Depois de ler os votos publicados na enquete organizada pelo Roberto Fonseca sobre a cena cervejeira de 2014 no Brasil (para quem não viu,
fica a indicação de leitura), consolidei minha impressão de que o ano que
passou foi um momento de intenso despertar do público brasileiro pelas cervejas
selvagens – as sour ales e seus subestilos, desde as arquiclássidas (e arquiclassudas)
lambics belgas até as descompromissadas e refrescantes Berliner Weisse.
Produtores, profissionais, especialistas e amantes inveterados de cerveja estão
definitivamente com os radares ligados para esse estilo cervejeiro, e há
previsões bastante concretas de que, em 2015, teremos pelo menos alguns
lançamentos de sour ales de cervejarias brasileiras. Quando escrevi aqui sobre
cervejas selvagens produzidas no Brasil, há pouco mais de um ano, o cenário era
um deserto desolador. Hoje, as coisas estão mudando.
Desafios do azedume no Brasil
Diante desse cenário de consolidação das sour ales no
Brasil, levanto algumas questões a respeito da possibilidade de que esses
estilos consigam ganhar mercado no Brasil nos próximos anos. A primeira delas
diz respeito à aceitação do público. Há um entusiasmo dos especialistas em
relação às sours, mas não sei até que ponto o público em geral está receptivo a
tanto azedume. Há alguns dias li uma reportagem da Folha de S. Paulo, na qual
Alessandro Oliveira, cervejeiro da Way Beer, afirmou que parte dos consumidores
tem estranhado as sours lançadas pela cervejaria. Em suas palavras: “tem gente
que manda e-mail para nós dizendo que comprou cerveja estragada, azeda”. Há uma
monumental tarefa de educação do consumidor pela frente, se quisermos que as
sour ales desenvolvam potencial de mercado no Brasil ao ponto de se tornarem
algo mais do que lançamentos para um nicho minúsculo. Tenho a impressão de que
o público bebedor de vinhos (acostumado a valorizar bebidas ácidas) é um
mercado a se explorar. Na Europa, uma boa parte dos entusiastas tradicionais de
lambics e sour ales belgas vem da comunidade dos enófilos, e não dos bebedores
de cerveja. É algo a se pensar para o marketing das nossas cervejarias.
A segunda questão (que está relacionado com a primeira) diz
respeito ao preço. Já cansei de dizer aqui: sour ales são estilos difíceis de
se fabricar, demandam uma boa dose de tentativa e erro, requerem longos tempos
de maturação e fermentação e geralmente necessitam de barris de madeira. Tudo
isso encarece o produto. Há cervejarias que repassarão integralmente os custos
ao consumidor, e aí é batata que as suas sours chegarão às prateleiras numa
faixa de preços incompatível com o mercado, ainda mais em um ano em que se
acena com a possibilidade de recessão e retração do consumo. A mineira Falke
comercializa desde 2011 uma sour ale com jabuticaba – a Falke Vivre Pour Vivre
–, mas ela chega ao mercado custando acima de R$ 200. Quem é que provou,
sinceramente? (eu já!) Aqueles que já provaram, comprariam de novo? Duvido
muito. Se a receita se repetir, esses lançamentos podem ser um tiro no pé,
monumentais elefantes brancos nos empórios que certamente vão demandar muito
mais esforço para vender do que o famoso elefantinho rosa belga (desculpe, não
resisti). Outras cervejarias provavelmente encararão as despesas extras como um
investimento para a valorização da marca (o que, cá para mim, parece uma
estratégia de mercado mais consistente para quem tem condições), e tentarão
colocar suas sours no mercado com um preço apenas marginalmente superior ao de
seus rótulos mais elaborados e intensos. É esperar para ver, mas o fato é que,
a depender dos preços, vai ser ainda mais difícil que esses rótulos atinjam o
público médio. O Brasil já tem excelentes sours belgas clássicas a preços
acessíveis, e não sei se é inteligente cobrar muito mais por sour nacionais.
