Cartaz do filme com a chamada: “O
detetive John
Hobbes está à procura de
um criminoso que ele já encontrou...
já prendeu... e
já matou.”
|
Depois disso, vi
descer do céu outro anjo que tinha grande poder, e a terra foi iluminada por
sua glória. Clamou em alta voz, dizendo: Caiu, caiu Babilônia, a Grande.
Tornou-se morada dos demônios, prisão dos espíritos imundos e das aves impuras
e abomináveis, porque todas as nações beberam do vinho da ira de sua luxúria,
pecaram com ela os reis da terra e os mercadores da terra se enriqueceram com o
excesso do seu luxo. [...] os negociantes da terra choram e lamentam a seu
respeito, porque já não há ninguém que lhes compre os carregamentos:
carregamento de ouro e prata, pedras preciosas e pérolas, linho e púrpura, seda
e escarlate, bem como de toda espécie de madeira odorífera, objetos de marfim e
madeira preciosa; de bronze, ferro e mármore; de cinamomo e essência; de
aromas, mirra e incenso; de vinho e óleo, de farinha e trigo, de animais de
carga, ovelhas, cavalos e carros, escravos e outros homens. (Apocalipse, 18:
1-13)
Não, não estou aqui para fazer pregação bíblica no blog. Na
verdade, quero falar a respeito de um filme que vi recentemente. Lançado em
1998 e dirigido pelo pouco célebre Gregory Hoblit, o filme chama-se Fallen, título ineptamente traduzido no Brasil como “Possuídos”. Trata-se
de uma película de pouca expressão, que teve recepção morna tanto de crítica
quanto de público, mas que muito me agradou – o que só mostra que, assim como
ocorre com cervejas, devemos primeiro fazer o nosso juízo sobre um filme que
vimos e só depois levar em conta o que se fala sobre ele. O filme é um suspense
policial com elementos sobrenaturais e conta a história de John Hobbes (interpretado
pelo sempre competente Denzel Washington), um policial às voltas com um
assassino serial – spoilers adiante! – que, na verdade, é um espírito maligno
capaz de se apossar de diferentes corpos para perpetrar seus crimes.
Nas pistas deixadas pelo demônio em suas vítimas, o policial
recolhe indicações que conduzem a um trecho do Apocalipse bíblico, cujo
conteúdo se encontra reproduzido no início desta matéria. Embora seja irrelevante
para o desenlace do enredo, o texto bíblico (que é apenas mencionado no filme,
sem que seu conteúdo seja explicitamente revelado) fornece uma das chaves
interpretativas do filme, ao comparar a decadente metrópole na qual a história
se ambienta à Babilônia do Apocalipse: uma cidade corrompida, marcada pelo
pecado, pela ganância e pelo luxo desmedido dos mercadores que negociam em
produtos de luxo e em almas humanas. A sugestão do filme é clara: se o demônio
Azazel desfila impávido e desimpedido pela metrópole, apossando-se de seus
habitantes sem dificuldade nenhuma, é porque encontrou na cidade moderna um lar
de decadência espiritual semelhante à Babilônia bíblica.
O interessante é que o demônio, apesar de disposto a
transformar a vida do policial John Hobbes em um inferno, parece incapaz de
possuir seu corpo. O espírito maligno circula livremente pelos habitantes de
uma moralmente decadente metrópole norte-americana, mas o policial mostra-se
imune a seu toque corruptor. Estaria ele num patamar moral superior ao dos
demais habitantes? O filme não nos explica por que isso ocorre, mas nos dá
indícios. Numa das primeiras cenas do filme, Hobbes senta-se à mesa de um bar
para uma conversa com seus colegas policiais, que falam sobre o hábito que
tinham de aceitar subornos. Hobbes mostra-se refratário e afirma não participar
de esquemas de corrupção – mas também não julga nem condena seus companheiros
que participam.
O filme poderia simplesmente se esvaziar numa espécie de
lamento saudosista e vagamente conservador a respeito de como “a humanidade
está corrompida nos tempos modernos” e de como “os homens eram mais decentes no
passado”, e todo esse blablablá decadentista que forma o monótono
feijão-com-arroz de 99% dos discursos políticos conservadores. Poderia; mas não
chega a fazê-lo. Isso porque as cenas em que o demônio possui os corpos das
pessoas ou comete seus crimes estão todos saturadas, de formas sutis mas importantes,
pelos signos da sociedade de consumo: vendedores e compradores nas ruas, caixas
de cereais matinais, contratos de trabalho e relações de patrão e empregado
formam o habitat em que o demônio
circula e atua. E a cerveja entra numa dessas sutis referências que esclarecem
melhor o sentido do enredo.
