Sim, O Cru e o Maltado agora está no Facebook após anos de
teimosa recusa. Bastou um perfil falso homenageando nosso querido bispo
devorado pelos caetés (hilariamente, considerando seu sobrenome) e eu me
esqueci do risco de ser pressionado por alunos impertinentes a respeito de meus
hábitos cervejeiros. (Alunos, nunca se esqueçam de seus professores também têm
vida privada e preferem que ela continue assim.) E, sim, eu finalmente troquei
meu jurássico celular por um smartphone (obrigado pelo presente, minha linda!)
e faço parte da legião de cervejeiros que faz check-in de tudo o que bebe no
Untappd. Nunca estive tão internético. E também nunca estive tão
enfadado a respeito desse fato.
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Cartaz do filme.
Fonte: |
Quero digredir um pouco. Historiador adora uma digressão,
mas eu juro que volto ao assunto. É que o filme mais recente da diretora Sofia
Coppola me parece o ponto de partida perfeito para voltar a falar sobre o zum-zum-zum
cervejeiro nas redes sociais, embora não haja muita cerveja no filme (só vodka,
energético e cocaína, pode ser?). Conheci Sofia Coppola quando da repercussão
de seu primeiro grande sucesso comercial no Brasil: Encontros e Desencontros, de 2003. Odiei o tom pretensiosamente
pseudofilosófico e a sucessão de chavões vazios do filme. Também odiei de morte
o anacronismo insultoso de sua película subsequente, Maria Antonieta, de 2006. Assim sendo, estava preparado para
continuar detestando-a quando aluguei The Bling Ring, de 2013 (que ganhou no Brasil o duvidoso título de “A gangue de
Hollywood”). Só que eu amei perdidamente o filme.
Bling Ring inspira-se
em uma história assustadoramente real, mostrando que a realidade é
frequentemente mais incrível que a ficção. Spoilers adiante – o que não quer
dizer muita coisa, já que os fatos aconteceram e todo mundo sabe como a
história terminou. O enredo foi baseado em um artigo escrito pela jornalista
americana Nancy Jo Sales para a revista Vanity Fair, intitulado The suspects wore Louboutins (“Os
suspeitos calçavam Louboutins”), que conta a história de um grupo de
adolescentes de Los Angeles que descobriu que podia facilmente invadir casas de
celebridades enquanto elas estavam ausentes, fazer festinhas privadas e roubar
pequenos “mimos” dos guarda-roupas de seus ídolos.
Luxo, ostentação e
Facebook
O filme, obviamente, conta uma interpretação da história,
sendo que altera ou dá menos importância a alguns detalhes do caso para
imprimir à narrativa sua própria perspectiva. Isso não é um demérito: pelo contrário,
é o que permite à diretora expressar com mais consistência e clareza sua visão
dos eventos. Ou você acha que existe alguma narrativa que conta “fielmente”
todos os fatos “como eles de fato aconteceram” (como dizia o caduco historiador
Leopold Von Ranke no século XIX)? Na
vida real, os roubos somaram um impressionante montante de 3 milhões de dólares
em produtos, dinheiro e joias. No filme, o valor monetário ganha pouca
importância: as etiquetas com os emblemas “Dior”, “Chanel” ou “Louis Vuitton”
eram o verdadeiro troféu contido nos objetos levados pelos adolescentes. E,
convenhamos: ninguém vira uma celebridade mundial somente por roubar 3 milhões
de dólares, concorda?
O filme revela uma ironia interessante que esses
adolescentes revelaram. Na montanha-russa da especulação e da ciranda do
consumo global, um vez que os caríssimos artigos de luxo são usados
publicamente pelas celebridades, eles perdem completamente o valor para elas.
Afinal, não se vai a duas cerimônias do Oscar com o mesmo vestido. O closet das
celebridades se torna uma espécie de cemitério de fantasmáticas roupas proibidas,
objetos caríssimos completamente esvaziados de seu valor-de-uso. Tanto é que,
no filme de Coppola, quando malas cheias de roupas, sapatos e acessórias são
discretamente surrupiados, seus donos sequer se dão conta de que foram
roubados. Os objetos readquirem valor na mão dos ladrões, que correm para
postar os novos modelitos no Facebook e no Instagram. Paradoxalmente, é o crime
que restitui o valor a esses objetos e os coloca novamente no circuito da
ostentação que é seu habitat natural.
