Os leitores que me acompanharam até aqui já devem estar com
água na boca, esperando para “provarmos” juntos as cervejas selvagens das quais
estamos falando há meses. Talvez já tenham aberto uma ou outra garrafa de
lambic enquanto esperavam. E, como manda a etiqueta de todo bom anfitrião, é
pouco educado deixar seus convidados com sede. Portanto, comecemos nossas
degustações com algumas palavras gerais sobre a arte de apreciar uma boa lambic.
Lambic: separando os meninos dos homens desde tempos imemoriais! Fonte: www.tumblr.com |
Como não poderia deixar de ser, começamos nossa jornada
gustativa pela acidez característica das cervejas de fermentação “espontânea”.
As melhores lambics são sofisticadamente secas e ácidas, sem serem simplórias
nem rudes. Sua acidez aguda limpa o paladar, faz salivar a boca e abre o
apetite. À semelhança de um bom vinho espumante, são perfeitas como aperitivos
e para celebrar, mas possuem complexidade o bastante para te entreterem por
muito tempo. Concentraremos nossas atenções sobre os exemplares tradicionais do
estilo, denominados “oude” (“oude gueuze”, “oude kriek” etc.) ou “vieille”, que
são refermentados na garrafa, não são pasteurizados e não sofrem adição de
adoçantes. Neles, a acidez brilha em sua máxima forma e elegância. Deixemos
para falar das lambics adoçadas depois.
Vinagre? Estragado?
Suponho que, se você estiver lendo esta matéria, esteja
online. Nesse caso, vale a pena fazer um pequeno experimento, a título de
sondagem: verifique as avaliações de uma oude lambic em um ranking coletivo
brasileiro de cervejas, como o Brejas. Vamos usar como exemplo a Boon Geuze Mariage Parfait, não só porque ela é uma excelente cerveja, mas também porque
era, até pouco tempo atrás, a única oude gueuze (sem a presença de frutas que
possam interferir na avaliação dos seus traços de fermentação) comercialmente
disponível no Brasil e, portanto, tem um maior número de avaliações. Apesar de
a nota média da cerveja estar mais ou menos no meio da curva (3.3), é engraçado
observar o quanto as avaliações individuais variam entre si. Há um número
considerável de notas acima de 4.0, bem como abaixo de 2.0, o que mostra que
parece não existir consenso em torno dela. Comentários como “lembra bem um
champanhe, porém, melhor” ou “entra no meu top ten” convivem com outros como
“não tinha nada, nada (!) agradável”, “não desce”, “serve só para a coleção” ou
até “ela é assim mesmo... horrível!” Algumas avaliações evocam diretamente essa
duplicidade: “você detesta e adora ao mesmo tempo”, ou “não sei dizer se é boa
ou ruim”.
Quem já comeu halawi com certeza sabe o que é
adorar e odiar uma coisa ao mesmo tempo.
Não vou nem falar em rock progressivo.
Fonte: cervejaerua.wordpress.com |
Acidez, “acidezes”
Ales e lagers “convencionais” têm no dueto doce-amargo a
base do seu perfil gustativo. A acidez, na maior parte dos estilos, é apenas
complementar. Aliás, acidez perceptível demais deve ser considerada um defeito na maioria dos estilos, e
normalmente indica uma contaminação bacteriana indesejável. Não é o que ocorre
em uma lambic tradicional, que tem como protagonista
a acidez. Contudo, como afirma do guia do BJCP a respeito das gueuzes, “embora
algumas sejam mais predominantemente azedas/ácidas, o equilíbrio é o ponto mais
importante, e indica uma gueuze melhor”. Assim sendo, mesmo na lambic mais
ácida, essa sensação não pode nem ser intensa demais, nem estar sozinha no
aroma e no gosto.
Como se mede a intensidade da acidez? Em termos químicos e
absolutos, a proporção entre ácidos e bases de uma solução é medida pelo pH,
numa escala que vai de 0 a 14, sendo que, quanto menor o valor, mais ácida será
a solução. O valor 7 indica uma substância neutra (como a água pura), enquanto
valores menores indicam soluções ácidas e valores superiores denotam soluções
básicas. Uma coisa deve ficar clara: toda cerveja é ácida. A maior parte dos
estilos cervejeiros têm pH em torno de 4.0. Toda lambic, pela lei europeia,
deve ter pH máximo de 3.8, o que as torna levemente mais ácidas que uma lager
ou ale convencional.
Mas uma coisa é a medida do pH; outra coisa é a sensação de
acidez no paladar. Duas bebidas podem ter mais ou menos o mesmo pH, mas causarem
sensações mais ou menos intensas no paladar. A primeira variável a se
considerar é a natureza da composição de ácidos da cerveja. Toda cerveja tem
uma série de ácidos diferentes em sua composição química – ainda mais no caso
de uma lambic. Nem todos os ácidos, contudo, exercem o mesmo efeito sobre o
paladar humano. Há alguns que parecem mais amenos, e outros que se manifestam
de forma mais agressiva na boca. No caso das lambics, dois ácidos são
responsáveis pelo grosso da acidez da cerveja: o ácido lático (produzido
principalmente pelas bactérias do gênero Pediococcus)
e o ácido acético (sintetizado em enormes proporções pelas Acetobacter).
