Faz algum tempo que eu não tinha condições de escrever aqui
no blog. Culpa dos compromissos profissionais. Mas – vejam só! – foram esses
mesmos compromissos que também me deram o mote e o assunto para esta matéria. É
que uma das coisas que fiz nesses meses foi reler, para um seminário acadêmico,
um livro chamado Os olhos do império,
da crítica literária canadense Mary Louise Pratt. Trata-se de um magnífico
estudo sobre relatos de viagens, e foi uma leitura que influenciou fortemente
minha formação desde minha graduação em História, quando tive a oportunidade de
lê-lo pela primeira vez.
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A escrava Joana é a
heroína desta matéria.
E é a segunda mulher negra do século
XVIII homenageada
neste blog!
Fonte: en.wikipedia.org |
O livro não fala sobre cerveja. Fala sobre viajantes, e fala
inclusive sobre o lendário diplomata e agente secreto inglês Richard Francis
Burton, que passou 7 anos na Índia britânica na década de 1840 e teve a rara
oportunidade – para um ocidental – de se tornar um brâmane hindu. Por
coincidência, o sobrenome de Burton era homônimo à pequena cidade inglesa de
Burton-on-Trent, de onde, na mesma época, saíam as cervejas claras e lupuladas
enviadas para os oficiais ingleses na Índia, as mesmas que viriam a ficar
conhecidas como India pale ales. Richard Burton deve ter bebido sua cota de IPA
na Índia, talvez até mesmo na época em que ele professou o islamismo. Isso não
posso afirmar.
Mas esta postagem não é sobre a vida de Richard Burton ou
sua devoção ao imperialismo inglês na Índia, no Oriente Médio e na África.
Ocorre que o livro de Mary Louise Pratt também fala sobre um soldado escocês
chamado John Stedman, que teve um relacionamento amoroso com uma escrava mulata
chamada Joana no Suriname no final do século XVIII. Quero contar sua história e
mostrar como suas visões negativas e imperialistas sobre as mulheres, os negros
(e sobretudo as mulheres negras) e a América Latina estão mais vivas do que
nunca neste início de século XXI, e ainda habitam o imaginário do cenário
cervejeiro contemporâneo. Mas vamos com calma.
A escrava Joana
John Stedman nasceu em 1744 na Escócia e herdou de seu pai o
posto de oficial da Brigada Escocesa do exército holandês (era uma época em que
os exércitos não eram tão nacionalistas quanto são hoje). À época, a Holanda
tinha algumas pequenas mas lucrativas colônias agroexportadoras no Caribe,
entre as quais estava o Suriname. Nessa região coberta por florestas tropicais,
os escravos africanos que trabalhavam nas fazendas holandesas fugiam em grandes
quantidades para as matas, formando grandes quilombos que existem até os dias
de hoje e travando uma guerra feroz contra as forças repressivas coloniais. A
despeito de terem assinado tratados de paz com os quilombolas, os holandeses
organizaram em 1773 uma expedição militar repressiva, da qual fazia parte
Stedman. A guerra holandesa contra os quilombolas foi um fiasco, e comprovou,
desde então, a proverbial incompetência dos exércitos europeus para guerrilhas
na floresta. Cerca de 80% dos soldados europeus morreram (a maior parte devido
a doenças), poucos escravos foram recapturados e a maior parte dos quilombolas
atacados fugiu para a Guiana Francesa.
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Gravura de John Stedman
sobre o
cadáver de um negro quilombola.
Fonte: en.wikipedia.org |
John Stedman era um soldado europeu, a serviço de uma
potência colonial, encarregado de esmagar uma rebelião de escravos. Diante
disso, é um tanto irônico – mas esta é justamente a ironia da colonização
europeia nas Américas – que ele tenha se envolvido sexualmente e tenha até se
“casado” com uma escrava, chamada Joana. Há duas versões dessa história de amor
transracial: a que John Stedman publicou em seu livro de memórias de viagem,
chamado Narrativa de uma expedição de
cinco anos contra os negros revoltosos do Suriname (de 1796), e a que
consta do seu diário pessoal de campanha. Qual você quer saber primeiro?