Numa das cenas em que Hobbes conversa com seus colegas,
policiais assumidamente corruptos, segue-se uma breve discussão a respeito da
cerveja que irão beber. Aparentemente, estão todos sentados em um bar que serve
cervejas importadas, oferecidas como produtos “de luxo” (olha a Babilônia aí!).
Hobbes pede uma cerveja comum e corriqueira – uma singela Budweiser –, ao que um dos seus colegas se espanta, sugerindo que
ele deveria pedir alguma das importadas do bar: uma Beck’s, talvez uma Guinness
ou Bass. Hobbes, resoluto, segue solicitando à garçonete sua corriqueira Bud. É
questionado mais uma vez: “Então pelo menos uma Bud Dry, ou uma Bud Ice?” Não,
só uma Bud normal mesmo. Sem frescura, sem novidade, sem invenção. Afinal de
contas, o que há de errado com a velha Bud? Ou será que o policial precisa, necessariamente, entrar na roda do
consumo e procurar sempre novos produtos, comprar mais e mais?
“Algum problema?”
Fonte:
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Às vezes eu me sinto um pouco como o policial Hobbes. OK, é
evidente que meus leitores e eu compartilhamos um gosto por cervejas variadas,
que fujam da mesmice. Mas o filme me fez pensar, não sem um certo incômodo,
sobre a “Babilônia” em que tem se transformado o mercado brasileiro de cervejas
ditas “especiais” ou “gourmet” (não sei qual dos dois termos eu detesto mais).
Enquanto muitos falam hipocritamente em “beber menos e beber melhor”, contam o
dinheiro gordo movimentado por esse mercado e suas amplas margens de lucro,
incentivam e praticam uma espécie de consumismo desenfreado de acordo com o
qual o que vale é beber sempre mais, a maior quantidade de marcas, os rótulos
mais caros. Parece que “beber melhor”, na prática, quase sempre significa “beber
mais e mais caro”. Se isso não é a imagem da Babilônia invocada pelo Apocalipse
bíblico, eloquente a respeito de seus excessos de luxos e mercadorias, não sei
o que é.
Afinal de contas, qual o problema em beber a boa e velha
cerveja de sempre? Nas rodas cervejeiras, parece que virou pecado dizer que
você bebe “a de sempre”. Pecado, meus amigos, é o esnobismo, o elitismo, o
consumismo desenfreado. No caso do filme, a “de sempre” é a Budweiser, clássica
lager estadunidense. Por muito tempo, a Bud não era produzida no Brasil; era
uma cerveja importada, com posicionamento diferenciado, como a Beck’s, a Guinness
ou a Bass da cena do filme. Hoje em dia é produzida no Brasil pela AmBev, mas sob
uma curiosa classificação de “cerveja premium” (coisa que ela está distante de
ser no seu país de origem). Aqui, o que corresponderia a ela seriam marcas de
ampla circulação, tais como Skol, Brahma e que-tais.
Fica o desabafo: não tem nada de errado beber cerveja “comum”.
Errado mesmo é excluir ou esnobar quem bebe essas cervejas – as quais, diga-se
de passagem, 99% dos amantes das ditas “cervejas gourmet” um dia já beberam com
prazer. Eu gosto de variar (acho que isso é óbvio pelo mero assunto deste
blog), mas às vezes, quando quero me afastar um pouco dos excessos desta “Babilônia
cervejeira”, abro uma garrafa da minha “ordinária” preferida – no meu caso, a
velha e boa Bohemia, com aquele refrescante perfuminho cítrico que eu adoro. Às
vezes a Heineken (nem sempre é fácil achar a Bohemia em boa forma nos bares e
mercados...). Mas a verdade é que qualquer uma está valendo. O importante é não
ser chato a ponto de excluir nenhuma. Porque, estou convicto, beber cerveja
nenhuma vai me levar para o inferno, mas esnobar quem bebe tem boas chances de
me garantir um encontro com os demônios da sociedade de consumo que atormentam
nossas vidas.
Olá Marcussi, parabéns pelo texto inteligente e bem escrito.
ResponderExcluirFazendo uma reflexão pessoal e no que vejo na exteriorização dos que opinam sobre a questão, faço alguns comentários:
No exemplo próprio, aconteceram fases. Ao descobrir que existem dois mundos, por assim dizer, um das lagers comerciais e outro das dezenas de estilos diferentes; inicialmente fiquei sim com certa repulsa, até por me sentir "enganado" e "ludibriado" pelas grandes cervejarias; mas ao passar do tempo e com mais informações por estudos e degustações, passei a entender melhor que ninguém me enganou, eu é que me deixei enganar, não existindo por isso, melhor ou pior, e sim diferentes.
