Antigo forno de malte da cervejaria
Rodenbach, possivelmente a mais
tradicional produtora de Flanders red ales.
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Nas últimas partes desta matéria sobre cervejas selvagens,
temos concentrado nossas atenções sobre as lambics, as cervejas de fermentação
espontânea do vale do rio Senne. Algumas pessoas consideram “lambics” e
“cervejas selvagens” como sinônimos – contudo, como vimos antes, as intrigantes
cervejas do Senne compreendem apenas uma parte dos estilos selvagens, mesmo
dentro da Bélgica. Tão importantes quanto elas são aquelas produzidas
tradicionalmente na região de Flandres, no norte da Bélgica, que podem ser
divididas em dois subestilos: Flanders red ales e Flanders brown ales (também
conhecidas como oud bruin). Ambas se
caracterizam por sofrerem uma fermentação mista, com fermento ale, bactérias
láticas e leveduras selvagens. É sobre o primeiro desses subestilos que
falaremos a partir de agora.
O processo produtivo
As “cervejas vermelhas de Flandres” fazem parte de uma
tradição cervejeira que, no passado, era mais largamente disseminada, e que se
caracterizava pelo hábito de blendar cervejas escuras envelhecidas e jovens. As
envelhecidas adquiriam traços selvagens acentuados com a longa maturação em
madeira, tornando-se ácidas, secas, complexas e levemente vínicas. As jovens
traziam sabores mais adocicados e gentis. A mistura das duas preservava a
complexidade da cerveja envelhecida e a refrescância da acidez, ao mesmo tempo
em que trazia equilíbrio pela doçura e maciez da cerveja jovem. Antes do século
XX, processos de controle microbiológicos eram menos bem conhecidos, de modo
que tanto lambics quanto as cervejas de Flandres deviam ser mais ácidas do que
são hoje. Lambics costumavam ser adoçadas no copo; as cervejas de Flandres, por
sua vez, tornavam-se naturalmente adocicadas por meio do blend, ganhando
equilíbrio.
O hábito de blendar também obedecia a imperativos
econômicos. A cerveja envelhecida era razoavelmente mais cara devido ao seu
longo tempo de maturação, que ocupava o equipamento produtivo e diminuía a
rotatividade das cervejarias. Existiam até intermediários especializados que
compravam a ale jovem da cervejaria, deixavam-na maturando e a vendiam aos
bares, já envelhecida, praticamente pelo dobro do preço. Sendo assim, a mistura
de cervejas jovens e velhas era uma maneira de oferecer aos clientes aquele
“gosto selvagem”, tão apreciado pelos consumidores, por um preço mais baixo e
em maior volume.
Antigamente, as Flanders red ales eram fermentadas
espontaneamente, depois de receberem leveduras selvagens e bactérias em um koelschip, tina de resfriamento aberta
que permitia a inoculação natural do mosto pela microflora do ambiente – damesma forma como ocorre ainda hoje com as lambics. Atualmente, são inoculadas de
forma artificial, como quase todos os demais estilos cervejeiros: o produtor
prepara o mosto e adiciona os microorganismos responsáveis pela fermentação.
Contudo, em vez de serem inoculadas apenas com uma única cepa de leveduras,
elas usam uma “cultura mista”, composta Saccharomyces
cerevisiae (as leveduras usadas em cervejas ales) e bactérias láticas dos
gêneros Lactobacillus e Pediococcus. A maioria das cervejarias
que produzem Flanders red ales emprega uma cultura mista originária da
tradicional cervejaria Rodenbach, isolada a partir da microflora que ocorria
espontaneamente na cerveja no passado. O estilo é nativo da Bélgica, mas hoje
também é produzido abundantemente nos polos da revolução artesanal, sobretudo
nos EUA, onde a maior parte das novas incursões de microcervejarias no reino
das cervejas selvagens se inicia com uma Flanders red.
