Quem lê este blog há bastante tempo há de estar lembrado da
época em que falamos longamente sobre a guarda de cervejas. Já tivemos a
oportunidade de esclarecer que nem toda cerveja é apta para guarda: na verdade,
a maior parte delas deve ser consumida o mais brevemente depois de sair da
fábrica. Para algumas, porém, em especial as que possuem maior estrutura devido
ao alto teor alcoólico, ao amargor firme em segundo plano e aos aromas
tostados, o tempo pode ser um aliado.
Montar uma adega para envelhecer suas próprias garrafas em
casa é uma das formas mais divertidas de curtir cervejas de guarda. Há algumas
precauções importantes a tomar, porém. Eu frequentemente recebo questões a
respeito das condições ideais de armazenagem (mais detalhes sobre isso aqui) ou
do tempo de guarda para cada rótulo. O interessante é que as perguntas a
respeito do período ideal de envelhecimento normalmente envolvem o limite máximo de guarda de uma
determinada cerveja ou estilo.
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A curva gaussiana clássica
imaginada por alguns para
o envelhecimento de cervejas. O eixo x representa
o
tempo de guarda, e o eixo f(x) representa
a qualidade. µ é o auge da evolução.
Fonte: |
As pessoas interessadas em envelhecer cervejas sabem que uma
cerveja apta para guarda evolui até atingir um pico de qualidade, depois do
qual ela vai decaindo até ficar sem graça e passada. Imagina-se normalmente que
essa evolução descreva uma trajetória semelhante a uma curva gaussiana: a qualidade
da cerveja começa baixa, vai subindo, subindo, atinge o ponto máximo e depois
volta a cair. Ou seja: depois que a cerveja sai da fábrica, e antes de ela
atingir seu auge, imagina-se que ela só vá melhorando com o tempo. Pensa-se que
uma cerveja de guarda com 12 meses será necessariamente melhor que uma com 6
meses, a qual, por sua vez, estará melhor do que uma garrafa recém-saída da
fábrica.
O que as pessoas não imaginam é que essa evolução não ocorre
de forma tão linear. Veja, não tenho nenhuma base científica para alegar isso,
mas minha experiência pessoal com minha adega cervejeira me ensinou que não é
assim que funciona – pelo menos não nas condições em que eu guardo minhas
cervejas, num país tropical sem controle artificial de temperatura. A verdade é
que evolução da maior parte das cervejas de guarda descreve uma curva mais ou
menos assim:
Ao contrário do que acontece com alguns poucos vinhos
especialmente aptos para guarda (como um Bordeaux de alto nível, bem tânico e
ácido), quase toda cerveja sai da fábrica em condições ótimas para ser bebida
imediatamente. Isso significa que, fresca, ela está em um dos pontos altos de
sua evolução. Não importa se é uma German pilsner delicada ou uma barley wine
robusta. Depois de ser vendida, uma cerveja de guarda não começa a melhorar
imediatamente: pelo contrário, ela vai perdendo frescor, ficando mais sem
graça, começa a exibir aromas chapados de oxidação e perde um pouco do brilho
na boca. Como toda cerveja. O que diferencia uma cerveja de guarda é que, em
algum momento de sua trajetória decrescente, ela reverte a tendência a perder
interesse, e começa a ganhar novos elementos.
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Sim, a “fase sonsa”
também acontece com as pessoas.
Fonte: |
Minha experiência com minha adega cervejeira tem me mostrado
que praticamente toda cerveja de guarda passa por um período meio chatinho que
eu gosto de chamar de “fase sonsa”: ela já perdeu o frescor e todo o encanto da
juventude, mas ainda não desenvolveu o charme da evolução e da maturidade. É
como uma adolescente boba: não é mais bonitinha como quando era criança, e não
tem metade do interesse que acredita ter. Mas qual a duração dessa “fase sonsa”?
Bom, algumas pessoas nunca chegam a sair dela, não é mesmo? Ah, sim, estamos
falando sobre cervejas! Aí que entra o problema: depende da estrutura de cada
cerveja. Paradoxalmente, as cervejas mais estruturadas e aptas para guarda,
como Russian imperial stouts ou barley wines, são também as que mais demoram
para desenvolver características de evolução. Sua “fase sonsa” dura mais tempo,
por assim dizer. Cervejas um pouco com menos amargor ou álcool podem se
desenvolver mais rapidamente, mas nunca vão chegar a ficar tão interessantes
quanto uma verdadeira cerveja de guarda. Quanto mais longa a “fase sonsa”, em
geral, mais interessante a cerveja fica se você souber esperar mais tempo.
Minhas experiências com cervejas de guarda têm sugerido um
intervalo de pelo menos 18 a 24 meses desde o engarrafamento antes que as
garrafas comecem a evoluir positivamente. É raro pegar uma cerveja de guarda
que já tenha ficado interessante com menos tempo que isso. Portanto, se você
está montando uma adega cervejeira e quer saber se suas escolhas de rótulos
foram boas, será preciso ter um pouco de paciência. Muita gente descarta uma
boa cerveja de guarda como se ela fosse inapta para envelhecer porque a
degustou na sua “fase sonsa”. Se tivesse esperado mais 6 meses ou um ano,
poderia talvez mudar de ideia. Já vi quem compre cervejas em promoção, perto do
vencimento, e abre para ver se ela evolui bem com o tempo. Se a cerveja não tem
um prazo de validade de pelo menos 3 anos, é muito comum que você se decepcione
ao fazer isso. Paciência é uma virtude a praticar a todo momento na montagem de
uma adega.
A evolução da Eisenbahn
Weizenbock
Uma cerveja legal para se observar essa curva de evolução
aqui no Brasil é a Eisenbahn Weizenbock.
Em primeiro lugar, porque oferece um custo-benefício praticamente imbatível no
nosso mercado. Em segundo lugar, pelo fato de as Weizenbocks serem escuras e
relativamente alcoólicas, mas não inteiramente adequadas para uma longa guarda.
Elas têm pouco amargor, e seu equilíbrio depende de um certo frescor advindo da
acidez, que rapidamente se deteriora. Por serem apenas medianamente aptas para
envelhecer, elas evoluem de forma mais rápida que uma barley wine, uma Russian
imperial stout, uma gueuze ou uma Belgian dark strong ale, para citar alguns
exemplos de estilos especialmente aptos para longos períodos de guarda. A
Eisenbahn Weizenbock é uma cerveja com a qual é fácil fazer o experimento de
comprar várias garrafas para acompanhar sua evolução ao longo do tempo,
observando como ela progressivamente perde seu frescor inicial e ganha
características de evolução.
A Eisenbahn Weizenbock fresca, não é segredo para ninguém, é uma das minhas escolhas preferidas no
mercado nacional. Pena que esteja ficando cada vez mais difícil encontrá-la nos
supermercados, onde ela perde espaço para outros rótulos da linha da cervejaria.
Bem fresquinha, ela é um verdadeiro deleite. Aromas potentes de bananada e
caramelo, com o cravo em segundo plano, são escoltados por uma graciosa
complexidade sugerindo nozes, chocolate, tutti-frutti e até café. Há uma
gostosa alternância entre a doçura dominante e uma acidez que se intercala para
lhe dar mais leveza, conduzindo a um final levemente mais seco. O corpo é entre
médio e alto, com alta carbonatação. Excelente representante do estilo: é como
se deleitar com um doce caseiro de banana, do tipo que minha mãe sabia fazer
como ninguém! Dá uma boa surra em muita cerveja que custa o dobro ou o triplo!
(Clique aqui para ver a avaliação completa)
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Fonte: www.eisenbahn.com.br |
Com 12 meses de guarda (ou seja, no limite de seu prazo de
validade), ela já perdeu boa parte do encanto. A doçura começa a predominar de
uma forma um pouco excessiva, com caramelo, mel, alcaçuz e um toque doce lembrando
plástico e ofuscando a banana e o cravo. Sente-se uma maçã vermelha. O frescor
da acidez se foi, e ela se tornou mais licorosa, com maior sensação alcoólica.
Decididamente, aqui ela está no ponto mais baixo de sua evolução, bem no meio
da “fase sonsa”. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
Meio ano depois, com 18 meses de guarda, ela já começou a
mostrar um desenvolvimento interessante. A acidez se foi quase completamente e
ela ganhou uma complexidade licorosa e frutada que lembra uma Belgian dark strong
ale. Às cegas, eu nunca adivinharia o estilo. Banana, uvas passas e ameixas
passas convivem com a doçura do caramelo. Em segundo plano, defumado e uma
sensação salgada e carnuda, típicas de guarda, começam a aparecer sugerindo
ligeiramente molho de tomate e carne assada. A doçura predomina, mas é quebrada
de forma sutil pelo salgado. O corpo já afinou um pouco, mas ganhou uma textura
licorosa que compensa. Neste ponto, percebe-se que a Eisenbahn Weizenbock já
está deixando sua “fase sonsa”. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
Com 24 meses, ela atinge um equilíbrio muito interessante. Frutas
escuras aparecem em profusão, com sabores de figos secos, ameixas passas,
cereja ao marrasquino e banana caramelada misturando-se deliciosamente a um
malte que voltou a ganhar profundidade, somando nozes e doce de leite ao caramelo
dominante. Sabores mentolados, minerais, terrosos e salgados (carne assada,
couro curtido) compõem um discreto mas agradável perfil de maturidade. A doçura
é bem equilibrada pelo salgado, e o corpo, embora tenha afinado, tornou-se
cremoso como mousse. Aqui, aos 24
meses, observa-se a plenitude daquilo que apenas se insinuava com 18 meses.
Este talvez esteja bem próximo do ponto mais alto de sua curva de evolução.
(Clique aqui para ver a avaliação completa)
Por fim, com 30 meses, ela já mostra características de
longa guarda (evidentemente não tão bem integradas quanto em uma cerveja apta a
longa guarda) e talvez já comece a demonstrar também os primeiros sinais de
cansaço. O malte se adensou em um perfil mais licoroso lembrando xarope de
bordo, e o frutado (banana passa, ameixas secas, maçãs ao forno) começou a
diminuir, dando mais espaço aos toques de evolução, que já se adiantam em tons
mais definidos e claros de terra, cogumelos, couro curtido, mel aromático,
molho inglês e até um certo acético. A doçura ainda predomina, mas a sensação
de salgado é bem mais intensa e se faz acompanhar de um toque de acidez
acética, lembrando vinagre balsâmico. O corpo já afinou demais, e tornou-se um
pouco ralo. Talvez aqui ela já esteja nos primeiros momentos de sua decadência.
Eu gostei bastante (até mais do que a versão com 24 meses, para ser sincero),
mas admito que é preciso ter um gosto para cervejas evoluídas para apreciá-la. (Clique
aqui para ver a avaliação completa)
Portanto, se formos representar a evolução da Eisenbahn
Weizenbock numa linha do tempo, teríamos um resultado mais ou menos parecido
com o seguinte:
O resultado para 36 meses é hipotético: eu nunca cheguei a
bebê-la depois de tanto tempo na adega. Mas, considerando o que observei na
passagem de 24 para 30 meses, suponho que ela comece e perder em harmonia e
equilíbrio à medida que o tempo passa. Como ainda tenho garrafas sobrando na
adega, terei a oportunidade de verificar isso daqui a 6 meses!
Montar uma adega cervejeira no Brasil é um grande desafio.
Como se não bastasse o preço extorsivo das boas cervejas por aqui, que
desincentiva dramaticamente a compra apenas para estocagem, ainda há as
questões relativas às condições de armazenagem, nem sempre fáceis de se obter
no nosso clima. Quando você abre as suas primeiras garrafas, ainda na “fase sonsa”,
e percebe que elas não estão tão legais, o resultado pode te levar a desistir
da coisa toda. Espere. Em posse das informações que você leu aqui, tenha
paciência. Os frutos da sua adega amadurecem lentamente, mas sua doçura
compensa a espera!