Vamos lá: comecemos pela versão do diário. Gostamos de
segredos. Na época de Stedman, havia o costume de que os oficiais militares
europeus (ou oficiais diplomáticos, agentes comerciais, administradores etc.)
recém-chegados à América adquirissem os serviços de uma escrava local, seja por
aluguel, seja por compra da escrava. Esses serviços a serem desempenhados pela
escrava comprada ou contratada incluíam atribuições fundamentais para a vida
cotidiana desses europeus sozinhos em territórios coloniais: tarefas
domésticas, preparação de alimentos, cuidados de saúde. E, como você já deve
estar imaginando, incluíam também serviços sexuais. Em alguns casos, para
evitar o escândalo público, esses relacionamentos de concubinato eram
oficializados por cerimônias de pseudocasamento. John Stedman teve várias
companheiras no Suriname nesses moldes. Joana foi uma delas, aparentemente sua
preferida. Stedman, depois de se casar com ela no Suriname, propôs que ela o
acompanhasse de volta à Inglaterra, mas ela recusou, preferindo continuar a
viver como uma escrava “próspera” na América do que viver como pária (uma
mulher negra e escrava) na Inglaterra do final do século XVIII. Pois bem:
Stedman voltou sozinho e se casou novamente com uma esposa inglesa. Fim de uma
edificante história de exploração sexual nos trópicos.
Mas a versão da história contada por John Stedman em seu
livro é bastante diferente. Segundo esse relato, Joana teria sido uma espécie
de escrava “hipotecada”, propriedade de uma viúva endividada. Seu destino
estava selado, pois ela seria vendida para liquidar a dívida da senhora.
Stedman teria se apaixonado perdidamente ao vê-la na casa da viúva,
descrevendo-a como “a mais elegante forma que a natureza pode exibir, [...] com
uma face na qual reluzia, a despeito do
tom escuro da pele, um lindo tom carmim.” [É, era tipo “ela é preta, mas é
limpinha”.] Diante da inevitabilidade de sua venda, ela teria apelado ao
bondoso soldado europeu, que então tomou, segundo seu relato, a “estranha
decisão” de comprá-la e se casar com ela para evitar a separação, decidido a
“ser seu protetor contra qualquer insulto”. Não preciso explicar a ironia, preciso?
Stedman narra sua cerimônia de casamento, sua lua-de-mel, a paixão entre os
dois e o nascimento de seu filho Johnny. Ao final da narrativa, conta que a
escrava Joana não quis segui-lo até a Inglaterra e que depois morreu envenenada
no Suriname.
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Uma das gravuras do livro
de Stedman.
O soldado denunciou os rigores da
escravidão mas não deixou de
explorar
uma escrava negra no Suriname.
Fonte: en.wikipedia.org |
Num certo sentido, não é difícil ver na narrativa de John
Stedman uma tentativa de construir uma versão idealizada e romantizada de um
relacionamento que era, por natureza, brutal e desigual. Joana era, afinal de
contas, uma escrava sexual do soldado
escocês. Literalmente. A ligação entre os dois é contada como sendo de amor
recíproco, e sua união é representada como voluntária para ambas as partes –
quando sabemos que ela não podia sê-lo para Joana, a não ser muito
parcialmente. Não se trata de dizer que é impossível que tenham se amado. Eu
não chegaria a tais extremos metafísicos. O que é inegável, contudo, é que o
relato de Stedman ocultava a violência do regime de exploração sexual nas
Américas, em que mulheres negras eram vistas como sexualmente disponíveis para
homens brancos que iriam se valer de sua companhia e depois descartá-las.
