Tenho aproveitado minha atual situação de desemprego para
exercer e aprimorar a arte de beber bem gastando pouco. Nem sempre é fácil, é
verdade. Mas quase sempre é muito gratificante, em parte porque faz você se dar
conta de quanto dinheiro estava gastando antes de forma relativamente “supérflua”
– ou mesmo completamente em vão, nos piores casos. O consumo mexe com a sua
cabeça: quanto mais você consome, mais acredita que precisa consumir, e mais
sua dignidade e seu bem-estar começam a depender do quanto você gasta. O velho
barbado Marx chamava isso de fetiche, mas isso é assunto para outra conversa. Diminuir
seu padrão de consumo, às vezes, é um salutar revés nesse ciclo quase vicioso
do consumo.
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E tenho a impressão de
que não é só para mim...
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A diminuição do meu poder de compra me fez rever muitos dos
meus hábitos de consumo etílico (junto com um monte de outros hábitos, é verdade).
Nem penso mais em provar regularmente cervejas de R$ 20 a long neck, optando,
sempre que possível, por garrafas grandes na faixa dos R$ 15-20 e
complementando o consumo das artesanais pelas acessíveis standard lagers “de
sempre” do mercado. Elas têm seu valor, sobretudo quando a grana está curta. E
a verdade é uma só, doa a quem doer: uma Brahma fresca e bem acondicionada,
como às vezes tenho a felicidade de encontrar em alguns bares, pode ser até
mais saborosa do que uma artesanal xexelenta e oxidada que custa o quíntuplo.
Mas isso, também, é assunto para outra ocasião. E é claro que abandonei o
passageiro hábito que tentei cultivar, em meados do ano passado, de beber
diariamente a quantidade recomendada pela Organização Mundial de Saúde.
Além disso, tenho trocado com frequência a cerveja pelo
vinho, depois que descobri, para meu espanto, que é mais barato beber vinho do
que cerveja no Brasil – como já argumentei aqui no blog. E substituí as antes
frequentes garrafas de R$ 40-60 por vinhos mais baratos, na faixa dos R$ 20-30.
E é aí que tenho encontrado o grande desafio: beber vinhos agradáveis, limpos e
bem-feitos apesar de simples, nessa faixa de preços. Muito bebedor de cerveja,
quando descobre que tenho uma queda pelo fermentado de Baco, me pede indicações
de bons vinhos abaixo dos R$ 40. Nem sempre é fácil, admito. A maior parte dos
vinhos nessa faixa, sobretudo os de supermercados (onde vamos à procura de
vinho barato), tem defeitos mais ou menos sérios, ou então é enjoativa. Para
piorar, no nosso mercado, vinho barato é sinônimo de vinho chileno e argentino,
e nem sempre o perfil deles – às vezes amadeirados e adocicados em excesso, com
pouca acidez – bate muito com o meu santo. O que fazer, então?
O Chile não tem palmeiras, mas lá canta o sabiá
Para encontrar vinhos bons e baratos, é preciso dar a cara a
tapa. E beber algumas porcarias, antes de achar coisas mais interessantes. Um
desses achados recentes que fiz foi a linha de vinhos Aves del Sur, produzida
pela vinícola chilena Carta Vieja e importada no Brasil pelo Pão de Açúcar. O
Pão de Açúcar investiu muito em vinhos e, hoje, é o maior vendedor varejista de
vinhos do país. O supermercado conta até com uma linha própria, a “Club des
Sommeliers”, composta por vinhos produzidos sob encomenda por vinícolas
nacionais e estrangeiras e engarrafados com o rótulo da rede. É a estratégia da
rede para distribuir o que, na prática, são vinhos importados diretamente pelo
Pão de Açúcar. Ocorre que, a despeito do preço bastante competitivo e da
seleção do fera Carlos Cabral, os rótulos do Club des Sommeliers nunca me
atraíram. Tive más experiências com algumas opções da linha, e acho que os
vinhos tendem a ser comerciais em excesso, um pouco “padronizados” para atingir
um mercado mais amplo. Muitas vezes, isso resulta em vinhos amenos, sem muita
personalidade, doces em excesso, pouco tânicos e pouco ácidos.
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A linha básica, com seus
simpáticos passarinhos.
Fonte: |
Qual não foi minha surpresa quando encontrei a linha “Aves
del Sur”, com importação exclusiva do Pão de Açúcar mas sem o rótulo do Club
des Sommeliers. Resolvi arriscar o Merlot da linha mais barata. E tive uma
ótima surpresa. A partir daí, provei a linha básica inteira (só não consegui
ainda provar o rosé, mas está na minha lista) e até me aventurei em uma garrafa
da linha Reserva que estava em promoção. Não me decepcionei seriamente com
nenhum dos seis vinhos que bebi – a consistência do padrão de qualidade da
linha é bastante alta. Virei fã dos passarinhos. Além de os vinhos serem bons,
os rótulos são muito bonitos. Cada vinho é batizado com o nome de um pássaro
chileno, e o rótulo traz uma bela ilustração da ave.
Comecei pela linha básica (“Varietal”), que, segundo a
enigmática expressão do produtor, passa por estágio em madeira “sólo cuando es necesario”.
São vinhos leves, fáceis de beber, amigáveis e com ótima tipicidade
considerando sua faixa de preços, ali em torno do R$ 23. O primeiro que provei,
e o que mais gostei da linha básica, foi o Aves
del Sur Golondrina Merlot 2014. A “golondrina” é nossa conhecida andorinha,
pássaro migratório cujo reaparecimento está associado ao fim do inverno e à
chegada da primavera. Daí a escolha da uva Merlot, que resulta em vinhos um
pouco mais macios e menos austeros e assertivos do que outras tintas chilenas
mais cultivadas. Comecei pelo Merlot porque acho, no caso de vinhos baratos,
que a uva geralmente resulta em bebidas com menos defeitos e arestas do que
outras variedades mais “parrudas”. O Golondrina Merlot 2014 apresenta
complexidade acima do esperado nessa faixa de preços: há um frutado puxando
para as frutas passas, como ameixas secas, complementado por expressivos toques
de chocolate ao leite, alguma baunilha, mogno, leve defumação, traindo a
passagem por carvalho. Na boca é correto, com pouca acidez (o que ressalta os
tons tostados e achocolatados de forma agradável), macio sem ser enjoativo, com
corpo medianamente intenso e taninos pouco expressivos. Uma ótima compra pelo
conjunto.
Como sabemos, uma andorinha só não faz verão; então, fui
procurar os outros vinhos da marca. Os dois outros tintos da linha básica me
agradaram um pouco menos. O Aves del Sur
Carpintero Cabernet Sauvignon 2014 traz no rótulo o simpático pica-pau como
a indicar a força e a expressividade da variedade. O vinho de fato é mais
assertivo que o Merlot, com acidez mais expressiva e taninos mais presentes,
dando aquela sensação de adstringência na boca. Contudo, a complexidade
aromática é um pouco menor: cassis, um tiquinho achocolatado, uma doçura de baunilha bem evidente, um toque mais herbal e
fresco lembrando pimentões (mas não tanto quanto em outros Cabernet Sauvignon
chilenos). No conjunto, achei-o menos interessante, mas ainda bem competente e
acima de média para os Cabernets dessa faixa. Já o Aves del Sur Perdiz Carmenère 2014 tem como “mascote” a perdiz, uma
ave terrestre, como a indicar o caráter mais terroso e herbal da Carmenère. De
fato, o aroma predominante é o típico pimentão-verde dos Carmenères chilenos –
alguns gostam pela “pegada” aromática mais intensa, mas eu já não sou muito fã.
Há nuances frutadas (frutas vermelhas) e defumadas, mas nada muito expressivo.
Na boca é menos ácido que o Cabernet, mas ainda com taninos bem perceptíveis.
Foi o que menos me agradou de toda a linha, dentro todos os que provei –, mas
há que se considerar que nunca fui muito fã dos Carmenères chilenos.
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Se liga na rola,
Malafaia!
Fonte: |
Entre os brancos, algumas ótimas surpresas, com vinhos muito
frescos, aromáticos e com ótima tipicidade, bons para quem quer conhecer as
variedades de uvas sem gastar muito dinheiro. O Aves del Sur Tórtola Chardonnay 2014 traz a imagem da singela “tórtola”,
nossa conhecida “rolinha” – aquela que o Silas Malafaia deveria ir procurar. O
vinho é fresco e traz a tipicidade da Chardonnay: acidez mediana, suave para um
branco, alguma doçura residual para alegrar o paladar, mas sem exageros, e uma paleta aromática convidativa de frutas amarelas maduras, lembrando mousse de maracujá (com aquela leve untuosidade amanteigada de muitos Chardonnays), muitos pêssegos maduros e até um toque de tangerina, com sólido acento floral. O álcool aparece mais do que deveria e há um amargor final um pouco incômodo, mas o conjunto é acima da média para o preço. Acompanhou perfeitamente um fondue de queijo. Por fim, o Aves del Sur Frutero Sauvignon Blanc 2014
é muito expressivo e aromático. A Sauvignon Blanc é conhecida pelos aromas
frutados lembrando maracujá, mas, nessa faixa de preços, é difícil encontrar um
vinho com tanto maracujá. Ao servir, parece que você abriu a fruta. Há ainda
flores brancas e certo frescor de grama cortada. Muito bom no nariz. Na boca, é
bem seco, com corpo leve, acidez relevante e um final novamente um pouco amargo e
alcoólico, de um jeito incômodo, que diminui um pouco sua drinkability. Refrescante
e muito encantador pelo aroma frutado. Ótima pedida para conhecer a uva.
Por fim, provei também o Aves del Sur Reserva Gavilán Syrah 2012. O rótulo traz estampado o
gavião, ave nobre que indica o maior grau de elaboração da linha Reserva, que
matura por 10 meses em barris de carvalho francês e mais 8 meses na garrafa. O
vinho é cheio de personalidade. Notam-se imediatamente os aromas de especiarias
da Syrah, sobretudo pimenta-do-Reino em forte intensidade. Outros aromas
secundários escoltam o apimentado: ameixas passas, uma defumação bem evidente,
certo toque de aceto balsâmico, alguma baunilha e chocolate ao leite. A mistura
de acético, defumação e pimenta faz lembrar pimenta chipotle. Na boca é macio,
com doçura levemente presente, uma certa acidez, um toque salgado e poucos
taninos. Corpo levemente licoroso. É complexo, cheio de nuances aromáticas e de
paladar, mas não perde a tipicidade da Syrah. Pelo preço promocional de R$ 29
em que o encontrei, foi uma excelente compra, mas vale bem os cerca de R$ 35 do
preço normal.
Taí: uma linha de vinhos de distribuição ampla, preço bem
acessível e boa qualidade. Como bônus, muitos rótulos de ótima tipicidade,
ideais para quem quer conhecer as respectivas variedades de uvas. Eles têm
alguns dos vícios de muitos vinhos chilenos: acidez relativamente baixa, uma
certa doçura em alguns exemplares. Mas o toque da madeira é bem colocado, sem o
excesso de outros sul-americanos. Virei consumidor habitual e estou exercendo,
com prazer, a arte de beber barato.