Na última postagem, comentei algumas questões gerais a
respeito do mercado cervejeiro de 2013. Agora, quero falar sobre rótulos
específicos que me impressionaram no ano passado, seja pelo seu nível de
excelência e complexidade, seja pelo seu custo-benefício, seja pelo que
representaram ao longo desse ano que passou. Optei por não incluir aqui rótulos
que estejam indisponíveis no mercado brasileiro, por alguns motivos. Em
primeiro lugar, porque quero oferecer aos leitores um guia daquilo em que, na
minha opinião, vale a pena gastar seu rico dinheirinho num ano marcado por
lançamentos caros. Em segundo lugar, porque já tive a oportunidade de comentar
aqui no blog, em outros momentos, algumas cervejas extraordinárias que passaram
pelo meu copo e que não chegam ao Brasil. Limito os comentários a algumas
palavras gerais sobre cada rótulo, mas, se você quiser saber mais detalhes,
basta clicar no nome de cada uma para ver a avaliação completa. Então chega de
papo furado e vamos aos destaques!
As importadas
Começo falando sobre as cervejas importadas que passamos a
ter no mercado no ano passado. Houve muitos lançamentos extremamente caros que
eu não tive a oportunidade de provar (foi-se a época em que eu tentava provar
um pouco de tudo o que chegava ao Brasil), mas a verdade é que poucos são os
que realmente valem o que custam. Então
farei um mix de rótulos caros e extremamente recompensadores, junto com outros
de custo-benefício mais favorável.
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Dentre aqueles que vão onerar seu bolso, a linha de lambics
da Cantillon chama a atenção pelo nível de excelência. Um dos maiores destaques
é a Cantillon Grand Cru Bruocsella Lambic Bio, lambic pura que maturou durante 3 anos em barris de carvalho.
Como ela é engarrafada direto do barril, sem blendar com lambics mais jovens e
sem receber nenhuma adição de açúcares, não refermenta na garrafa e, portanto,
não desenvolve nenhuma carbonatação, ficando completamente sem gás, como um
vinho branco. Sua acidez é mais elegante e contida do que na gueuze, com uma
pontada discreta de doçura. No aroma, abundantes camadas de frutas cítricas e
maduras (pêssegos, nectarinas, tangerinas, framboesas, limas-da-Pérsia)
misturam-se a uma envolvente doçura abaunilhada, com um elegante acento mineral
e apimentado. As notas animais e terrosas, típicas do estilo, são um pouco mais
suaves do que na gueuze. Os taninos são relativamente leves, deixando-a com um
final menos persistente na boca. Esta raridade, de produção e distribuição
limitadas, chega ao Brasil custando em torno de R$ 150 pela garrafa grande, de
750 ml.
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Outra cervejaria cara que impressiona pelo grau de qualidade
de seus rótulos é a De Molen. Sua impecável linha de cervejas maturadas em
madeira mostra a competência virtuosa com a qual a marca trabalha com seus
barris. Dentre as que pude provar, o destaque vai para a De Molen Hel & Verdoemenis Misto Bourbon Barrel-Aged. Trata-se
de uma versão ligeiramente mais alcoólica da imperial stout Hel & Verdoemenis (que já é incrível em sua versão básica), maturada em barris de
carvalho usados para produção dos bourbons Wild Turkey e Austin Nichols e
depois blendada à perfeição. Parece um pavê de chocolate engarrafado, daqueles
feitos por aquela sua avó manguaceira, com biscoitos umedecidos com vinho do Porto.
Biscoito, caramelo e sorvete de chocolate se misturam deliciosamente a uma
baunilha limpa, potente e suculenta trazida pelos barris, sem detrimento das
frutas passas e dos toques licorosos lembrando Porto. Tons torrados (café e
queimado) aparecem sem roubar a cena. A doçura predomina (como numa sobremesa),
mas com amargor correto que a impede de ser enjoativa. Excelente sensação
licorosa e sedosa na boca. Cerveja dessas irritantemente impecáveis, nas quais
você não consegue botar defeito nem que tente. Ah, sim, tem um defeito: custa
R$ 85 no Brasil (contra meros 5 euros lá fora). Ops.