O filme poderia tranquilamente aproveitar a história para
contar uma enfadonha lição de moral sobre as consequências negativas e a
imoralidade de uma vida vazia, consumista e irresponsável, sobre como essa nova
geração de jovens está perdida, sobre como tudo era melhor quando as pessoas
eram menos fúteis (e as mulheres não saíam na rua de minissaia) e todo esse
bla-bla-bla saudosista. Numa dada altura do filme, eu até achei que Sofia
Coppola estava indo por aí – afinal, está na moda ser conservador –, mas,
felizmente, ela optou por não fazer isso. Em vez disso, ela radicalizou:
mergulhou de cabeça na linguagem e na sedução do mundo em que esses jovens
viviam e, de lá de dentro, mostrou que eles não estavam fazendo nada muito
diferente de 95% de tudo o que circula nas redes sociais.
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Que “xis” que nada! O
negócio é fazer biquinho!
Fonte: http://www.insanos.com.br/ |
O ritmo do filme capta magistralmente o tempo
simultaneamente fragmentado, rápido e enfadonhamente repetitivo das redes
sociais, análogo ao da publicidade: tudo é um flash de luxo, uma pose rápida
para a câmera, uma balada exclusiva e descolada, um produto novo. As situações
se alternam com uma naturalidade desconcertante: celular a postos, os
adolescentes se levantam e, em perfeita sincronia, começam a dançar como se
estivessem curtindo a noite há horas. Um biquinho para a câmera, um flash, e
voltam a conversar naturalmente sobre problemas de família. O importante é “sair
bem na foto”, pois os registros visuais, que serão mostrados para os outros,
são mais importantes do que a situação em si. Lembrei daquela moda que deu
entre as adolescentes de, em vez de sair para a balada, irem umas às casas das
outras apenas para se produzir e postar as fotos. No filme, as casas das
celebridades se sucedem numa mesmice de luxo e ostentação. O filme parece um
gigantesco e interminável comercial da Tom Ford, ou um clipe de hip-hop
bling-bling de 2 horas de duração. Acho que esse era o filme que Sofia Coppola
queria gravar quando fez Maria Antonieta,
mas, aqui, ela não cometeu o erro de ambientar a história no século XVIII. Ela
encarou o desafio da contemporaneidade e direcionou suas preocupações estéticas
para o ambiente correto.
Coppola insere quebras estrategicamente, fazendo a
mesquinhez da vida cotidiana se intrometer na ostentação para perturbá-la. O
luxo dos produtos de grife roubados das celebridades contrasta de forma
decepcionante com os quartos de classe média onde os adolescentes escondem de seus pais o butim de suas traquinagens: cômodos chocantemente precários se
comparados às casas-vitrine das celebridades. A própria infantilidade dos membros da
gangue, adolescentes comuns de um colégio norte-americano, rompe eventualmente
o véu do glamour que eles criam em torno de si. O resultado é o
mesmo misto de constrangimento e sedução que experimentamos ao ver as fotos da
balada de um adolescente deslumbrado no Facebook, ou o último videoclip das paradas norte-americanas com
aquelas ridículas dancinhas sincronizadas e poses sensuais que você abomina e
não consegue parar de assistir de tão chamativo. O mérito do filme de Coppola é
que ela mergulha na linguagem fragmentada do consumo contemporâneo e leva seus
descompassos às últimas consequências – sem nunca cometer o erro de julgá-la a
partir de fora.
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Emma Watson encarna o “plastic
sexy”
de sua personagem.
Fonte: http://www.insanos.com.br/ |
Aquilo que, numa clássica história moral, seria o desfecho
punitivo para o personagem vil, em Bling
Ring é só mais um lance no jogo de autopromoção e sedução que os jovens
jogam durante o filme todo. Por conta da própria publicidade que faziam de seus
roubos, exibidos como troféus, a gangue acaba presa. E, das cortes de justiça, os
adolescentes foram direto para as manchetes da Vanity Fair – finalmente lado a
lado com as celebridades que tanto admiravam. Para a jovem Nicki, interpretada
pela surpreendente Emma Watson, o julgamento, a polêmica em torno de seus
crimes e até sua prisão não passam de mais uma postagem de grande repercussão
na imensa timeline que era sua vida.
Um meio de atingir uma audiência ainda maior. E nisso ela parece não se
distinguir muito de seus ídolos mais famosos – afinal de contas, como relata em
um programa televisivo, após ser detida pelos roubos e invasões, a
adolescente teve a honra de ficar encarcerada em uma cela contígua à de Lindsay
Lohan, cuja casa ela já invadira. As celebridades de Hollywood já aprenderam há
muito tempo que, quando se faz um bom escândalo, a recompensa em termos de
publicidade supera em muito a banalidade das prisões, fianças e multas
administrativas. Nicki se revela aluna sagaz.