Ainda mais se essas cervejas nacionais estiverem muito
abaixo do nível das belgas clássicas que temos no Brasil. O que me leva à minha
terceira preocupação: qual será o padrão de qualidade dos nossos lançamentos de
sours nos próximos dois anos? Sabemos que há cervejarias que já estão se
preparando há algum tempo para o desafio e terão condições de oferecer produtos
maduros. Mas também haverá um monte de gente que vai decidir pegar o bonde
andando e irá lançar produtos sem expertise e sem o tempo de maturação
adequada. Ora, uma obra-prima belga como uma gueuze demora pelo menos 3 anos e
meio para ficar pronta. Se uma cervejaria brasileira quisesse lançar uma gueuze
em 2015 (pode esquecer, não tem a menor condição), deveria ter começado a
produzir talvez antes de 2012. Há estilos que ficam prontos mais rapidamente,
mas quase nunca com menos de 1 ano, exceto os mais simples (como Berliner
Weisse). Será que teremos lançamentos oportunistas com cervejas que ainda não
estarão totalmente maduras, mas que serão vendidas como se fossem produtos de
luxo? Ponho minha mão no fogo como teremos. E isso não será nada bom para a
imagem das sours nacionais diante do público. A conjunção dos três fatores pode
ser explosiva, a curto e médio prazo, num cenário de retração do consumo:
resistência dos consumidores, preços altos e concorrência com belgas melhores e
mais baratas. A coisa pode azedar.
“Pô, garçom, isso me
custou mais que uma
Cantillon Grand Cru Bruocsella!”
|
Mas nem tudo são previsões apocalípticas. Algumas
cervejarias nacionais têm dado sinais de que estão enfrentando com peito aberto
o desafio de produzir boas cervejas selvagens e lançá-las a preços razoáveis.
Na verdade, escrevo esta matéria para falar sobre elas e fazer um balanço das
sour ales lançadas no mercado nacionais em 2014. A partir daí, talvez seja
possível discutir tendências, possibilidades e horizontes para a selvageria no
Brasil. Abstenho-me de comentar as cervejas que ainda não foram lançadas
comercialmente, de modo que me focarei apenas no que realmente chegou às
prateleiras.
Mezzo selvaggio
Começo com as “menos selvagens” das selvagens lançadas
comercialmente em 2014. Estou falando dos experimentos da cervejaria Tupiniquim
com leveduras do gênero Brettanomyces.
A estreante micro gaúcha se valeu da expertise
de seus parceiros estrangeiros (a dinamarquesa Evil Twin e a norteamericana
Stillwater) com cervejas com adição de Brettanomyces
para lançar no mercado dois interessantes lançamentos colaborativos. Ambos
foram fermentados integralmente com Brettanomyces,
desde a fermentação primária até a refermentação na garrafa. Nesse contexto, as
Brettanomyces se comportam de forma
semelhante às Saccharomyces tradicionais,
adicionando uma levíssima acidez acética e sutis aromas “exóticos” (um frescor
frutado diferente, talvez um acento animal leve). As Brettanomyces demoram mais ou menos 6 meses para começar a se
manifestar de forma mais clara (deixando a cerveja mais seca e com aroma animal
e frutado intenso), de modo que seria preciso esperar para que essas cervejas
manifestem um perfil claro de Bretta. Inclusive, há quem diga que as leveduras
vendidas pelos maiores fornecedores para a produção desses estilos de “Brett
ales” na verdade são Saccharomyces.
Tudo isso para dizer que as selvagens da Tupiniquim têm um pezinho bem tímido
no lado da selvageria. O que já é suficiente no cenário que vivemos.
Fonte: www.ocontadordecervejas.com.br |
O primeiro lançamento selvagem da marca foi a excelente Tupiniquim/Evil Twin Lost in Translation IPA Brett. Já falei sobre essa cerveja aqui antes, então não quero me
alongar, mas acho que foi o rótulo mais interessante que a cervejaria já lançou
até o momento, do meu ponto de vista. Tem a vantagem de ser uma IPA de boa
qualidade (o que já é um mérito por essas bandas), seca, com amargor limpo e
afiado e com bons aromas herbais (verbena) e frutados (manga, mamão, limão). As
Bretta contribuem com um suave toque exótico que remete a uvas verdes, couro de
sapateiro e borracha defumada. Ótima pedida. A segunda boa cerveja
“semisselvagem” da marca foi a Tupiniquim/Stillwater Saison de Caju, saison inteiramente fermentada com Brettanomyces e produzida com adição de polpa de caju e manga. Acho
que essa foi a primeira saison nacional que provei que saiu realmente fiel ao
estilo. Amarela clara e opaca na taça, com espuma nababescamente alta e muito
persistente. No aroma, frutas, terroso e especiarias em equilíbrio, como
preconiza o estilo. Na ala das frutas, a manga é bem mais evidente que o caju
(o que, de certa forma, torna o nome da cerveja um pouco estranho), e sentem-se
também abacaxis maduros, laranja e damascos secos trazidas pela levedura.
