foi o
uso de duas madeiras nativas (a amburana e a castanheira do Pará) em adição ao
carvalho francês. A cervejaria não informa quanto tempo a cerveja passou no
interior dos barris – mas, a julgar pela ausência de traços de evolução e
envelhecimento, eu diria que não deve ter ultrapassado muito os 6 meses. Vejamos o que cada
um dos barris agregou à cerveja – mas, antes, vale a pena falar um pouquinho
sobre a versão original (que também vem no kit).
![]() |
O kit contendo a versão
original (à esquerda) e as
três versões maturadas em madeira.
Fonte: |
A versão original da DUM Petroleum é uma das queridinhas do público brasileiro, e já se tornou um
clássico apesar de seu lançamento relativamente recente. Na taça, apresenta uma
coloração preta intensa, totalmente opaca, com espuma marrom escura de baixa
formação e uma viscosidade aparente só de se olhar. O aroma explode em tons
torrados e queimados, que se desenvolvem sobre um fundo frutado e lupulado. Café,
chocolate amargo e madeira queimada predominam, com um certo acento mineral,
mas é possível notar com clareza o frescor do lúpulo lembrando capim-cidreira,
além de notas de bananas passas. Não tem a doçura dos maltes torrados que
encontramos em outras imperial stouts: este é um exemplar rústico, em que a
secura do torrado fala mais alto do que a riqueza do chocolate ou do caramelo.
Predomina claramente o amargor, inicialmente convivendo com uma breve doçura
mas terminando em um final muito seco, com amargor intenso e um pouco rascante
a agressivo na minha opinião. O aquecimento alcoólico é expressivo e o corpo é
incrivelmente espesso e viscoso, devido ao uso da aveia na receita. (clique
aqui para ver a avaliação completa) A DUM Petroleum não deve ser confundida com a Wäls Petroleum, que é a versão da mesma cerveja produzida pela
mineira Wäls, pois a paranaense tem maior índice de IBUs (amargor) e se mostra
mais seca e lupulada do que a mineira. Para mim, a versão da DUM é a típica cerveja que demanda um certo
envelhecimento: recém-saída da fábrica, ela tem um amargor um pouco agressivo e
um perfil de maltes que poderia ser mais rico. Tenho uma garrafinha pegando pó
na minha adega e tenho a impressão de que ela ficará mais interessante depois
de descansar por uns dois aninhos na garrafa.
A DUM Petroleum Castanheira foi maturada em barris de castanheira do Pará, aparentemente
com tosta média. A aparência é semelhante, mas com espuma menos volumosa, o que
é comum em cervejas envelhecidas em barris. O perfil de maltes continua lá, em
primeiro plano, com muito queimado, café e chocolate amargo, mas a madeira
interagiu pouco com esses sabores. Desenvolveu-se, paralelamente, um aroma
mineral interessante ainda que um pouco “cru”, que lembra amêndoas cruas, além
de leve apimentado e algo que lembra móveis coloniais, tudo vindo da
castanheira. O barril trouxe um aroma bem perceptível de cachaça à cerveja,
junto com um ardor químico e solvente um pouco desagradável. As frutas passas
ainda estão lá, lembrando uvas passas, mas o herbal de lúpulo praticamente
sumiu. Na boca, talvez um tiquinho a mais de doçura do que na versão comum, mas
o mesmo final bem seco e amargo. O corpo é intenso, mas talvez tenha afinado
levemente. No conjunto, esta foi a versão em que a madeira se imprimiu de forma
menos evidente na cerveja, que continuou com um perfil bem seco e amargo, um
tanto rústico demais para o meu paladar. O efeito é interessante, mas eu achei
a menos bem resolvida das três versões. (clique aqui para ver a avaliação
completa)
![]() |
A versão maturada em
amburana.
Fonte: http://www.instagramal.com/photo/wdsonb
|
A DUM Petroleum Amburana apresentou uma interessante variação: as outras cervejas maturadas
em amburana que temos no nosso mercado costumam ser mais doces e ricas, e a DUM
ofereceu uma interpretação em que a amburana se mesclou a uma receita mais
rústica, amarga e seca. A aparência segue a linha dos demais rótulos do kit,
com espuma menos volumosa. No nariz, ainda predomina inicialmente o malte
torrado (café, chocolate amargo, cinzas, madeira queimada), mas a madeira vai
ficando mais e mais pronunciada à medida que a cerveja esquenta e areja,
oferecendo aromas de coco queimado, mobiliário colonial, cachaça, canela e um
toque de defumação (refletindo a tosta intensa do barril). Nada muito intenso,
mas com boa complexidade. Também apareceu um forte floral, não sei se da
madeira. A madeira parece ter substituído os aromas menos intensos da cerveja:
o frutado e o herbal quase desapareceram. Na boca, a amburana trouxe um toque
bem breve de doçura na entrada e um final um pouco menos seco, que na minha
opinião equilibraram melhor a Petroleum, apesar de ainda se sentir o amargor um
pouco rascante. Corpo intenso, com sensação alcoólica um pouco exagerada que
diminuiu a drinkability. Na minha opinião, aqui a madeira exerceu um impacto
intermediário sobre a cerveja-base: nem tão sutil quanto na Castanheira, nem
tão intenso quanto no Carvalho Francês. Boa complexidade, mas talvez a secura
da cerveja e a tosta intensa do barril tenham impedido a amburana de demonstrar
toda a sua exuberância. (clique aqui para ver a avaliação completa)
Na minha opinião, a DUM Petroleum Carvalho Francês foi a versão que apresentou o melhor resultado
final dentre as três do kit. A madeira mostrou-se rica e envolvente,
ressaltando as frutas e amaciando a torrefação, dando à Petroleum exatamente
aquilo que eu acho que a complementou de forma mais harmônica, para o meu
paladar. No aroma, a forte baunilha interagiu com o perfil de maltes, puxando-o
mais para o chocolate, ainda que o café e o queimado estivessem bem evidentes.
A madeira ressaltou deliciosamente as frutas, fazendo aparecerem notas de
banana passas, uvas passas e até um quê de cerejas ao marrasquino, e dando aos
maltes ares de bolo inglês. Leve floral, apimentado e um toque de defumação
complementaram a complexidade da madeira. O herbal do lúpulo quase desapareceu.
Na boca, a baunilha e as frutas lhe deram doçura mais intensa, conduzindo a um
final em que o amargor ainda predomina, mas bem escoltado pela doçura, de forma
muito bem equilibrada. O corpo é intenso e a sensação alcoólica é inclemente,
mas o melhor equilíbrio entre doçura e amargor lhe deu maior drinkability.
Aqui, a cerveja e a madeira fizeram um casamento perfeito: a potência torrada e
frutada da cerveja se mesclou de forma admirável ao forte abaunilhado, e ao
mesmo tempo a doçura da madeira equilibrou a secura agressiva da Petroleum. Excelente
conjunto: para mim, a melhor do kit. (clique aqui para ver a avaliação
completa)
O gráfico abaixo permite visualizar as principais diferenças
entre as três versões da Petroleum envelhecida em madeiras:
Como se vê, as três madeiras apresentaram perfis bastante
diferentes. O carvalho mostrou-se mais doce, envolvente, frutado e abaunilhado,
atenuando um pouco a força da torrado. A castanheira, por sua vez, preservou e
até acentuou a torrefação, o amargor e a secura da receita, mostrando-se mais
mineral, com um toque de cachaça mais perceptível. Já a amburana ficou numa
espécie de ponto intermediário: nem tão doce quanto o carvalho, nem tão rústica
e mineral quanto a castanheira. Para o meu paladar, o carvalho forneceu o
complemente perfeito para a intensidade seca e torrada da Petroleum. Acompanhando
a repercussão do kit pelo Untappd, é possível verificar que uma parcela
expressiva dos consumidores também parece ter gostado mais do carvalho. Por
outro lado, também ouvi muitos comentários elogiosos a respeito da castanheira
em outras redes sociais. Talvez não à toa, os elogios tenderam a se concentrar
nas madeiras com perfis mais opostos, de modo que a amburana acabou sendo
percebida como menos marcante.
O kit da Petroleum põe ao alcance do consumidor um
experimento muito instigante, e nos dá a certeza de que ainda há muito a se
explorar, do ponto de vista técnico e sensorial, quando se fala na maturação de
cervejas em barris de madeira. A degustação do kit reforça a convicção que há
uma madeira perfeita, uma tosta perfeita, um barril perfeito, esperando para fazer
o casamento ideal com cada receita de cerveja, como duas almas gêmeas que irão
se complementar na lua-de-mel – digo, na maturação! Como eu já disse aqui
antes, o horizonte está aberto e a experimentação está apenas começando.