Conheci Luzia Pinta há 10 anos. Ela tem sido minha companhia
fiel ao longo de toda a trajetória que venho trilhando desde então. Agora, com
algum peso no coração, é chegada a hora de eu lhe dar adeus – ou, pelo menos,
uma despedida digna e um até logo. Obviamente, sua despedida pede uma grande
cerveja. Esta postagem é um brinde à força de caráter de Luzia e a tudo que ela
me ensinou ao longo da última década.
Um brinde a Luzia
Não, Luzia Pinta não é minha esposa. Ela nasceu por volta do
ano de 1695, na cidade de Luanda, que então era uma pequena colônia portuguesa em
Angola. Nasceu como escrava e foi vendida muito jovem – provavelmente em torno
dos 12 anos de idade – para um comerciante que a trouxe até o Brasil no porão
de um navio negreiro. Trabalhou na Bahia e em Minas Gerais, onde conquistou sua
liberdade. Muitos anos depois, acusada pela Inquisição de ser feiticeira (numa
época em que isso era crime passível de punição judicial), foi presa e julgada
em Lisboa entre 1742 e 1744. Cumpriu sua pena no sul de Portugal por 4 anos. A
data de sua morte se perdeu no tempo. Terá voltado à África, sua terra natal,
depois de cumprir os 4 anos de sua pena? Ou talvez a Minas Gerais, onde viveu a
maior parte da vida e onde construiu suas relações sociais mais significativas?
Ou terá passado seus últimos dias em Portugal mesmo, em terra de estranhos,
hostilizada por tudo e todos? Provavelmente nunca saberemos.
Luzia Pinta era uma sacerdotisa. Ou uma curandeira e
adivinha. Chame como quiser. Na verdade, a palavra usada no século XVIII para
se referir a pessoas como ela era “calunduzeira”. “Calundus” eram comuns na
época do Brasil colonial, mas hoje já não existem mais em terras tupiniquins.
Em Angola ainda são praticados até hoje. Eram cerimônias religiosas com dança e
música de atabaques, durante as quais o corpo de Luzia Pinta era possuído pelos
espíritos de seus ancestrais angolanos para que ela adivinhasse coisas ocultas
e curasse os enfermos que a procuravam. A maior parte dos frequentadores de
seus calundus era composta por escravos ou ex-escravos alforriados, mas Luzia
também tratava de brancos ricos que, desencantados com os remédios da Igreja e
da medicina, buscavam a espiritualidade africana para aliviar suas aflições.
Os calundus eram comuns no Brasil na época colonial. Em uma
cidade como Ouro Preto, cuja população contava cerca de 50 mil habitantes na metade
do século XVIII, talvez houvesse em torno de sete casas de calundus, segundo
minhas estimativas. Mas os registros sobre essas cerimônias são menos comuns.
Luzia Pinta deu o azar de ser processada pela Inquisição, ao contrário de
dezenas de outros calunduzeiros como ela, e por isso temos acesso a uma descrição
pormenorizada de suas cerimônias. Seu processo inquisitorial talvez seja o
documento que nos traga mais informações sobre essa religião afro-brasileira
que foi praticamente esquecida, apesar de ter sido a mais importante do Brasil
durante quase dois séculos. Por isso mesmo, Luzia Pinta tem sido a personagem
central de minha pesquisa como historiador nos últimos dez anos.
Dez anos de pesquisa, dez anos de guarda
Deparei-me com o processo inquisitorial de Luzia Pinta em
2005, quando ainda fazia pesquisa de Iniciação Científica durante minha
graduação em História. Dez anos depois, em abril de 2015, finalmente ficou
pronta minha tese de doutorado, resultado dessa longa pesquisa e dessa longa
convivência com os vestígios de Luzia Pinta. A ocasião pedia um brinde
especial, em homenagem a essa mulher extraordinária. Se eu passara 10 anos na
inspiradora companhia de Luzia Pinta (ou você acha que teses de doutorado ficam
prontas assim, num instante?), era justo que o final desse caminho fosse
celebrado com uma cerveja que descansara durante os mesmos 10 anos na garrafa.
Alguma cerveja que houvesse sido envasada lá atrás, na época em que conheci
Luzia. Plano ambicioso, claro.
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Ainda me lembro do choque
que tomei ao beber pela
primeira vez a potente Baden Baden Red Ale, numa época
em que ninguém falava em cervejas artesanais.
Fonte: |
O problema é que, em 2005, quando fui apresentado a Luzia,
eu não bebia cervejas especiais. Quem viveu aquela época há de se lembrar: não
se falava em cerveja artesanal no Brasil. Na maior parte dos bares cervejeiros
em que você ia, o máximo que podia encontrar era uma Guinness ou uma Bohemia
Confraria, de vez em quando. E que você se desse por satisfeito com isso. No
supermercado, aqui ou ali aparecia uma fugidia garrafa de Baden Baden. E era
isso. Se eu mal sabia que havia todo um vasto mundo para além da “loira gelada”,
você já deve imaginar que eu não podia nem conceber a ideia de envelhecer uma
cerveja por 10 anos. Isso para dizer que não havia, na minha adega, nenhuma
garrafinha pegando pó desde a época do meu fatídico encontro com Luzia, em
2005.
Porém, por um lance de sorte, há uns 3 anos mais ou menos, o
amigo Fabiana Pereira estava louco atrás de uma garrafa remanescente da lendária
Biertruppe Vintage nº 1, e calhava de eu ter algumas ainda guardadas na adega
desde a época do lançamento (em 2010). Em troca de uma garrafa da Biertruppe,
ele me ofereceu uma Westvleteren 12. Pareceria uma troca um tanto desvantajosa
para mim: OK, a Westy 12 é uma lenda, mas, ao contrário da Biertruppe, ainda
está em produção e pode ser adquirida sem tanto esforço. Seria desvantajoso
escambo, não fosse por um detalhe: o Fabiano, sabendo do meu fraco por cervejas
de guarda, me ofereceu uma Westvleteren 12 envasada em 2005. Arrematei!
Em 2015, quando entreguei minha tese de doutorado e pus o
ponto final em minha relação de 10 anos com Luzia Pinta, a garrafinha da Westy
12 também fazia 10 aninhos. Era a ocasião perfeita para abrir a garrafa. Os 10
anos de guarda haviam formado uma camada de sedimentos de quase um dedo de
espessura! Eu não via a hora de saber como tinha ficado a cerveja lá dentro depois
de tanto tempo!
A degustação
Para entender o que 10 anos fizeram à minha Westy, convém
primeiro falarmos sobre as características que essa cerveja tem ao sair da
fábrica, fresquinha. A Trappist Westvleteren 12 é a mais famosa das cervejas
produzidas pela abadia trapista de São Sisto, na Bélgica. Existe toda uma aura
em torno dessa cerveja (devido ao fato de ela já ter sido eleita algumas vezes
como a melhor cerveja do mundo), e às vezes é difícil obter uma descrição
minimamente objetiva, que não tenha sido contaminada pelo fetiche.
Já falei sobre ela aqui no blog antes (em uma comparação direta com a St. Bernardus Abt 12, sobre a qual reza a lenda – equivocada – de que
teria a mesma receita da Westvleteren 12), mas retomo resumidamente as notas de
degustação para quem não se lembra. A Trappist Westvleteren 12 é uma Belgian
dark strong ale de portentoso teor alcoólico de 10,2%, com coloração mogno
avermelhada e belo creme formando rendas. O aroma é complexo e maduro: o
caramelado dos maltes e adjuntos da receita é complementado por uma avalanche
de frutas maduras (maçãs vermelhas, uvas passas, mamão papaya, vinho tinto),
especiarias doces (pimenta-do-Reino, cravo, alcaçuz, sementes de coentro
discretas) e toques de mel aromático. Ela entra adocicada na boca, mas logo
surpreende com um amargor assertivo que se prolonga em um final longo, austero,
picante, amargo e seco, com sabor herbal de lúpulo. Ela é consideravelmente mais
amarga que a maior parte das cervejas belgas do estilo, embora não seja aquele
amargor ostensivo a que nos acostumamos com as cervejas norte-americanas. O
corpo é mediano, mais seco do que o habitual para o estilo, mas licoroso e com
um aquecimento picante bem-vindo. Complexa, picante, rústica, cheia de
especiarias e frutas maduras. Um clássico, merecidamente. (Clique aqui para ver
a avaliação completa)
A Westvleteren 12 é uma cerveja especialmente apta para
guarda, se a compararmos com as demais Belgian dark strong ales: o teor
alcoólico é bastante alto e o amargor de lúpulo é assertivo para o estilo (38
IBUs, contra uma média de 20 a 35), dando-lhe maior durabilidade na garrafa.
Vão lá minhas anotações de degustação do exemplar com 10 anos de guarda:
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Garrafa da edição especial vendida em
supermercados (a que eu tomei era bem
mais antiga que esta!).
Fonte: |
Estilo: Belgian
dark strong ale (envelhecida)
Teor alcoólico
original: 10.2%
Aparência: a
coloração é acastanhada-atijolada, mais para o laranja do que na versão fresca.
Transparente, mas com uma borra volumosa no fundo da garrafa, que eu tomei
cuidado para não servir junto com o primeiro copo. O creme foi pouco volumoso,
mas surpreendentemente persistente para sua idade.
Aromas: ao
servir, destacou-se aquele cheiro doce de oxidação, lembrando plástico, e eu me
lembro de ter pensado: “lascou, perdi a cerveja!”. Depois de uns 10 minutos na
taça, porém, ela arejou e se abriu em um torvelinho de complexidade aromática,
perceptível sobretudo na boca. O malte se aprofundou, saiu da mesmice do
caramelo e ganhou tons torrados e macios: toffee, avelã, queimado, pão torrado
e até chocolate ao leite. Maçãs vermelhas, mamão e uvas passam continuavam lá,
mas com uma pegada mais de frutas cristalizadas, como num panetone. Especiarias
doces ficaram ainda mais evidentes com o tempo, trazendo apimentado e alcaçuz. E
um monte de aromas de evolução começaram a se desenvolver na taça em camadas:
vinho do Porto, xerez, amadeirado, mentolado, carne assada. Um espetáculo de
aromas de guarda.
Paladar: o
amargor original da receita se atenuou muito, até quase sumir. A doçura
continua lá, sem excessos, agora equilibrada pela picância e por uma sensação
salgada muito definida que se desenvolveu com a guarda.
Sensação na boca:
o corpo preservou-se muito bem ao longo dos anos (talvez tenha até espessado!),
mostrando-se ainda intenso, cremoso e licoroso. A boa sensação alcoólica é
ressaltada pela picância. A carbonatação é bem suave, como é de se esperar
depois de 10 anos. A borra, se servida no copo, contribui com um pouco de
adstringência, não de todo agradável.
(Clique aqui para ver a avaliação completa)
Logo que servi, achei que a cerveja não evoluíra muito bem.
No nariz, o aroma de oxidação predominava de uma forma um pouco incômoda. Mas
ela, que já tinha esperado 10 anos para ser degustada, me pediu para esperar só
um pouquinho mais. Depois de arejar por uns 10 minutos, tornou-se complexa,
bela e harmoniosa. É como se ela tivesse precisado desses 10 minutinhos na taça
para “acordar” do longo sono. Na boca, mostrou ainda muito vigor e força. A
complexidade das frutas e especiarias ainda era perceptível, mas complementada
pelos toques amadeirados, licorosos e salgados da evolução. Seu rústico amargor
havia desaparecido, mas uma pegada picante e salgada lhe deu um equilíbrio
maduro e sóbrio. Ótima experiência!
O gráfico abaixo resume as principais diferenças entre a
versão fresca da Westvleteren 12 e a garrafa que degustei, envelhecida por 10
anos:
Alguns resultados eram esperados: o amargor diminuiu e a
sensação salgada e a doçura aumentaram, o que é típico de longos períodos de
guarda. Ésteres (frutas) e fenóis (especiarias) se suavizaram levemente, mas
ainda estavam surpreendentemente preservados. Aromas terciários de evolução
(madeira, carne assada, vinho do Porto, xerez, mentol), quase sempre as
estrelas de uma cerveja envelhecida, se desenvolveram com o tempo. O que me
surpreendeu foi o desempenho do corpo, ainda cremoso e intenso mesmo depois de
10 anos. Creio que a autólise das leveduras tenha potencializado sua sensação de
cremosidade. Ela também me deu uma lição importante: algumas cervejas
envelhecidas precisam arejar por um tempinho depois de serem abertas. Eu havia
passado por algumas más experiência com garrafas envelhecidas que não evoluíram
bem e, quando abri a Westy 12, achei que ela seria mais uma delas. Mas, depois
de dar-lhe um pouco de tempo na taça, ela melhorou dramaticamente.
Qual é a melhor? A Westvleteren 12, fresca, é uma baita
cerveja, de modo que é difícil comparar. São duas propostas, para dois gostos
bem distintos. Apreciar a versão envelhecida exige uma certa queda por cerveja
evoluídas, com todas as “esquisitices” que elas possam manifestar – a licorosidade
acentuada, a sensação salgada, o baixo amargor, o aroma característico de
oxidação. Olhando minha pontuação pessoal para as duas, percebo que dei um
pontinho a mais para a versão envelhecida (96 contra 95, de um máximo de 100),
mas isso diz muito pouco: é questão de gosto, de ocasião. O melhor é você fazer
a prova você mesmo: hoje em dia, não é mais tão difícil comprar a Westvleteren
12 no Brasil. Que tal, numa ocasião especial, se presentear com uma garrafa e “esquecer”
dela dentro da adega por 10 anos? O difícil, claro, vai ser resistir à tentação
de abri-la antes da hora!
A Westvleteren 12 envelhecida foi meu brinde à força e à
integridade de caráter de Luzia Pinta, que viveu uma vida de sofrimentos sob a
escravidão e, apesar de perseguida, soube ouvir o chamado de seus antepassados
e resgatar a conexão espiritual com suas origens. Luzia nos deixou o testemunho
de pessoas que enfrentaram o sofrimento e a opressão unidas como uma grande
família espiritual sob a sombra da ancestralidade africana. Sabendo-se que ela
foi simultaneamente devota dos espíritos de seus antepassados e também do Deus
e dos santos católicos, acho mais que apropriado que sua memória tenha sido
honrada por uma grande cerveja produzida por monges. A Igreja católica
certamente tem muito a se desculpar com ela na pós-vida – se houver alguma.