Terroso e pimenta-do-Reino em boa intensidade trazem o tradicional contraponto
do estilo. Um pouquinho de pão branco do malte, um tiquinho de untuosidade de
DMS. O paladar é bem seco, com acidez expressiva na boca e um final amargo,
terroso, típico do estilo. O corpo é mediano e a adstringência é perceptível.
Contudo, as Brettanomyces aqui
ficaram bem apagadas, quase imperceptíveis. Talvez – e eu digo talvez – um
toque de borracha defumada ao fundo, lembrando a Lost in Translation. Ou
estaria eu sugestionado? Não importa: o fato é que o perfil de Bretta é muito
sutil, de modo que é melhor encará-la como uma saison bem feita. Acredito que,
depois de uns 6 meses na garrafa, as danadas das Brettanomyces vão começar a aparecer.
Selvageria germânica
Outra cervejaria que andou brincando com estilos selvagens
foi a tradicionalíssima e germaníssima Abadessa, também do Rio Grande do Sul.
Em 2014, a micro gaúcha lançou comercialmente sua versão para o estilo Gose,
estilo selvagem tipicamente associado à região de Leipzig, na Alemanha (clique
aqui para saber mais sobre esse estilo pouco conhecido e que quase foi
extinto). A Abadessa Gose já havia
sido lançada em 2013, mas não tinha sido engarrafada e distribuída
comercialmente devido a pendências com o registro da cerveja. Em 2014, ela
finalmente chegou aos empórios. A microcervejaria apostou numa interpretação
suave do estilo, que potencializasse sua drinkability e sua refrescância,
distante da acidez mais acentuada que parece ter sido marca das versões mais
tradicionais dos séculos XVIII e XIX. A Abadessa Gose não fermenta com bactérias láticas para desenvolver sua acidez. Em vez
disso, recebe adição de ácido lático já pronto, apenas para “ajustar” a acidez
desejada, o que faz com que o azedinho fique bem suave. Como é típico do estilo,
ela também recebe sal e sementes de coentro.
Essa bruxa me dá medo.
De
um jeito errado.
Fonte: cervejasartesanaisdobrasil.blogspot.com |
O resultado é ao mesmo tempo sutil e surpreendente. Na taça,
a Abadessa Gose mostra um dourado
radioso, levemente esbranquiçado, e alguma turbidez. Na boca, abre com uma leve
doçura de malte e desenvolve uma acidez suave e refrescante, um firme amargor
de lúpulos e um apetitoso toque salgado, tudo se alternando na boca e se
equilibrando sem que nada sobressaia. No aroma, muito pão branco, floral de
lúpulo nobre (pareceu-me a variedade Saaz com seu perfume de camomila), o
cítrico-apimentado das sementes de coentro e um frutadinho que lembra banana
verde, tudo em harmonia. A persistência na boca é muito alta e agradável (como
é uso ocorrer nas cervejas da Abadessa, aliás), com sabor rico de pão branco e
sensação seca, amarga, ácida, levemente salgada, extremamente apetitosa. Apesar
do corpo mediano, o sal preenche a boca e dá volume. Parece uma Münchner Helles
com sal, coentro e uma leve acidez. Não espere um exemplar extremo ou marcante
do estilo: a Abadessa Gose é uma
cerveja sutil e equilibrada, talvez um pouco conservadora, sim, mas com um
enorme poder de abrir o apetite. Imagino imediatamente esta cerveja sendo
servida como aperitivo em uma festa numa tarde de calor.