The suspects drank
Westvleteren
Mas o que tudo isso tem a ver com cerveja? O leitor
inteligente já terá percebido o rumo dessa conversa. Como disse lá no começo,
recentemente entrei para o Untappd e criei uma página no Facebook. E fiquei
assustado com a publicidade que as pessoas fazem em torno dos seus hábitos de
consumo cervejeiro. Fotos de garrafas e copos cheios (e, principalmente, meio
vazios) repetem-se monotonamente. Em geral são mal tiradas, mas não estão lá
para serem bonitas, e sim como uma espécie de “prova visual” de que Fulano ou
Cicrano realmente conseguiu pôr os lábios em um copo da tão cobiçada ____________
(insira aqui a mais nova importada de luxo do mercado ou alguma rara e
exclusiva “whale” americana como a Dark Lord ou a Hunahpu’s). Como não bastasse
ostentar os rótulos, caçam as medalhas do Untappd numa espécie de corrida
maluca para ver quem bebeu a maior variedade de cervejas, o maior número de
rótulos italianos, e por aí vamos.
Os “troféus” cervejeiros repetem-se com uma frequência
assustadora pelo espaço virtual, muito raramente acompanhados de qualquer
informação ou opinião útil sobre as cervejas. É difícil ler qualquer coisa além
de “muito f*da pra c***lho”. E, bem, para ser sincero, considerando a
quantidade de rótulos que o nosso não-tão-fictício degustador já postou antes
na mesma noite, duvido que ele esteja em condições de avaliar seriamente o que
está bebendo. Onde estou com a cabeça para querer qualquer coisa além de um “breja
top!”? Beber menos e melhor? Sim, sei. E sabe o que é o pior? Em mim, essas coisas
têm o exato mesmo efeito daquela mistura incômoda de constrangimento e sedução
que Coppola conseguiu emular com seu Bling
Ring. Repudio esse hábito, mas existe uma parte terrível de mim, lá no
fundo, que também quer um golinho daquele copo de Hunahpu’s. Por mais idiota
que saibamos ser essa lógica metafórica do troféu (tornada literal pelas
medalhas do Untappd!), se ela ainda tem tanta força social, é porque exerce uma
mórbida atração sobre nós, produtos da sociedade de consumo.
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“Preciso de uma nova
câmera fotográfica para
conseguir pegar todas as garrafas da farrinha de ontem!”
Fonte: |
Repete-se o mantra de que as redes sociais criam espaços
para discussão e compartilhamento de informações, e que resultam em
consumidores mais bem informados e supostamente mais qualificados. Às vezes eu
fico me questionando se isso não é conversinha para boi dormir para justificar
certos excessos de consumo. Afinal, se eu sou um consumidor bem informado e sei
dar valor ao que compro, então eu sou
merecedor de apreciar uma cerveja que me custou R$ 200 da mão de algum
atravessador. E ainda chamamos isso de “cultura cervejeira”. O mercado de cerveja
artesanal no Brasil se apoia no consumo de produtos muito caros que, por
conterem álcool, são capazes de “flexibilizar” nossa capacidade de julgamento
financeiro e nos tornam presas fáceis de seduções ridículas. Depois de quatro
chopes, aquela garrafa de R$ 200 (que eu jamais compraria se estivesse sóbrio)
não parece mais tão proibitiva. Lá vou eu abri-la, para depois me gabar de
tê-la bebido. No fim do mês, esse dinheiro vai fazer falta para mim (ou, pior
ainda, para as pessoas com quem divido meu orçamento). Mas eu tenho “cultura
cervejeira”, “bom gosto” ou o-que-quer-que-seja que me diferencia dos meros
mortais que continuam ignorantemente bebendo suas cervejas de milho transgênico
– e é isso o que importa. É a autoindulgência do consumo justificando e
encobrindo a lógica adolescente, competitiva e ostentatória do “meu pau é maior
do que o seu” – subtexto de boa parte do que leio online nos meios cervejeiros.
Leia-se: “minha carteira é mais recheada que a sua”. Sério que estamos
reduzindo milênios de história cervejeira a isso?
Se meus leitores me dão licença, agora vou buscar um copo de
cerveja. E, obviamente, tirar uma foto e fazer check-in no Untappd. Nos vemos
por lá!