Sem contar a parte do lucro e do marketing, e até de algumas omissões, as grandes cervejarias se concentram no capitalismo para vender, assim como estão fazendo outras micros que também "iludem' sobre Ibus, teor alcoólico e talvez ingredientes.
No que concerne aos consumidores temos os torcedores de rótulos, aqueles que sofrem influencia direta da propaganda, querem gastar menos, ou ainda não obtiveram prazer com as cervejas "diferentes"; e temos aqueles que descobriram o prazer sensorial dos diversos estilos cervejeiro. Realmente parecem que vivem em mundos diferentes.
Acredito que o mais pertinente nesse assunto, seja por parte das cervejarias ou pelos consumidores é o caráter deles, como também daquele que lê ou ouve o que expressado e os julga. Porque como existe a má intenção de quem quer enganar com um produto e de quem se acha superior por beber alguma coisa diferente dos demais, existe também o julgamento das pessoas que leem, achando que ali tem alguém mal intencionado, mas que às vezes pode ser a tal fase da repulsa ou do pouco conhecimento inicial, não significando caráter negativo.
Nota: Além do exemplo próprio, vejo muito isso lá no fórum do Brejas, onde tem aqueles mais iniciantes que ao descobrirem outros estilos cervejeiros, chegam com tudo no fórum repudiando as comerciais; como tem aqueles mais conhecedores que esnobam os bebedores das de massa; ou aqueles que julgam as opiniões alheias como donos da verdade.
Enfim, acredito que há os que estão iniciando bem intencionados, mas em fase inicial de aprendizado e questionamentos, os quais irão acabar discernindo que há lugar para todos, deixando de lado o preconceito; há os que, após cada conhecimento, dividem com os demais e contribuem com o aprendizado alheio; há os que após adquirirem o conhecimento, passam a esnobar os que não têm ou tem escolhas diferentes da sua; e há os que julgam a opinião dos outros como donos da verdade.
Tento me policiar para estar entre os que ajudam ao próximo em seu conhecimento, sem julgar, sem preconceitos. Estando disposto a aprender com os que sabem mais e a passar conhecimento aos que sabem menos.
Abraços.
Olá, Fernando, tudo bem?
ExcluirInteressante sua reflexão. Eu, de minha parte, tendo a evitar traçar essa linha divisória entre os "bebedores de artesanais" e os "bebedores de cervejas de massa". Acho que o marketing das artesanais e a segmentação dos hábitos de consumo das classes A e B ajudou a criar uma dicotomia que não é sadia. Existem mais de 100 estilos diferentes. Por que vamos escolher apenas um deles (American lager) e colocar à parte todos os que bebem aquelas cervejas?
Vou dar um exemplo "joão-sem-braço" para ilustrar melhor o que penso. Eu não sou um grande apreciador de dry stouts. Mas não acredito que exista uma "massa ignorante" de bebedores de dry stouts aos quais se opõem os bebedores de "cerveja de verdade". Não vejo por que fazer isso com American lagers também. Acho que uma cultura sadia caminha na direção da diversidade não-hierarquizada (minha utopia pessoa em relação a tudo no mundo), na qual American lager é só mais um entre mais de 100 estilos. Nem melhor, nem pior. Não precisamos de "fase do repúdio", não precisamos de fronteiras artificiais que só servem para criar mágoas e separar as pessoas.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Perfeito. Talvez não tenha me expressado bem, e também por não concordar com essa divisão, disse que "parecem que vivem em mundos diferentes". Acredito que essa divisão é mais subjetiva, uma delas é pelas pessoas que ainda não conheceram outros estilos; a outra é feita intelectualmente por alguns consumidores, que ao descobrir esses estilos, se acham "diferentes" dos bebedores das de massa.
ExcluirCorroboro com você que não teria que haver essa divisão, pois todas fazem parte dessa diversidade que citou. Existe sim escolhas, preferências, e todas devem ser consideradas, sem preconceitos de ninguém.
O que tem que haver é a troca de conhecimento sem egos, pois quanto mais canais tivermos de informação, mais todos nós ganhamos, inclusive para diminuir a sua utopia e a as fases de repulsa.
Abraços.
Prezados Alexandre e Fernando,
ResponderExcluirGostaria de parabeniza-los pelo debate e, particularmente a você, Alexandre, pela qualidade de seus posts. Penso que toda essa disputa distintiva entre os apreciadores das cervejas “artesanais” caracteriza o estado ainda incipiente de diversificação do mercado cervejeiro no Brasil. Nesse caso, é muito comum que os novos convertidos repudiem seus credos (gostos) anteriores. Nos EUA, depois de mais de 40 anos de revolução cervejeira, isso já quase não existe. Bebedores de Bud lite e porters complexas convivem em harmonia em torno de seus copos e ninguém quer convencer ninguém. Perguntado sobre qual a sua cerveja preferida, o finado Michael “the beer Hunter” Jackson deu uma resposta sábia: “depende do lugar, da hora e da companhia”. Isso é válido, sobretudo, no Brasil, pois não se pode esperar encontrar uma Stone Cacau IPA, da Bodebrown, numa barraca de praia – dê-se por feliz de obter as velhas e boas Bohemia e Heineken, talvez mais indicadas ao lugar, à hora e às companhias. Quanto às cervejas “de sempre”, Michael Jackson conta uma história saborosa: um conhecido dele viajava pelo mundo e quando voltava a Londres procurava um pub, sentava-se diante de sua ale predileta e dizia: “prometo nunca mais deixa-la”. Enfim, viva a diversidade, das lagers às lambics.
Olá, Gilson!
ExcluirAgradeço o elogio e o interessante comentário. Só aproveito para fazer um adendo. Apesar de o mercado de artesanais norte-americano ser muito mais maduro e consolidado que o brasileiro, ainda vemos alguns sintomas desse mesmo radicalismo. Polêmicas em torno de questões como o "craft vs. crafty beer" mostram que ainda existe, da parte de um segmento dos apreciadores de artesanais, um certo repúdio às cervejas das grandes companhias. No mais, concordo com tudo o que você escreveu!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Grande Gilson, brilhante exposição!!
ExcluirAcho que isso sintetiza meu pensamento e a melhor cerveja depende de um conjunto de fatores e esses são os mais importantes: onde, quando e com quem.
E também acontece comigo quando venho de algum churrasco ou festa que só tenha as boas da vida e os amigos não tão chegados assim para que eu possa levar as minhas. No outro dia, abro uma das minhas preferidas e me regozijo com seu poder sensorial ao meu paladar.
Espero que um dia possamos viver todos em harmonias com sua breja de preferência, mas com debates construtivos sobre ingredientes, estilos, aroma e sabores, mas sem preconceitos.
Abraços e ótimas degustações pra você.
Srs,
ResponderExcluirExcelente debate e em alto nível, mas em minha modesta opinião, os reais apreciadores de cerveja gostam de todas, ou seja, é mais fácil nós (modéstia à parte eu me incluo neste grupo) enumerarmos as cervejas que não gostamos do que fazer uma lista com as nossas cervejas preferidas....
Todos que realmente gostam de cerveja, seja por estarem há mais tempo no meio ou por serem um pouco mais esclarecidos, estão meio chateados com o mercado do jeito que está sendo tratado. Não serei deselegante em citar nomes, em hipótese alguma, mas sei e tenho certeza que vocês também sabem que não se pode confiar mais cegamente em artigos, resenhas, matérias.... a maioria (não são todos) não o faz mais por amor à arte e sim com algum interesse monetário. Em um breve passado foi-se a moda das cervejas importadas, depois vieram as gourmet nacionais, depois especiais, agora está no auge as artesanais..... Qual será a próxima?
Não sei, mas qualquer que seja, beberei por que eu gosto e tirarei minha própria conclusão, sem a interferência de ninguém! E depois voltarei a beber as minhas outras preferidas, e olha que são muitas, se esta for boa, entra para o time..... Afinal, a vida é muito curta para beber cerveja ruim. Mas como saber se não provar? E qual é a melhor? A que você quiser é lógico, aquela que você quer beber na hora, no lugar e com com quem desejar.....
Desculpem se pareci um pouco rude no meu texto, mas como disse antes, ando um pouco de saco cheio com isto tudo....
Abraço à todos e parabéns pelo seu blog meu caro amigo Alexandre Marcussi.
Wilson,
ExcluirDe fato, eu também vejo uma espécie de insatisfação difusa dos apreciadores mais antigos em relação ao que está acontecendo com o nosso mercado de cerveja. Por um lado, ele se aqueceu e isso é bom; por outro lado, isso também significa que há mais dinheiro, mais interesses e mais aproveitadores rolando nos bastidores. É algo com que teremos de saber lidar.
Abraços!
Alexandre A. Marcussi
Aaaaaah time is on my side
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