Frutas tropicais
De todos os lançamentos selvagens do ano de 2014, talvez o
que mais tenha chamado a atenção do público e da mídia especializada foi a
linha Sour me Not, da microcervejaria curitibana Way Beer. Também, pudera. São
3 rótulos de sour ales inclementemente ácidas, com receitas parecidas, mas
diferenciando-se pela adição de diferentes frutas: morango, acerola e graviola.
A Way mexeu com o imaginário do público brasileiro, mostrou que as cervejarias
brasileiras estão antenadas com a tendência internacional das sour ales e, de
quebra, ainda provou que é possível oferecer rótulos do estilo a preços
acessíveis: a linha Sour me Not custa em torno de R$ 15 cada garrafinha. OK,
não são sour ales de produção tão complicada quanto lambics. Todas têm a mesma
receita de base, de um baixo teor alcoólico de 3.5%, com fermentação mista com
leveduras comuns do gênero Saccharomyces
e bactérias láticas do gênero Lactobacillus,
sem Brettanomyces e sem passagem por
madeira. E todas levam adição de polpa de frutas, claro.
Fonte: embuscadacervejaperfeita.com |
Também não quero me estender especialmente nelas, uma vez
que já lhes dediquei uma postagem aqui no blog. Neste momento, só quero fazer
um comentário geral sobre a linha e comentar como ela se insere dentro dos
lançamentos do ano. A similaridade entre as receitas da linha Sour me Not é
bastante notável. Em todas, percebe-se um ataque de acidez lática muito destacada
(um pouco agressiva para meu gosto) e uma doçura residual de malte também bem
perceptível, sobretudo no final, com doçura notável e sabor de pão doce e
baunilha. O jogo entre doce de malte e acidez lática lembra a sensação de uma
Berliner Weisse, mas com tudo bem mais intenso. As três também exibiram um
aroma lático um pouco estranho, lembrando iogurte ou probiótico, que pode
talvez ser explicado pela intensidade da fermentação lática. O aroma da fruta
fica em segundo plano, mas nas três ele é perceptível. Dito isso, cada um dos
rótulos da linha tem seus destaques. A Way Beer Sour me Not Morango tem doçura um pouco acentuada demais e aroma de
fruta passada ou cozida – foi a que menos me agradou das três. A Way Beer Sour me Not Acerola, preferida
de muitos, é a mais seca, com acidez firme e refrescante e bons taninos, embora
o aroma da fruta seja mais tímido. Mas, para mim, o destaque fica por conta da Way Beer Sour me Not Graviola: a fruta
traz boa suculência (e eu adoro graviola) e a sensação de doçura é
intermediária entre as outras duas, resultando em equilíbrio.
Blendagem
Um dos traços mais característicos dos estilos belgas de
cervejas selvagens é o uso da técnica da blendagem: a mistura entre cervejas
maturadas durante períodos de tempo variáveis, em tanques, tonéis, ou barris
diferentes. A blendagem é uma técnica que ajuda muito os produtores a
oferecerem sour ales equilibradas e complexas em escala comercial, pois permite
combinar as características de lotes diferentes (aumentando as camadas de sabor
e aroma) e esconder ou minimizar problemas que quase sempre aparecem na
imprevisível maturação em madeira. A Wäls tem sido uma das poucas cervejarias a
experimentar a blendagem de forma sistemática em suas cervejas ácidas. Até
pouco tempo atrás, esses experimentos haviam ficado limitados aos poucos barris
da fábrica da cervejaria, sem distribuição comercial. Em dezembro de 2014, isso
mudou com o lançamento da Wäls Wild Ale EAP, resultante do blend entre uma dubbel ácida e uma dubbel “normal”,
combinando o melhor de ambas.