Passemos a rótulos para os quais não será necessário fazer
poupança ou dilapidar seu holerite. Apesar de ter sido um ano cheio de cervejas
caras, houve alguns destaques naquela faixa mais confortável (não disse
“barata”, entenda) em torno de R$ 20-25. O primeiro é um exemplar paradigmático
do jeito americano de se fazer Russian imperial stouts, mais rústico, seco e
lupulado que os ingleses. Trata-se da North Coast Old Rasputin Russian Imperial Stout, que nos chega na faixa dos R$ 20
pela garrafa pequena. Cerveja de força e pegada, com os tons torrados e
queimados (café, cinzas, cacau torrado) predominando sobre os mais macios
(caramelo, castanha, amadeirado). Mentolado, frutas vermelhas e um quê cítrico
da lupulagem expressiva lhe adicionam frescor e complexidade. O final é amargo
e seco, com sensação aveludada sem ser pesada em excesso. Boa compra para a
adega.
Fonte: |
Outra linda americana que chegou em 2013 – e que não recebeu
a atenção que merece – foi a Ballast Point Big Eye IPA. Este rótulo acabou ficando ofuscado pela sua mais
popular irmã, a Sculpin IPA, mas eu a achei uma IPA americana mais equilibrada
e agradável, sem os extremismos da Sculpin. Como manda a tradição da costa oeste, não exibe sensação caramelada, mas ainda tem uma certa doçura de malte que a
equilibra de forma elegante, escoltando um amargor intenso, limpo e
refrescante, que não agride a garganta. No aroma, uma profusão de tons cítricos
(casca de laranja, cidra), frutados (framboesa e mamão), herbais (verbena
deliciosamente perfumada) e leves florais, que se casam com a doçura de geleia
do malte para sugerir suculentas compotas de frutas. Corpo mediano, levemente
melado, menos seco que a Sculpin’, mas ainda sem enjoar. Ótima representante do
estilo, que se encontra por aí na faixa dos R$ 20 pela long neck.
Fonte: http://www.flickr.com/photos/47365105@N06/ |
Por fim, uma cerveja que virou minha cabeça: a Mikkeller/Grassroots Wheat is the New Hops.
Para quem não sabe, “Grassroots” é a linha colaborativa de uma das mais
prestigiadas cervejarias norte-americanas do momento, a Hill Farmstead (que
acaba de ser considerada a segunda melhor cervejaria do mundo na votação do
Rate Beer de 2013). Trata-se de uma American IPA que fermenta apenas com
leveduras do gênero Brettanomyces.
Como não recebe bactérias láticas, ela não é ácida, mas tem alguma coisa
daquele aroma deliciosamente fresco e rústico das lambics. As Brettamomyces juntam-se aos lúpulos para
criar novos e sofisticados horizontes de frescor frutado, cítrico e herbal
(uvas verdes, peras brancas, maracujá, terroso, capim-limão, lima-da-Pérsia,
leve pimenta). Há um levíssimo acento animal de fundo, bem como um breve toque
acético que depois dá lugar a um amargor seco e terroso que se prolonga no
final. No nariz lembra um vinho branco mais seco (pense em Sauvignon Blanc, por
exemplo), mas na boca o amargor faz as vezes da acidez. Sabemos que as
microcervejarias europeias da “nova geração” costumam ser caras, e este rótulo
chega ao Brasil na faixa dos R$ 25 pela long neck.
As nacionais
Como já comentei, o ano foi um pouco mais morno no cenário
nacional, com poucos lançamentos que realmente tenham se destacado pela sua
qualidade. Boa parte das novas cervejas brazucas de 2013 se compõe de imitações
de segunda categoria (desculpa, é verdade) de estilos norte-americanos da moda,
sobretudo IPAs. E nem sempre com bons preços em relação às importadas dos
mesmos estilos.