Essas histórias de amor transracial envolviam sempre mulheres
negras (ou pelo menos não brancas, ou de alguma forma em posição subalterna) e homens
brancos, e quase nunca o contrário. Pocahontas, Iracema, Bartira, a escrava
Isaura – you name it. Isso não é fortuito, já que o pensamento da época
considerava o gênero como uma metáfora da raça, e vice-versa: a raça branca era
representada na pseudociência racial da época como sendo “masculina” (ativa,
dominadora, racional), enquanto as raças não brancas eram consideradas “femininas”
(passivas, irracionais, emocionas). A relação sexual entre homens brancos e
mulheres negras, portanto, era o lugar ideológico em que todas essas questões
espinhudas eram tratadas na cultura da época. Stedman deu a essa questão um
tratamento lisonjeiro aos olhos de seus leitores europeus, em que a violência
sexual e racial aparecia sob a roupagem da reciprocidade do amor romântico
correspondido. Não à toa, seu livro foi um sucesso editorial, sendo publicado
em 6 diferentes línguas europeias. A história de Stedman e Joana foi adaptada
para teatro, poesia, conto e romance. Era um conto de fadas agradável para
aplacar a consciência pesada do imperialismo europeu.
Evil Twin Brazil
Brazilian Wax
Infelizmente, como sabemos, esse regime de exploração sexual
da mulher de cor (negra, indígena, asiática ou mestiça) do Terceiro Mundo por
homens brancos do Primeiro Mundo não acabou. Claro que ele assumiu outras
formas, que atualmente incluem o tráfico internacional de pessoas, o turismo
sexual e várias formas, diretas e indiretas, de violência doméstica. Também
sobrevive de formas mais sutis na nossa cultura contemporânea, traduzido em
preconceitos a respeito da promiscuidade e/ou da sensualidade aflorada da
mulher negra. É um estranho e abominável lugar ideológico onde se cruzam duas
das mais perniciosas e duradouras pragas culturais do nosso mundo: o machismo e
o racismo, que, como vimos, andaram de mãos dadas pelo menos desde o final do
século XVIII.
Eu adoraria dizer que o meio cervejeiro, por ser composto de
pessoas “cultas”, “bem-educadas”, “sensíveis” e “de mente aberta”, [ironia
detectada] não tem nada disso. Mas isso não é verdade. Uma polêmica relativamente
recente a respeito de uma cervejaria europeia no Brasil reeditou, quase ponto a
ponto, a velha história de John Stedman no Suriname, mais de dois séculos
depois. Alguns dos meus leitores terão acompanhado essa discussão, enquanto
talvez outros nem se lembrem mais dela. De qualquer modo, acho que o acontecimento
foi tão emblemático de todas essas questões que vale a pena fazermos questão de
não esquecê-lo. Falo da polêmica criada em torno do rótulo da cerveja Evil Twin Imperial Brazilian Wax.
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Bunda ou virilha: eis a
questão.
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/ |
Para quem não sabe, a Evil Twin é uma cervejaria cigana de
origem dinamarquesa (hoje em dia sediada nos EUA) que exporta alguns de seus
rótulos para o Brasil. Em decorrência de uma parceria com a cervejaria
Tupiniquim, do RS, a Evil Twin passou a produzir alguns rótulos no Brasil, na
planta da microcervejaria rio-grandense. A primeira cerveja dessa linha
produzida em solo nacional, em 2014, foi uma imperial stout que foi
inicialmente batizada de Imperial
Brazilian Wax – em alusão à técnica de depilação íntima frequentemente
associada às mulheres brasileiras no exterior. O rótulo inicialmente anunciado
para a cerveja é este que você vê acima deste parágrafo.