Para quem não sabe, EAP é a sigla para o famoso Empório Alto
dos Pinheiros, um dos mais tradicionais pontos de venda da Wäls aqui em São
Paulo. A cerveja foi lançada num lote bastante limitado de apenas 1000 garrafas
de 375ml. Segundo a cervejaria, a ideia teria se originado de uma encomenda de
Paulo Almeida, proprietário do empório. Não falei a esse respeito nem com ele e
nem com os irmãos Carneiro, da Wäls, mas tenho um palpite de como tudo
aconteceu. Lá em torno de 2011, quando começaram a vir os chopes da Wäls para
São Paulo, lembro-me de uma torneira de Wäls Dubbel, lá no EAP, que estava com
problemas. A cerveja havia sofrido uma contaminação bacteriana (não sei se no
barril ou na serpentina) e estava extremamente ácida. O Paulo Almeida me
ofereceu um copo para eu provar, e eu me recordo vivamente de um comentário que
ele fez na época: “Está azeda, mas está gostosa. Se eu oferecesse como uma sour
ale, aposto como venderia!” OK, as palavras exatas podem não ter sido essas,
mas você entendeu o espírito. Eis que, uns quatro anos depois, cá estamos nós
com essa sour dubbel da Wäls feita por encomenda do Paulo.
Fonte: untappd.com |
A cerveja foi produzida por um método curioso. Sua
receita-base foi a medalhista Dubbel da cervejaria. Metade do lote fermentou e
maturou durante 3 meses em tanques de aço inox, a temperatura de 0º C, enquanto
a outra metade fermentou e maturou em barricas de carvalho durante 3 meses,
ganhando acidez. As duas partes foram blendadas na proporção de 1:1 e
engarrafadas, e depois passaram aproximadamente 4 anos evoluindo nas garrafas.
A Wäls esperou o momento oportuno de lançar comercialmente esse blend, e a hora
chegou agora, quando se vive um recrudescimento no interesse por sour ales no
país. Há várias coisas interessantes a respeito da produção dessa cerveja. Em
primeiro lugar, o fato de ela ter sido feita quando ainda poucos falavam em
sour ales no Brasil. Em segundo lugar, o fato (até onde sei, inédito no Brasil)
de uma cervejaria envelhecer suas cervejas na garrafa antes de
comercializá-las, apresentando um produto que chega ao consumidor com claros
sinais de evolução e envelhecimento. Em terceiro lugar – e aqui está o fato mais
instigante da cerveja –, é curiosa a forma como se fez a acidificação da metade
ácida do blend. Segundo José Felipe Carneiro, cervejeiro da Wäls, não houve
adição ou inoculação deliberada de bactérias ou de leveduras do gênero Brettanomyces na fermentação da cerveja:
a cerveja recebeu apenas o fermento comum da casa, com leveduras do gênero Saccharomyces. Em vez disso, as barricas
de carvalho que maturaram metade do blend foram expostas à microflora local do
entorno da cervejaria, adquirindo uma mistura de microorganismos que ocorrem na
área, sem controle seletivo do cervejeiro. Quem já visitou a Wäls, em Belo
Horizonte, sabe que a cervejaria se localiza num bairro arborizado, próximo ao
Campus Pampulha da UFMG, área que propicia a reprodução da microflora no ar. Ou
seja: a fermentação lática da Wäls Wild Ale EAP poderia ser chamada de “espontânea”, lembrando os métodos de
produção das lambics belgas. Verdadeiramente uma “wild ale”.
Tanto a fermentação “semiespontânea” nas barricas quanto o
envelhecimento na garrafa por 4 anos imprimiram sinais claros na cerveja,
compondo um conjunto sui generis. Apesar
de o método de produção não seguir nenhum estilo definido, o resultado lembra
muito um raro estilo belga em decadência, denominado oud bruin ou Flanders
brown ale (escrevi sobre elas aqui). A apresentação é caprichada, a começar
pela garrafa embrulhada por uma folha de papel que faz as vezes de rótulo –
como ocorre com muitas sours belgas tradicionais. Na taça, ela mantém a pose
com uma bela coloração ameixa, transparente, e uma espuma farta. No aroma, um
estranhamento inicial e muita complexidade que vai se revelando em camadas, com
o tempo. O estranhamento é a ausência de sinais evidentes de Brettanomyces – nada daquele aroma
animal característico, nem das frutas frescas. Pode-se imaginar que a
microflora local da cervejaria talvez não inclua cepas de Brettanomyces. Na sequência, muita licorosidade de malte (caramelo
aos montes, achocolatado) e frutas doces (maçãs ao forno, ameixas secas,
cerejas ao marrasquino e mamão cristalizado). Lúpulo floral (ainda perceptível
depois de tanto envelhecimento!) e toques terrosos e azedos são o contraponto
aromático a toda essa doçura. Um perfil muito intenso e definido de evolução e
oxidação evidencia claramente os quatro anos da longa maturação: muito vinho do
Porto, amêndoas doces, suco de tomate e couro curtido, além de um toque um
pouco incômodo de plástico. Na boca, a doçura licorosa predomina, mas há uma
acidez bem perceptível e uma sensação salgada-carnuda de umami, típica de boas
cervejas envelhecidas. Corpo mediano, terroso, com adstringência sem exagero. O
final é um pouco inexpressivo – talvez seu ponto mais fraco. No conjunto,
lembrou muito um clássico de guarda do estilo oud bruin: a belga Liefmans Goudenband (que está chegando ao Brasil muito em breve). Esta Wäls Wild Ale EAP
consegue atingir o mesmo equilíbrio entre doce, licorosidade, evolução e
acidez, mas com mais complexidade aromática. Não é uma sour ale muito agressiva
– pelo contrário, a acidez é clara mas é secundária diante do perfil doce e
licoroso da dubbel e da guarda. Não deverá assustar quem não está acostumado
com a secura da maior parte das sour ales. Ótima receita da Wäls! Apesar das incertezas envolvendo a parceria entre Wäls e AmBev, fica a esperança de que a fusão não interfira na ousadia da micro mineira e a expectativa de que venha mais coisa selvagem bem feita! Uma vez que
ela foi lançada apenas em dezembro e eu só consegui prová-la em janeiro, não
deu tempo de incluí-la na minha retrospectiva de 2014, mas ela certamente
mereceria um lugarzinho lá.
Um balanço – preliminar
O que dizer diante de todos esses lançamentos selvagens de
2014? Em primeiro lugar, parece claro que as cervejarias brasileiras estão
começando a se aventurar no universo da selvageria. Mas qual o balanço desses
primeiros passos? Como essas sete cervejas se enquadram diante dos três
questionamentos com os quais eu comecei esta matéria (aceitação, preço e
qualidade)?
No quesito da aceitação do público, as micros brasileiras
parecem ir numa direção interessante. Dentre as quatro cervejarias indicadas,
pareceu-me que apenas a Way apostou no lançamento de sour ales radicais, de
acidez extrema. Em todas as demais, os traços selvagens são relativamente
suaves, permitindo que o público se acostume progressivamente com a proposta.
No caso das cervejas da Tupiniquim, o caráter de Bretta é quase imperceptível,
sobretudo para um leigo, e quase não há acidez. A bem da verdade, as cervejas
da Tupiniquim não são sour ales, apenas ales comuns com toques de Brettanomyces. No caso da Abadessa Gose, a acidez lática é sutil,
muito equilibrada, dando origem a uma cerveja refrescante e apetitosa que não
deverá incomodar o paladar de ninguém minimamente aberto a novas experiências.
No caso da Wäls Wild Ale EAP, o
perfil se aproxima muito das oud bruin, as mais suaves das cervejas selvagens
belgas, com licorosidade o bastante para “disfarçar” a acidez. Ou seja: é um
cenário em que, por enquanto, o consumidor relutante tem uma boa gama de opções,
digamos, mais “conservadoras”.
No quesito do preço, o ano de 2014 nos autoriza um certo
otimismo, mas eu tenho cá para mim que esse cenário vai mudar em 2015 e 2016. Os
preços da Tupiniquim e da Abadessa ficaram na média dos demais rótulos das
cervejarias. Os da Way ficaram apenas marginalmente acima. Claro que, nos três
casos, estamos falando de estilos selvagens de fabricação mais simples, sem o
uso de madeira e sem maturação estendida, o que ocasiona preços mais
acessíveis. A exceção é a Wäls Wild AleEAP, que teve uma longuíssima maturação de 4 anos na garrafa e que empregou
barris de carvalho durante 3 meses. Apesar disso, o preço não foi tão alto
assim: R$ 30, o que representa menos de 50% acima da linha belga da cervejaria.
Para mim, esse valor é razoável diante de uma cerveja com maturação tão longa e
com uso de madeira.
Finalmente, resta o quesito qualidade. Fizemos boas sour
ales no ano de 2014? Vejamos caso a caso, inicialmente. As cervejas da
Tupiniquim são ótimas representantes de seus estilos de base (American IPA e
saison), mas as características selvagens são um tanto tímidas, então elas não
contam. A Abadessa Gose é sem dúvida
uma cerveja produzida com excelência e com o elevado padrão de qualidade da
Abadessa nos estilos alemães, mas seu “perfil selvagem” é bastante conservador,
um pouco decepcionante para um “heavy user” de sour ales. A linha Sour me Not
da Way é a mais ousada no quesito acidez, mas as cervejas da linha ainda têm
algumas arestas importantes a aparar antes de poderem ser consideradas
excelentes sour ales com frutas. Por fim, a Wäls obteve, na minha percepção, o
melhor equilíbrio entre ousadia e qualidade. Sua Wild Ale EAP tem ousadia o bastante, mas também tem um caráter amigável,
semelhante ao estilo oud bruin. Já ouvi a opinião de pessoas que se
decepcionaram porque esperavam algo “mais selvagem”. Por outro lado, essa
proposta é bem executada, complexa e interessante, talvez com mais destaque
para o perfil de evolução do que para o selvagem, propriamente. E vale ainda
destacar a surpreendente ousadia da Wäls em apostar na viabilidade de uma fermentação
“semiespontânea” – o que, sinceramente, eu achei que demoraríamos muitos anos,
quiçá décadas, para ver acontecer no Brasil. Resta saber como ficará toda essa ousadia agora que a Wäls é parte da gigante AB-InBev.
A verdade é que uma sour ale “completona”, ao mesmo tempo
excelente e ousada – seca, com caráter exuberante de Brettanomyces, complexa e equilibrada como as melhores belgas –
ainda é uma meta a ser atingida pela indústria nacional de cerveja. Mas
tenhamos calma. O jogo está só começando e estamos nos primeiros lances da
partida.
Uma dúvida, Marcussi: as cervejas feitas pelo método champenoise são consideradas sour/ wild ale também? A Double Vienna Brut seria uma sour/ wild ale? Abr
ResponderExcluirEntendo que não, Gustavo. Bières brut fermentam com Saccharomyces cerevisiaes e refermentam com Saccharomyces bayanus (levedura de espumante). Não há bactérias láticas e nem Bretta no processo, muito embora a Saccharomyces bayanus, depois de uma longa refermentação, possa desenvolver alguns aromas que lembram Bretta (isso acontece claramente na Wäls Brut, por exemplo). Não tomei a Double Vienna Brut para saber se é o caso dela também. Você achou traços selvagens nela?
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
A melhor das Sour Me Not, na minha opinião, ainda não saiu comercialmente, ou talvez nunca saia: é a com Uvaia. Provei no evento da Way no Butantan Food Park ano passado. Gostei tanto que no final convenci a me venderem mais um copo (era só sample dentro de uma séria de 8 cervejas experimentais deles, algumas interessantíssimas.) O Alessandro nos revelou que conseguiu de um produtor local uns 20kg da polpa da fruta e usou pro batch que nos servia, mas é que bem difícil conseguir a fruta por lá. Achei que foi, de longe, a melhor combincação e a mais interessante também, pelo sabor exótico da Uvaia, com um toque metálico. A base da cerveja continua sendo a mesma estilo Berliner, com residual maltado aparente e acidez bem agressiva, mas eu adorei o resultado. Rezo pra que saia um dia comercialmente.
ResponderExcluirPois é, Edson, pelo que li, foram mais de 20 frutas testadas, mas eu resolvi só falar das que saíram comercialmente. Os experimentos são sempre interessantes, mas o que vale mesmo, num mercado profissionalizado, são os produtos com registro comercial. Quanto ao uso das frutas, eu tenho a impressão de que os resultados talvez fossem mais interessantes se fossem usadas as frutas inteiras, e não apenas polpa, já que boa parte dos aromas e taninos estão na casca. A polpa deixou toda a linha com um aroma de fruta um pouco apagado, na minha opinião. Mas isso também traz riscos de contaminação que não são desprezíveis.
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
Não cheguei a provar a Double Vienna Brut! Muito cara!! Obrigado pelas infos. Abrc
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