A Bamberg mantém uma atitude relativamente discreta,
“low-profile” no cenário nacional, mas foi responsável por alguns dos
lançamentos mais interessantes de 2013. Num momento em que todas as cervejarias
estão correndo atrás dos estilos norte-americanos, a Bamberg não teve medo de
ser fiel às suas origens germânicas e está lançando muitas receitas inovadoras
e instigantes criadas a partir de estilos alemães. No início do ano passado, a
Bamberg trocou todo o seu equipamento por um que lhe permite empregar uma
técnica usada nas cervejarias alemãs mais tradicionais, a decocção do mosto. O
resultado são cervejas com perfil mais rico e saboroso de malte. O grande
destaque do ano, para mim, foi a edição de 2013 da sazonal Bamberg Caos. O estilo, pouco usual, é denominado às vezes de
“doppelsticke”, e consiste em uma versão mais intensa e alcoólica de uma
altbier. Na versão da Bamberg, o aroma exala notas frutadas e lácteas,
lembrando vivamente iogurte de morango (com cerejas e passas ao fundo),
enquanto o malte traz bastante caramelo, castanhas e um quê de café-com-leite.
Ela entra bem doce e suculenta na boca, porém, o final traz um amargor intenso
para equilibrar. Cremosa e aveludada na boca, não revela seus 8% de álcool. Tem
bom potencial de guarda. A long neck se situa na amigável faixa dos R$ 12 e sai
todo ano em abril. Não perca.
Um lançamento que fez bem mais barulho no cenário nacional
foi a Bodebrown/Stone Cacau IPA,
feita em parceria com Greg Koch, mestre-cervejeiro da Stone que visitou o
Brasil no início do ano passado. Trata-se de uma IPA de estilo americano
virtuosamente bem-executada, com uma discreta adição de lascas (nibs) de cacau.
Enquanto 95% das IPAs brasileiras perdem o frescor aromático depois de alguns
poucos goles e te deixam com um copo cheio de chá de capim, a Cacau IPA
consegue se manter perfumada e fresca até o fim. Ela começa bem cítrica, com
uma sensação meio amanteigada (lembra manteiga de cacau mesmo) de mousse de
maracujá, depois revela perfumes herbais frescos em boa intensidade (cidreira,
capim-limão, pinheiro, mentol) e, por fim, desenvolve um aroma frutado
lembrando pêssego. O caramelado do malte está lá o tempo e, com o tempo,
aparece uma nuancezinha lembrando chocolate ao leite. O cacau é suave no
conjunto, o que a faz parecer mais uma boa IPA (o que não é pouco) do que uma
cerveja com cacau. Ela começa doce e caramelada, levando a um final amargo, não
seco, mas sim oleoso. Seu preço aqui em São Paulo assusta e não incentiva o
repeteco, mas pelo menos permite a prova: R$ 23 pela garrafa “caçulinha” (300
ml).
Meu terceiro destaque nacional vai para uma cerveja intensa,
marcante e de bom custo-benefício, pelo menos aqui em SP: a Invicta Imperial Stout. Ao contrário da
Old Rasputin, que comentamos acima, a Russian imperial stout da Invicta é
pesada, doce e indulgente como um bolo de chocolate bem cremoso. Muito
chocolate daqueles “do padre”, caramelo, biscoitos doces e um tiquinho de café
de coador, ao lado de um frutado bem expressivo e sofisticado, lembrando
cerejas ao marrasquino e figo verde em calda. Grossa, viscosa e oleosa na boca,
com um paladar bem doce que é equilibrado por um amargor assertivo aparecendo
no retrogosto e um aquecimento alcoólico inclemente. Para fechar uma noite de
gulodices por um preço amigável, na faixa dos R$ 20 pela garrafa de 500 ml. Faz
um bom contraste e rende uma bela degustação comparada com outra imperial stout
brasileira lançada em 2013, bem mais seca, amarga e rústica: a paranaense Dum Petroleum.
Ambas prometem bom futuro na adega.