Para se produzir uma cerveja no estilo, um mosto de
coloração escura é brassado e inoculado com essa cultura mista (ainda em
tanques de aço inox). Num primeiro momento, as leveduras do gênero Saccharomyces se reproduzem e
rapidamente dominam o mosto, realizando a fermentação alcoólica primária em
torno de uma semana. Até aí, o processo difere muito pouco em relação a uma ale
comum. Assim que a atividade das Saccharomyces
diminui devido à escassez de açúcares fermentáveis restantes, as bactérias do
gênero Lactobacillus tomam a
dianteira e começam a metabolizar os carboidratos remanescentes. Essa segunda
fermentação não produz álcool, mas sim ácido lático, resultando na acidez
característica do estilo. Os Lactobacillus
são pouco tolerantes à diminuição no nível de pH, de modo que, depois de mais
ou menos um mês desde o início da fermentação, são substituídos pelas bactérias
do gênero Pediococcus, que finalizam
a fermentação lática.
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A Rodenbach exibe em sua cave uma das mais
impressionantes coleções de tonéis de carvalho – os
foeders – do mundo cervejeiro, e lá promove
refeições para grupos.
Fonte:
www.palmbreweries.com |
Depois desse período de fermentação, que pode durar até dois
meses, a cerveja “jovem” está pronta. Ela tem uma boa dose de açúcares
residuais e exibe certa acidez, além de aromas frutados e de especiarias
típicos de ales. Pode ser usada imediatamente para blendar, ou pode ser
reservada para envelhecer em tonéis de madeira por um período que varia entre 8
meses e 2 anos. Ao longo desse tempo, ocorre uma terceira fermentação,
realizada por leveduras selvagens do gênero Brettanomyces,
residentes na madeira. As Brettanomyces
produzem pouca acidez, mas realizam a chamada superatenuação, ou seja, consomem os
carboidratos restantes da cerveja, deixando-a seca (à semelhança de
uma lambic). Além disso, também produzem ésteres e fenóis de aromas
característicos, importantes para o estilo. Via de regra, quanto mais tempo a
cerveja permanecer nos barris, mais marcantes serão os traços de Brettanomyces no produto final. Ao final
do processo, a cerveja que envelheceu em madeira normalmente é misturada à
jovem para compor o produto final.
Comparado a uma lambic, o mosto de uma Flanders red ale tem
diferenças importantes que influenciam as características da cerveja pronta. Em
primeiro lugar, as cervejas do estilo recebem lúpulos frescos, mas costumam ser
bem menos lupuladas (em torno de 10 IBUs), o que permite a proliferação mais
livre de bactérias láticas. Como resultado – e contraintuitivamente em relação
a nossa percepção sensorial primeira –, uma Flanders red ale normalmente tem
uma quantidade total de ácidos maior do que uma lambic! Em segundo lugar, a
composição de grãos é diferente. Enquanto uma lambic usa trigo não maltado para
obter muito amido e um mosto pouco fermentável, as Flanders red ales
normalmente usam uma proporção maior (em torno de 80%) de malte de cevada, com
o milho como adjunto para fornecer um pouco de amido. O resultado é que o mosto
de uma Flanders red ale é mais facilmente fermentável do que o de uma lambic.
Consequentemente, a maior parte dos açúcares é consumida nas primeiras fases da
fermentação, deixando menos alimento para as etapas finais, conduzidas pelas Brettanomyces. Por isso, Flanders red
ales envelhecidas (sem blendar) são mais ácidas do que lambics, mas exibem
aromas animais (associados às Brettanomyces)
em menor intensidade.
A mistura perfeita
O traço definidor das Flanders red ales clássicas, além da
acidez, é a mistura entre características da cerveja jovem e da envelhecida. A
ale jovem se assemelha a uma brown ale de estirpe “belga”: tem doçura residual
bem perceptível (pois não sofreu superatenuação), sabores de malte levemente
tostado e aromas evidentes de ésteres e fenóis produzidos por leveduras de alta
fermentação (que lembram frutas doces e especiarias, especialmente
pimenta-do-reino). Mal e porcamente comparando, seria uma espécie de Belgian dubbel
mais ácida e menos alcoólica. A cerveja envelhecida, por sua vez, traz traços
de maturação em carvalho, pouca doçura e corpo, maior acidez, toques acéticos e
aromas associados a Brettanomyces –
animais e de frutas frescas e ácidas.