O anúncio suscitou uma justificada e previsível reação de
protesto de diversos consumidores brasileiros – e especialmente de consumidoras
brasileiras –, que viram no rótulo um subtexto machista e depreciativo. Alguns
admiradores da marca tentaram aplacar a situação, dizendo que não havia nenhum
machismo no rótulo e que era tudo uma espécie de teoria da conspiração de
grupos feministas. A emenda saiu pior do que o soneto, e gerou uma avalanche
ainda maior de críticas – desta vez não apenas à Evil Twin, mas a uma parcela
substancial dos blogueiros e “formadores de opinião” do meio cervejeiro, que
haviam perdido uma excelente oportunidade de ficarem em silêncio. Isso porque,
ao deslegitimarem o protesto contra o rótulo, não só deixavam de reconhecer seu
subtexto machista como também condenavam a expressão pública de indignação por
parte de coletivos femininos. Por conta da pressão dos consumidores e da má
publicidade em torno do fato, a Evil Twin acabou trocando o nome e o rótulo da
cerveja, que foi lançada como Evil Twin
Metro Man.
Uma análise semiótica elementar do rótulo proposto para a Evil Twin Imperial Brazilian Wax é
suficiente para expor seu subtexto ideológico problemático, que nem de longe se
limita ao machismo, mesmo que este tenha ganhado maior visibilidade e tenha se
tornado o alvo prioritário de protesto nas redes sociais. Façamos a análise em
três etapas: comecemos pelo nome da cerveja, passemos à imagem do rótulo e
finalizemos com o texto de descrição comercial contido no rótulo. Ao final,
juntaremos tudo isso para tentar extrair algum tipo de impressão global do
rótulo (já adianto: não vai ser bonita).
O nome
Comecemos pelo nome proposto para a cerveja: Imperial Brazilian Wax. A ironia é tão
deliciosa quanto involuntária. “Imperial” refere-se a estilos cervejeiros de
teor alcoólico elevado – no caso, trata-se de uma “stout imperial”, como
esclarece o rótulo na parte inferior (em letras pretas). Contudo, o termo
também remete às complexas formações sociais e ideológicas criada pelo
imperialismo europeu nos trópicos – as mesmas que deram origem às Joanas do
período escravista e que reaparecem no rótulo da Evil Twin. Desde a primeira
palavra do título, a Imperial Brazilian Wax já se apresenta como súdita do
euroimperialismo.
Já “Brazilian wax” refere-se à chamada “depilação brasileira”,
uma técnica de depilação introduzida nos EUA por profissionais brasileiras, que
consiste na retirada total dos pelos da virilha e das áreas genital e anal,
deixando, opcionalmente, uma “faixa” de pelos no púbis. A técnica atende a dois
propósitos principais: 1. o uso de biquínis cavados sem revelar os pelos
pubianos; e 2. o prazer sexual do parceiro ou da parceira da mulher que se
submete à técnica. O biquíni, como sabemos, é um traje de banho que visa revelar
a maior parte do corpo da mulher para a observação de terceiros, frequentemente
uma observação de caráter erótico por parte de homens, deixando cobertas apenas
as partes consideradas obscenas e ofensivas ao pudor público (genitália e
mamilos). Portanto, não seria exagero afirmar que essa técnica de depilação tem
uma conotação eminentemente erótica, e tem como objetivo potencializar os
atributos da mulher como objeto de desfrute erótico. O fato de esse tipo de
depilação estar associado, nos EUA e na Europa, às mulheres brasileiras já é
uma reiteração daqueles velhos preconceitos que veem a mulher do Terceiro Mundo
ou de regiões tropicais como mais intensamente sexualizada. Ou seja: num certo
sentido, o próprio nome escolhido pela Evil Twin já é um tributo à cultura do imperialismo
que herdamos de John Stedman e de outros europeus nos trópicos. Ponto para o
império!
A imagem
A imagem do rótulo reforça esse sentido. Há um triângulo
invertido amarelo (com as duas arestas inferiores côncavas) sobre um fundo
marrom. Não é difícil ver a representação estilizada de uma mulher de biquíni –
ainda mais quando consideramos que a técnica do Brazilian wax está associada ao uso do biquíni. Mas não se trata de
uma representação de corpo inteiro da mulher de biquíni: pelo contrário, o
rótulo faz um recorte que enfatiza apenas a região da genitália da mulher. Se
esta é a parte da frente ou de trás do biquíni é matéria controversa, embora eu
acredite que as concavidades do triângulo sugiram mais a volumetria da parte de
trás. Seria, nesse caso, a representação estilizada de uma bunda de biquíni fio-dental
– o que é razoável, considerando que o fio-dental é outra coisa tipicamente
associada ao Brasil na mentalidade estrangeira. De qualquer forma, é evidente
que se trata de uma representação erotizada da mulher, que atua por meio de uma
estratégia retórica de metonímia, representando o todo (a mulher) por uma de
suas partes (a genitália), que é considerada a mais importante ou
representativa. É como se a mulher “se resumisse” a um traço fundamental, ou
pudesse ser reconhecida apenas por ele: a saber, a bunda exposta.
As cores escolhidas para a imagem trazem outras associações
e significados. O triângulo (que, como vimos, representa o biquíni) é amarelo.
Como sabemos, o amarelo é uma das principais cores da bandeira brasileira,
junto com o verde. As letras usadas no rótulo são verdes, e o biquíni é
amarelo, remetendo de forma muito imediata e inequívoca ao Brasil. Portanto,
não se trata apenas de uma mulher de biquíni, mas (pelo menos simbolicamente)
de uma brasileira de biquíni. O
fundo, por sua vez, é marrom. Forçando um pouco a barra (para aliviar para a
Evil Twin), poderíamos até dizer que a cor lembra uma pele intensamente
bronzeada. Mas me parece mais convincente que o marrom remeta à pele negra, ou,
mais precisamente, à pele mulata. Ora, sabemos que, no exterior, o Brasil é
frequentemente associado à imagem da mulata sensual, de modo que me parece
bastante razoável supor que essa é a associação sugerida pelo rótulo. Sendo
isso verdade, estamos diante de um rótulo que representa a bunda (ou a virilha)
de uma mulata brasileira de biquíni, uma imagem que está, digamos, “disfarçada”
por um trabalho de estilização formal. Portanto, é uma imagem da mulher brasileira
representada como objeto de deleite erótico para o olhar masculino. Mais que
isso, é uma mulher negra. E o olhar masculino em questão é o de um europeu (uma
vez que a marca Evil Twin é dinamarquesa). Ora, se é assim, então a mulher do
rótulo é uma Joana, pronta e disponível para o consumo e o deleite de um
Stedman! A imagem, portanto, reforça e ecoa o imaginário euroimperial, machista
e racista da disponibilidade sexual das mulheres de cor tropicais para o
deleite dos homens brancos europeus.
O texto
A descrição comercial apresentada no rótulo também confirma
esses significados. Arrisco uma tradução do texto: “Há muitas coisas sobre as
mulheres que os homens não entendem. Por exemplo, por que elas suportam tanta
dor para corresponder aos ideais da sociedade moderna? Elas estão indo longe
demais? Ou talvez os homens possam aprender uma ou outra coisa a respeito do
comprometimento extremo das mulheres com a perfeição – seja beleza extrema,
seja cerveja extrema – é tudo questão de gosto. Lembre-se de que, quando você
beber esta stout extrema, ela pode doer um pouco, mas às vezes é preciso
aguentar até o fim para ficar perfeito [to get it right].”
Para ser bem sincero, o texto já começa mal, sugerindo que
as ações das mulheres são pouco compreensíveis para os homens. Como se elas
fossem seres alienígenas, irracionais ou alguma coisa assim. Na sequência, o
texto afirma que as mulheres “suportam dor” (e muita dor), ou seja, que sofrem,
com o objetivo de “corresponder aos ideais da sociedade moderna”. A alusão aqui
é ao doloroso processo da depilação brasileira: segundo o texto, as mulheres se
submetem a esse sofrimento com o intuito não de atender a um desejo próprio,
mas sim de corresponder aos padrões de beleza e aos ideais de perfeição
feminina da sociedade. Ou seja, segundo o rótulo (e não sou eu quem estou
falando isso, é a Evil Twin!), essa depilação não é feita pela mulher exatamente
por vontade própria, mas para atender a padrões externos. Padrões estéticos
masculinos, subentende-se, já que são eles, prioritariamente, que irão observar
e se deleitar com as mulheres de biquíni após elas terem se submetido a esse
sofrimento. O texto sugere que essa prática seria um tipo de excesso (“ir longe
demais”), um “comprometimento extremo” para se atingir uma “beleza extrema”.