Sabemos que o Brasil ainda é carente em lançamentos de
cervejas maturadas em barris (que estão entre meus estilos favoritos, não é
segredo). Ainda existe um vácuo legislativo a esse respeito, que torna a
regularização mais incerta. No início de 2013, a cervejaria Wensky lançou a Wensky Drewna Piwa, uma old ale
robusta, de 9.5% de álcool, que resultava de um blend em que metade maturou por
4 meses em barris de carvalho americano virgem, enquanto a outra metade maturou
em chips de carvalho francês. Old ale comme il faut. É sinal benfazejo ver uma cervejaria procurando o
melhor balanço entre madeiras de diferentes origens, como as boas vinícolas já
sabem fazer há muito tempo. O uso competente da madeira acentua a suculência e
a maciez dos maltes doces, resultando em uma avalanche de doce de leite,
toffee, caramelo, castanhas e chocolate. Frutas passas e laranja a complementam
com alguma licorosidade que lembra vermute. Além do aroma de madeira
propriamente dita, a baunilha do carvalho americano funde-se harmoniosamente às
percepções de noz moscada, mineral e mentolado, mais típicas do carvalho
francês. A versão blendada ainda não tinha registro comercial. Em meados de
2013, a Wensky Drewna Piwa voltou ao mercado com novo rótulo e já com registro,
mas com novo processo de produção, que usava apenas chips de carvalho francês, em
vez dos barris propriamente ditos. Ainda não provei a nova versão, espero que
mantenha o nível de excelência da anterior. A garrafa de 500ml sai na faixa dos
R$ 26, o que não é abusivo considerando-se o estilo. Sou feliz proprietário de
mais duas garrafas do primeiro lote, que estão evoluindo na minha adega.
Taí. Nove lançamentos de 2013, para todos os gostos e bolsos.
Todos ótimas compras, independentemente do preço. Concorda, discorda, gostaria
de adicionar alguma outra sugestão? Use o espaço dos comentários abaixo!
boa lista. provaste alguma das outras imperial stouts da de molen? a unica q encarei até hoje foi a hel & verdoemenis, que acho sensacional... não fui nas outras pelo preço, única aceitavel era a rasputin..
ResponderExcluirDentre as imperial stouts da De Molen, provei a Rasputin, a Hel & Verdoemenis e a Hel & Verdoemenis Misto BA. A Rasputin não me agradou muito, não, mas a H&V eu achei fantástica, seguramente uma das melhores imperial stouts do nosso mercado! Só o preço que realmente não ajuda.
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
Parabens pelo post e pelo blog. A cacau Ipa tem um que de english IPA não tem? Tomei ela num festival e a achei muito equilibrada e não agrasseiva como as american IPAs. Abrc
ResponderExcluirOu será que meu parâmetro de amwrican IPA possa estar errado, devido a degustações de IPAs degrafadas?!
ResponderExcluirGugão, o parâmetro mais aceito para diferenciar English e American IPAs, hoje, é o perfil aromático de lúpulos. A Cacau IPA usa lúpulos inegavelmente americanos, com aquela pegada cítrica, frutada e um perfume herbal característico. Ela tem uma certa doçura de malte sim, um sabor caramelado, mas isso não é suficiente para enquadrá-la como English IPA.
ExcluirAgora, esqueça essa coisa do equilíbrio e da agressividade. Nenhuma boa IPA deve ser agressiva, nem americana, nem inglesa. As americanas são mais amargas, em geral, mas também devem ter um amargor limpo e agradável, e não agressivo. O que ocorre é que as inglesas tendem a ter o malte mais evidente que as americanas, o que ajuda a equilibrá-las.
Eu escrevi um pouco sobre as diferenças entre os dois tipos de IPAs aqui no blog: http://ocrueomaltado.blogspot.com.br/2012/04/guias-de-estilos-parte-vii-o-duelo.html .
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Entendi! Valeu!
ExcluirA Grassroots é absolutamente incrivel! Concordo bastante com sua escolhas, alias como habitualmente, so a Chaos que eu achei esquisita, apesar de gostar bastante do estilo Bamberg.. Um abração Alexandre.
ResponderExcluirO bacana das listas é isso: nunca as mesmas cervejas vão agradar igualmente a todo mundo! E eu fui intencionalmente parcial e segui meu gosto pessoal nas escolhas que fiz neste post! Espero que 2014 nos traga mais boas surpresas!
ExcluirAbraços!
Alexandre A. Marcussi
Salve Marcussi,
ResponderExcluirObrigado pelo crédito da imagem da Bamberg Caos. A da Cacau IPA também é do cerveja para dois, embora eu não coloque nenhuma marca para outros usarem, dando o devido crédito. Infelizmente isso nem sempre acontece, tanto que parou no ML : D
Abraços e parabéns pelo blog!!
Olá, Flávio!
ExcluirSempre tento rastrear a origem das imagens que eu coloco, mas às vezes acabo creditando errado. Vou corrigir já!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi