quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Cervejas selvagens - Parte VIII: O desafio da acidez

Os leitores que me acompanharam até aqui já devem estar com água na boca, esperando para “provarmos” juntos as cervejas selvagens das quais estamos falando há meses. Talvez já tenham aberto uma ou outra garrafa de lambic enquanto esperavam. E, como manda a etiqueta de todo bom anfitrião, é pouco educado deixar seus convidados com sede. Portanto, comecemos nossas degustações com algumas palavras gerais sobre a arte de apreciar uma boa lambic.

Lambic: separando os meninos dos homens
desde tempos imemoriais!
Fonte: www.tumblr.com
Como não poderia deixar de ser, começamos nossa jornada gustativa pela acidez característica das cervejas de fermentação “espontânea”. As melhores lambics são sofisticadamente secas e ácidas, sem serem simplórias nem rudes. Sua acidez aguda limpa o paladar, faz salivar a boca e abre o apetite. À semelhança de um bom vinho espumante, são perfeitas como aperitivos e para celebrar, mas possuem complexidade o bastante para te entreterem por muito tempo. Concentraremos nossas atenções sobre os exemplares tradicionais do estilo, denominados “oude” (“oude gueuze”, “oude kriek” etc.) ou “vieille”, que são refermentados na garrafa, não são pasteurizados e não sofrem adição de adoçantes. Neles, a acidez brilha em sua máxima forma e elegância. Deixemos para falar das lambics adoçadas depois.

Vinagre? Estragado?

Suponho que, se você estiver lendo esta matéria, esteja online. Nesse caso, vale a pena fazer um pequeno experimento, a título de sondagem: verifique as avaliações de uma oude lambic em um ranking coletivo brasileiro de cervejas, como o Brejas. Vamos usar como exemplo a Boon Geuze Mariage Parfait, não só porque ela é uma excelente cerveja, mas também porque era, até pouco tempo atrás, a única oude gueuze (sem a presença de frutas que possam interferir na avaliação dos seus traços de fermentação) comercialmente disponível no Brasil e, portanto, tem um maior número de avaliações. Apesar de a nota média da cerveja estar mais ou menos no meio da curva (3.3), é engraçado observar o quanto as avaliações individuais variam entre si. Há um número considerável de notas acima de 4.0, bem como abaixo de 2.0, o que mostra que parece não existir consenso em torno dela. Comentários como “lembra bem um champanhe, porém, melhor” ou “entra no meu top ten” convivem com outros como “não tinha nada, nada (!) agradável”, “não desce”, “serve só para a coleção” ou até “ela é assim mesmo... horrível!” Algumas avaliações evocam diretamente essa duplicidade: “você detesta e adora ao mesmo tempo”, ou “não sei dizer se é boa ou ruim”.

Quem já comeu halawi com certeza sabe o que é 
adorar e odiar uma coisa ao mesmo tempo. 
Não vou nem falar em rock progressivo.
Fonte: cervejaerua.wordpress.com
Como assim? É muito comum a rejeição inicial a lambics tradicionais. Já falamos um pouco sobre isso antes. Elas evocam sensações que nosso paladar, acostumado desde a infância a produtos industrializados e pasteurizados, associa a alimentos deteriorados. Ales e lagers, em geral, possuem acidez contida, salvo em alguns estilos específicos, como as Weissbiere ou as saisons. E mesmo essas nem se comparam à alta sensação de acidez de uma lambic, muito mais próxima ou até maior do que a de um vinho branco ou espumante. Sem contar os aromas exóticos típicos das lambics, os quais, como vimos, se originam da ação das bactérias láticas e principalmente das leveduras do gênero Brettanomyces. Tudo isso pode parecer muito estranho para o degustador que esteja mentalmente preparado para uma ale ou uma lager. Para a maior parte das pessoas, lambics são um gosto adquirido com o tempo. Curiosamente, elas têm potencial para agradar mais um apreciador de vinhos (a comparação com espumantes brut se impõe quase naturalmente) do que um fanático por cervejas – pelo menos num primeiro momento.

Acidez, “acidezes”

Ales e lagers “convencionais” têm no dueto doce-amargo a base do seu perfil gustativo. A acidez, na maior parte dos estilos, é apenas complementar. Aliás, acidez perceptível demais deve ser considerada um defeito na maioria dos estilos, e normalmente indica uma contaminação bacteriana indesejável. Não é o que ocorre em uma lambic tradicional, que tem como protagonista a acidez. Contudo, como afirma do guia do BJCP a respeito das gueuzes, “embora algumas sejam mais predominantemente azedas/ácidas, o equilíbrio é o ponto mais importante, e indica uma gueuze melhor”. Assim sendo, mesmo na lambic mais ácida, essa sensação não pode nem ser intensa demais, nem estar sozinha no aroma e no gosto.

Como se mede a intensidade da acidez? Em termos químicos e absolutos, a proporção entre ácidos e bases de uma solução é medida pelo pH, numa escala que vai de 0 a 14, sendo que, quanto menor o valor, mais ácida será a solução. O valor 7 indica uma substância neutra (como a água pura), enquanto valores menores indicam soluções ácidas e valores superiores denotam soluções básicas. Uma coisa deve ficar clara: toda cerveja é ácida. A maior parte dos estilos cervejeiros têm pH em torno de 4.0. Toda lambic, pela lei europeia, deve ter pH máximo de 3.8, o que as torna levemente mais ácidas que uma lager ou ale convencional.

Mas uma coisa é a medida do pH; outra coisa é a sensação de acidez no paladar. Duas bebidas podem ter mais ou menos o mesmo pH, mas causarem sensações mais ou menos intensas no paladar. A primeira variável a se considerar é a natureza da composição de ácidos da cerveja. Toda cerveja tem uma série de ácidos diferentes em sua composição química – ainda mais no caso de uma lambic. Nem todos os ácidos, contudo, exercem o mesmo efeito sobre o paladar humano. Há alguns que parecem mais amenos, e outros que se manifestam de forma mais agressiva na boca. No caso das lambics, dois ácidos são responsáveis pelo grosso da acidez da cerveja: o ácido lático (produzido principalmente pelas bactérias do gênero Pediococcus) e o ácido acético (sintetizado em enormes proporções pelas Acetobacter).

Achou que era só na salada que você ia ver 
iogurte e vinagre juntos, não é?
Fonte: tastykitchen.com
O ácido lático é o mesmo que se forma no processo de fermentação do leite, mas, no caso da lambic, ele vem da fermentação dos carboidratos do mosto, obtidos a partir do trigo e do malte de cevada, pelas Pediococcus. A sensação do ácido lático pode ser facilmente reconhecida como semelhante à do iogurte natural (feito em casa ou industrializado, mas sem nenhuma adição de açúcar) ou da coalhada seca. Trata-se de uma acidez aguda, firme mas breve na boca, semelhante a uma pontada. Alguns produtores a descrevem como “doce” em comparação com o ácido acético, o qual, por sua vez, é encontrado principalmente no vinagre, e provoca uma sensação de acidez mais perene, intensa e prolongada, com uma certa sensação de “quente”. É muito difícil explicar essas sensações com palavras, mas é quase intuitivo imaginá-las quando nos lembramos do iogurte e do vinagre. O aroma de ambos os ácidos também é bem diferente: enquanto o ácido lático é um pouco mais neutro olfativamente, o acético tem um aroma pungente e característico de vinagre.

O ácido lático deve corresponder à maior parte da acidez de uma lambic, sendo responsável por uma sensação “azedinha” mais suave, redonda, contida e elegante. O ácido acético, por sua vez, quando está presente em uma lambic em concentrações muito altas, produz um azedume agressivo e desequilibrado, além de um aroma pungente, enjoativo, que pode ser desagradável aos sentidos. É fácil constatar que o ácido lático se mostra mais equilibrado ao nosso paladar do que o acético: basta pensar que podemos perfeitamente comer coalhada seca ou iogurte puros; porém, ninguém bebe vinagre puro. Por sua agressividade, o ácido acético deve estar presente apenas em baixas concentrações: ele nunca é o elemento dominante de uma lambic, entrando apenas como secundário em relação à composição de ácidos, fenóis e ésteres, para enriquecer a complexidade da cerveja e lhe dar um pouco mais de “pegada”. Algumas lambics praticamente não demonstram traços acéticos perceptíveis. Com ácido acético demais, o que teremos será vinagre, não lambic.

No Brasil, o descritor mais frequente nas descrições sensoriais de lambics tradicionais feitas pelos consumidores comuns (com pouca experiência com o estilo) é “avinagrada”. Logo se vê que se trata de uma confusão: uma lambic é predominantemente lática, e não avinagrada. Seus traços acéticos são complementares, e podem inclusive ser imperceptíveis. Nesse ponto, também é fácil desmistificar um lugar-comum frequente, sobretudo entre os apreciadores norte-americanos de sour ales: a ideia de que a melhor lambic será a mais intensamente ácida. Pelo contrário, o objetivo do produtor de lambics é minimizar a agressividade da acidez, controlando a proporção entre os ácidos lático e acético. Uma lambic tradicional deve, sim, ser muito seca, mas não precisa ser agressivamente azeda. A acidez de uma lambic – nunca é demais repetir – deve ser graciosa e elegante. A lambic não é uma cerveja extrema.

Equilíbrio

Mas qual é, objetivamente, a intensidade da acidez dessas cervejas? Alguns valores de referência podem nos ajudar nessa discussão. Como vimos, o pH de uma ale ou lager convencional gira em torno de 4.0. Uma lambic bem seca (tomemos como exemplo a Cantillon Gueuze) tem pH de 3.4, o mesmo de uma Flanders red ale como a Duchesse de Bourgogne. Um vinho tinto tem pH médio em torno de 3.5, enquanto o pH de um vinho branco gira em torno de 3.0. Uma Coca-Cola tem um espantoso pH de 2.5, sendo, portanto, mais ácida que todas essas bebidas! Se fôssemos medir apenas pelo pH, pareceria razoável supor que a sensação de acidez da Duchesse de Bourgogne seria igual à da Cantillon Gueuze. Contudo, a Duchesse se mostra, pelo contrário, aparentemente menos ácida. Da mesma forma, um vinho branco teria de se mostrar mais ácido na boca do que qualquer lambic; contudo, não é isso que verificamos sensorialmente. Não vou nem falar da Coca-Cola.

Uma chave para entender isso é o equilíbrio gustativo. Numa Flanders red ale ou em um vinho, a alta acidez é equilibrada pela doçura (do malte num caso, dos açúcares residuais da uva no outro), de modo que se manifesta de maneira atenuada ao paladar. Sabemos que a natureza mais palatável do ácido lático é responsável por fazer com que a sensação de acidez de uma lambic seja mais agradável. Mas, além disso, ela também deve ter um equilíbrio para que a acidez não apareça sozinha, de forma agressiva. Contudo, esse equilíbrio não vem da doçura: devido à superatenuação promovida pelas leveduras Brettanomyces, uma lambic tradicional não possui praticamente nenhum açúcar residual.

Como resultado, lambics são completamente secas – secas de cuspir algodão. Nesse sentido, sua sensação pode ser comparada à de um vinho espumante bem seco, como um “brut nature”. Pode, sim, haver uma leve percepção de doçura licorosa, normalmente advinda de álcoois superiores produzidos durante a maturação (lembrando mel), mas não aquela doçura característica do malte. O encanto de uma lambic está no fato de que não há doçura para “neutralizar” a acidez, que pode então brilhar em toda a sua glória. Uma lambic tradicional oferece um espetáculo de acidez que você pode apreciar como se estivesse sentado na primeira fileira, sem cabeças ou pilares para atrapalhar sua visão. É nessa franqueza que está seu encanto.

Se eles praticamente não têm doçura, então o que equilibra sua acidez? Em grande medida, o amargor. Os níveis objetivos de amargor de uma lambic são muito difíceis de se medir. A escala dos IBUs (international bitterness units, ou unidades internacionais de amargor), usada para medir o amargor de ales e lagers com maior ou menor grau de precisão, não funciona com lambics. Isso porque os IBUs medem a concentração absoluta de ácidos iso-alfa na cerveja, ou seja, o amargor oriundo de lúpulo. Ora, como vimos, lambics empregam lúpulos envelhecidos, que perderam o potencial para produzirem essas substâncias. Por isso, elas nunca ultrapassam os 20 IBUs – na verdade, raramente vão além das 10 unidades. Mas isso não traduz completamente sua sensação de amargor.

Taninos! Os das lambics não vão te dar essa careta.
Não garanto o mesmo da acidez...
Fonte: drinks.seriouseats.com
Lambics não possuem aquele amargor oleoso ou seco/terroso/condimentado, típico de lúpulos, mas sim um amargor tânico, que se sente com firmeza no fundo e nas laterais da língua e da boca. Esse amargor é semelhante àquele que se percebe em alguns vinhos especialmente secos, ou que notamos ao morder as sementes de uma uva. O amargor dos taninos pode facilmente ser agressivo num vinho, que já possui um equilíbrio satisfatório entre acidez e doçura. Numa lambic, porém, o amargor tânico corta a agressividade da acidez (sem neutralizá-la, e aí está o segredo) e permite que a cerveja desenvolva um final mais elegante, perene e estruturado. É comum notar, em lambics, uma transição entre uma entrada bem ácida e seca e um final seco e suavemente amargo, repuxando. São os taninos entrando em ação! Essa sensação é mais evidente nas gueuzes, já que os produtores normalmente evitam um amargor muito sólido nas fruit lambics, por entenderem que ele nem sempre se mistura de forma harmônica com o sabor da fruta.

Se considerarmos os elementos que perfazem o equilíbrio gustativo da maior parte dos estilos cervejeiros, a tríade amargo-doce-ácido tem lugar de destaque. Contudo, na maior parte dos estilos cervejeiros, a doçura é a responsável por “ancorar” o paladar e fornecer equilíbrio às outras sensações (amargor e acidez). As lambics são uma das poucas exceções. O quadro abaixo ilustra o posicionamento de diversos estilos cervejeiros nesse “tripé gustativo” (note que a imensa maioria dos estilos estaria localizada no quadrante superior-esquerdo):


Lambics também possuem uma sensação salgada característica. Ao contrário do que ocorre no caso das gose alemãs, que recebem adição de sal, a sensação salgada de uma lambic surge naturalmente da microflora responsável pela fermentação. Essa sensação é chocante para o degustador de primeira viagem (que só consegue perceber o ácido e o salgado, justamente as sensações que estão pouco presentes em outros estilos), mas vai se tornando mais e mais equilibrada e sutil à medida que nosso paladar aprende a identificar outras sensações. Eu me lembro de achar as primeiras lambics que bebi todas chocantemente salgadas – hoje em dia, percebo isso apenas como uma sensação auxiliar, mesmo quando degusto exatamente os mesmos rótulos.

Em todos os sentidos, a lambic é uma cerveja que acompanha a sua evolução como degustador, seja porque você vai se tornando progressivamente capaz de apreciar a elegância da acidez lática, seja porque você vai familiarizando seu paladar com ela para poder perceber o delicado equilíbrio com o amargor, os taninos, o salgado. E as descobertas não param no seu gosto, estendendo-se talvez ainda mais no vasto reino dos exóticos aromas da fermentação “espontânea”. É sobre eles que falaremos na próxima parte desta matéria! Não perca!

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