A última frase do texto coroa esses sentidos: “é preciso
aguentar até o fim para ficar perfeito” (na frase original, de difícil
tradução: “you just have to go all the
way to get it right”). Ou seja, o sofrimento causado pela depilação é visto
como um requisito necessário para que a mulher fique “perfeita” (ou “correta”, “right”). E o que seria essa perfeição a
ser almejada pela mulher do século XXI? Talvez uma carreira profissional
brilhante, talvez um comportamento ético irreprochável, quem sabe um alto nível
de sofisticação intelectual? Não, não é nada disso. Para uma mulher ser “perfeita”,
ela deve atingir a “beleza extrema”. Esse seria o ideal mais importante a ser
almejado pelas mulheres: a beleza. E, quando falamos em depilação íntima, isso
significa que ela deve fazer o necessário para ser um objeto agradável de
contemplação e deleite erótico para os homens: deve suportar a dor da depilação
para poder usar um biquíni cavado na praia e ser avaliada de forma positiva
pelo olhar masculino. Em resumo: mulher tem que sofrer para atender ao deleite
sexual dos homens. Estamos em pleno século XXI, mas a verdade é que poderíamos
dizer exatamente o mesmo para descrever as demandas dos europeus do século
XVIII nas Américas a respeito de mulheres como Joana. Será que evoluímos tanto
assim?
Imperial no ** dos
outros é refresco
Vamos juntar todas as peças. O rótulo que estamos analisando
foi criado por uma cervejaria europeia (dinamarquesa, para ser mais exato)
especialmente para sua primeira cerveja produzida no Brasil. É uma espécie de “cartão
de visitas” representativo da colaboração entre o Brasil e uma empresa europeia.
Há um intuito deliberado de condensar uma imagem ou representação sobre o país,
o que se traduz no nome (“Brazilian”) e no verde-e-amarelo da paleta de cores
do rótulo. Essa imagem parte de uma associação entre o Brasil e a sexualidade
do seu povo (e especialmente das mulheres). Um europeu visitando o Brasil
poderia elogiar positivamente muitos aspectos da cultura brasileira: nosso
multiculturalismo, talvez nosso cosmopolitismo, quem sabe nossa tão propalada
alegria, ou nossa hospitalidade. Mas a Evil Twin decidiu mencionar a sensualidade
da mulher brasileira. Portanto, em primeiro lugar, o rótulo é ofensivo à
cultura brasileira como um todo, sugerindo que sua disponibilidade erótica
seria seu mais proeminente ou interessante atributo ao olhar de um estrangeiro.
Exagerando um pouco a nota, é como se o Brasil fosse um grande bordel.
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E a Evil Twin não é a
única empresa estrangeira
a enxergar o Brasil dessa forma...
Fonte: |
Em segundo lugar, o rótulo é ofensivo à dignidade feminina,
pois reduz a mulher a um mero objeto sexual: seu corpo é seccionado para ser
metonimicamente representado por uma bunda, e o ideal de perfeição a que ela
deve almejar acima de todos é o tipo de beleza erótica que a transforma em
objeto de satisfação sexual para os homens. Ainda por cima, ela precisa sofrer
para atingir esse ideal pouco lisonjeiro. Por fim, o rótulo é ofensivo à
dignidade racial negra, ao trabalhar em cima do velho estereótipo que associa
as mulheres de cor à sensualidade exacerbada e as representa como sexualmente
disponíveis ao deleite dos europeus nos trópicos. A mulher brasileira a ser
eroticamente desfrutada pelo europeu não é branca, mas negra. Full house: a
Evil Twin conseguiu ser ofensiva simultaneamente ao sentimento nacional
brasileiro, às mulheres e aos negros. Com isso, ela reproduziu perfeitamente
todas as coordenadas da velha ideologia imperialista europeia sobre os
trópicos: a mesma mistura indigesta de uma representação negativa sobre as
culturas tropicais com elementos de machismo e de racismo que encontramos em
textos como o de John Stedman.
O infeliz rótulo da Evil Twin me lembrou muito uma polêmica
criada em torno de duas camisetas comercializadas pela Adidas durante a Copa do
Mundo da FIFA de 2014 (mesmo ano de lançamento da Imperial Brazilian Wax, por sinal). Uma das camisetas trazia os
dizerem “I love Brazil”, sendo que o “love” era substituído por um coração
estilizado para lembrar uma bunda de biquíni (a imagem você vê acima). A outra,
ainda mais nojenta (era o modelo masculino), trazia a imagem de uma mulher de
biquíni (sempre ele...) com o Pão de Açúcar ao fundo, e os dizeres “Looking to
score”, expressão que tem duplo sentido, podendo ser traduzida como “tentando
marcar gols” ou como “tentando obter sexo”. A Embratur e a presidente Dilma
Roussef, corretamente, repudiaram as camisetas e exigiram produtos menos
ofensivos à dignidade nacional e que não incentivassem o turismo sexual durante
a Copa do Mundo. A venda das camisetas foi suspensa e o episódio foi uma
tremenda bola fora diplomática da Adidas.
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Boa, Evil Twin, agora
ficou joia! #sqn
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/ |
O rótulo da Evil Twin
Imperial Brazilian Wax também foi suspenso. Em seu lugar, a cervejaria
lançou a mesma cerveja com o nome de Evil
Twin Metro Man. Muitas das consumidoras ofendidas celebraram a mudança, mas
a verdade é que o novo rótulo não traz uma mensagem de gênero muito melhor. Não
pretendo cacetear meus leitores (que já me acompanharam até aqui!) com mais uma
análise extensa, mas a verdade é que a Metro
Man reforça padrões de gênero heteronormativos, ao sugerir que a vaidade
masculina estaria ligada aos “problemas de gênero” que a cervejaria havia
enfrentado. Isso antes de dizer que esse problema todo seria “nonsense”. A Evil
Twin realmente parece incapaz de deixar de ser ofensiva com seus consumidores:
mesmo ao atender a uma reclamação e mudar o rótulo, não deixou de reiterar que
a polêmica era vazia e sem sentido. Mas pelo menos a cervejaria aprendeu, da
pior forma possível, que as Joanas do século XXI não pretendem ficar quietas
diante dos abusos dos John Stedmans que continuam por aí.
Mas você deve estar pensando: “ah, mas isso tudo é tão
sutil, tão subentendido, tão subliminar que ninguém percebeu!” Em primeiro
lugar, muita gente não só percebeu como se ofendeu. Isso já é motivo suficiente
para polêmica. Mas, ainda mais importante, como pretendi mostrar, todos esses
significados estão perfeitamente acessíveis para uma interpretação semiótica
básica. E o fato de eles serem sutis e de frequentemente passarem despercebidos
não os torna inofensivos: como os estudos de psicologia do consumidor
evidenciam, não precisamos nos dar conta, conscientemente, de todas as
mensagens de uma peça publicitária para que ela exerça influência sobre nossa
mente, nossos desejos e nossos sentimentos. A ideologia também funciona assim:
é até desejável que nós não saibamos ou não possamos exprimir conscientemente
todos os conteúdos das ideologias que nos influenciam. Elas moldam nossa
sensibilidade, nossas opiniões e nossas ações de forma muito mais eficientes se
continuarem “encobertas”, como estão no rótulo da Imperial Brazilian Wax. Não há absolutamente nada de inocente nisso
tudo.