A arte de blendar na tradição de Flandres, em seu mais alto
estado, consiste em preservar ao máximo as características de ambas as
cervejas, sem ofuscar a maciez frutada e caramelada da ale jovem e nem
neutralizar a acidez e os aromas animais e amadeirados da velha. A mistura
também deve neutralizar as características “negativas” de cada uma das
cervejas-base, corrigindo a doçura demasiada da cerveja jovem e a secura
inclemente da envelhecida. O resultado deve ser uma cerveja equilibrada, em que
doce e azedo se misturam de forma harmoniosa na boca, sem que ela fique
enjoativa ou agressiva demais, e com altíssima complexidade aromática. Ela deve
preservar o melhor dos dois mundos: o exotismo firme da fermentação espontânea
e a maciez reconfortante das ales belgas. Por conta disso, Flanders red ales
trazem uma “pegada selvagem” muito clara e definida, mas ainda têm
características de ales belgas bem claras. Como resultado, elas assustam menos
os bebedores pouco habituados a cervejas selvagens (que ainda reconhecem nelas
características claras de “cerveja”, como eles entendem o termo), e normalmente
fornecem uma excelente porta de entrada para esse vasto reino da selvageria
cervejeira.
A proporção entre cerveja velha e jovem no blend varia de
cervejaria para cervejaria, de rótulo para rótulo – bem como a definição do
tempo necessário para a cerveja ser considerada “jovem” ou “velha”. Flanders
red ales têm métodos produtivos um pouco mais abertos e variáveis do que as
lambics. Seja como for, a proporção de cerveja envelhecida foi gradualmente
diminuindo ao longo do século XX na maior parte das marcas, para atender a um
mercado com menor tolerância à acidez. Apesar disso, há um movimento
recente em direção a Flanders red ales mais secas e menos doces, tanto na
Bélgica quanto nos novos polos da revolução cervejeira artesanal (notadamente, nos
EUA), e existem cervejarias que vendem a cerveja velha pura, sem blendar – sua
profundidade de caráter é absolutamente estarrecedora. Algumas cervejarias
produzem blends diferentes, vendidos sob denominações distintas, que variam
apenas na proporção da cerveja jovem para a velha. Os rótulos mais caros e
prestigiados, via de regra, são os que têm maior proporção da parte
envelhecida.
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Além de dois blends distintos, a Rodenbach vende sua
cerveja
envelhecida sem blendar sob a denominação “Vintage”.
Fonte:
www.bestbeersfrombelgium.eu |
O que esperar de uma Flanders red ale no copo? Qual é o seu
perfil sensorial? Sua coloração é entre marrom e avermelhada, normalmente
límpida se for servida corretamente. O aroma surpreende inicialmente pelos
traços selvagens, mais claros quanto mais elevada for a idade média do blend:
acidez volátil, traços animais evidentes lembrando couro cru e estábulo (mas
não tanto quanto em uma lambic), terroso e até, em alguns rótulos, uma sensação
acética clara, mas nunca dominante. Contudo, logo se sentem os traços da
cerveja jovem (ou seus resíduos, no caso de rótulos que não são blendados): o
malte traz caramelo intenso, algum acastanhado ou achocolatado. Os ésteres
frutados frequentemente lembram frutas vermelhas (cerejas, morangos maduros
etc.) e vinho tinto, e há, frequentemente, uma picância fenólica remetendo a
pimenta-do-reino. Acetona e uvas verdes podem advir das Brettanomyces. Traços da madeira podem ser perceptíveis por meio de
aromas amadeirados ou abaunilhados. É frequente que um ataque inicial bem ácido
dê lugar a uma doçura maltada final para equilibrar. O corpo costuma ser
mediano, nem tão doce e pleno quanto na cerveja jovem, nem tão seco quanto na
envelhecida. As melhores devem parecer ser misteriosamente capazes de
equilibrar e fazer conviverem pacificamente todos os opostos imagináveis – ao
mesmo tempo doces e azedas, macias e inclementes, rústicas e envolventes. Uma
espécie de síntese alquímica ideal.
Flandres e a Borgonha
Se lambics são frequentemente comparadas a espumantes brut,
as Flanders red ales normalmente são postas lado a lado com os vinhos tintos.
Seu jogo de doce-ácido e seus aromas amadeirados e frutados, remetendo muitas
vezes a frutas vermelhas, fornecem uma comparação quase imediata com muitos
tintos. Aliás, algumas cervejas belgas do estilo (como a Duchesse de Bourgogne e a Bourgogne des Flandres) trazem, no rótulo, referências
a uma famosa região produtora de vinhos tintos da vizinha França, a Borgonha (Bourgogne, em francês). Na realidade, Flanders
red ales assemelham-se notavelmente aos tintos da Borgonha, mais do que a
qualquer outro tipo de vinho do mundo.
A Borgonha é uma tradicional região vinícola reconhecida por
vinhos caros e muito prestigiados, que alcançam às vezes cifras fabulosas na casa dos milhares
de euros. Seus tintos são produzidos exclusivamente com uvas da variedade pinot
noir – contudo, é o terroir, mais do
que a variedade da uva, que mais determina as características do vinho. Muitos tintos
borguinhões têm um aroma característico descrito pelos enófilos como terroso, mas que nada mais é do que o
nosso já querido aroma “animal” associado às Brettanomyces, que nós, apreciadores de cervejas, aprendemos a
descrever como semelhante a “cobertor de cavalo”, “couro cru” ou “estábulo”.
Alguns produtores de vinho, especialmente do Novo Mundo, consideram o aroma
terroso/animal como um defeito, indicador de contaminação microbiológica, mas
ele faz parte do caráter tradicional da região da Borgonha. Mais do que vinhos
tintos em geral, as Flanders red ales lembram muito os tintos borguinhões. Quando
tive a oportunidade de tomar meu primeiro tinto da Borgonha, eu já conhecia bem
as Flanders red ales. Já ao derramar o líquido no decanter, fui acometido de
uma inescapável sensação de déja-vu e
disse para mim mesmo: “isso é cerveja selvagem” (para meu deleite, obviamente)!
Os vinhos da Borgonha são classificados em 4 níveis: há os
vinhos regionais (denominados apenas Bourgogne
Rouge ou Blanc), normalmente os
mais baratos, que se originam de misturas de uvas cultivadas em diferentes
vilas da região. Um degrau acima na escala de preços, os vinhos de vila são
feitos apenas com uvas de uma única vila, exibindo de forma mais clara o
caráter daquele terroir, e sempre
exibem o nome da vila no rótulo. Acima deles, existem os vinhos de “primeiro
cultivo” (Premier Cru), feitos apenas
com as uvas de pequenas vinícolas que se destacam dentre todas de uma região.
Por fim, os vinhos de “grande cultivo” (Grand
Cru) advêm exclusivamente de uvas cultivadas nas melhores vinícolas da
Borgonha, e correspondem a apenas 2% da produção total.
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Fonte: thewinecountry.com |
O vinho que me deu esse “estalo” em relação à sua
similaridade com as Flanders red ales foi o Domaine Nicolas Rossignol Bourgogne 2008, um simples vinho regional
de um produtor estabelecido na vila de Volnay (conhecida por alguns dos mais
delicados e femininos tintos da Borgonha). Ótimo tinto, cheio de personalidade,
apesar de sua classificação algo humilde. Delicado e leve, mostrou uma acidez
fresca e um corpo pouco volumoso, com taninos amenos. No aroma, convidativo,
predominavam as notas animais/terrosas lembrando couro cru e estábulo, sob as
quais se sentiam, em harmonia e equilíbrio, toques de morangos frescos, algum
tostado de café, leve baunilha e um quê defumado. Com o tempo, melancia e
solvente apareciam no nariz, sem serem totalmente agradáveis. Não se mostrou um
vinho corpulento ou marcante, surpreendendo e agradando antes pelo seu frescor.
Guardadas as devidas proporções, me lembrou muito a Rodenbach Grand Cru, uma
das mais clássicas cervejas vermelhas de Flandres! Provando que a fronteira
entre fermentados de uva e cevada, frequentemente superestimada pelos
apreciadores, pode ser bem mais fluida do que imaginamos.
Na próxima parte desta matéria, faremos uma degustação
comparada de sete Flanders red ales, disponíveis e não disponíveis no mercado
nacional. Não perca!