Achou que era só na salada que você ia ver
iogurte
e vinagre juntos, não é?
Fonte: tastykitchen.com |
O ácido lático deve corresponder à maior parte da acidez de
uma lambic, sendo responsável por uma sensação “azedinha” mais suave, redonda,
contida e elegante. O ácido acético, por sua vez, quando está presente em uma
lambic em concentrações muito altas, produz um azedume agressivo e
desequilibrado, além de um aroma pungente, enjoativo, que pode ser desagradável
aos sentidos. É fácil constatar que o ácido lático se mostra mais equilibrado
ao nosso paladar do que o acético: basta pensar que podemos perfeitamente comer
coalhada seca ou iogurte puros; porém, ninguém bebe vinagre puro. Por sua
agressividade, o ácido acético deve estar presente apenas em baixas
concentrações: ele nunca é o elemento dominante de uma lambic, entrando apenas
como secundário em relação à composição de ácidos, fenóis e ésteres, para
enriquecer a complexidade da cerveja e lhe dar um pouco mais de “pegada”.
Algumas lambics praticamente não demonstram traços acéticos perceptíveis. Com
ácido acético demais, o que teremos será vinagre, não lambic.
No Brasil, o descritor mais frequente nas descrições
sensoriais de lambics tradicionais feitas pelos consumidores comuns (com pouca
experiência com o estilo) é “avinagrada”. Logo se vê que se trata de uma
confusão: uma lambic é predominantemente lática, e não avinagrada. Seus traços
acéticos são complementares, e podem inclusive ser imperceptíveis. Nesse ponto,
também é fácil desmistificar um lugar-comum frequente, sobretudo entre os
apreciadores norte-americanos de sour
ales: a ideia de que a melhor lambic será a mais intensamente ácida. Pelo
contrário, o objetivo do produtor de lambics é minimizar a agressividade da
acidez, controlando a proporção entre os ácidos lático e acético. Uma lambic
tradicional deve, sim, ser muito seca, mas não precisa ser agressivamente
azeda. A acidez de uma lambic – nunca é demais repetir – deve ser graciosa e
elegante. A lambic não é uma cerveja extrema.
Equilíbrio
Mas qual é, objetivamente, a intensidade da acidez dessas
cervejas? Alguns valores de referência podem nos ajudar nessa discussão. Como
vimos, o pH de uma ale ou lager convencional gira em torno de 4.0. Uma lambic
bem seca (tomemos como exemplo a Cantillon Gueuze) tem pH de 3.4, o mesmo de uma Flanders red ale como a Duchesse de Bourgogne. Um vinho tinto tem pH médio em torno de 3.5, enquanto o pH de um vinho
branco gira em torno de 3.0. Uma Coca-Cola tem um espantoso pH de 2.5, sendo,
portanto, mais ácida que todas essas bebidas! Se fôssemos medir apenas pelo pH,
pareceria razoável supor que a sensação de acidez da Duchesse de Bourgogne
seria igual à da Cantillon Gueuze. Contudo, a Duchesse se mostra, pelo
contrário, aparentemente menos ácida. Da mesma forma, um vinho branco teria de se
mostrar mais ácido na boca do que qualquer lambic; contudo, não é isso que
verificamos sensorialmente. Não vou nem falar da Coca-Cola.
Uma chave para entender isso é o equilíbrio gustativo. Numa
Flanders red ale ou em um vinho, a alta acidez é equilibrada pela doçura (do
malte num caso, dos açúcares residuais da uva no outro), de modo que se
manifesta de maneira atenuada ao paladar. Sabemos que a natureza mais palatável
do ácido lático é responsável por fazer com que a sensação de acidez de uma
lambic seja mais agradável. Mas, além disso, ela também deve ter um equilíbrio
para que a acidez não apareça sozinha, de forma agressiva. Contudo, esse
equilíbrio não vem da doçura: devido à superatenuação promovida pelas leveduras
Brettanomyces, uma lambic tradicional
não possui praticamente nenhum açúcar residual.
Como resultado, lambics são completamente secas – secas de
cuspir algodão. Nesse sentido, sua sensação pode ser comparada à de um vinho
espumante bem seco, como um “brut nature”. Pode, sim, haver uma leve percepção
de doçura licorosa, normalmente advinda de álcoois superiores produzidos
durante a maturação (lembrando mel), mas não aquela doçura característica do
malte. O encanto de uma lambic está no fato de que não há doçura para “neutralizar”
a acidez, que pode então brilhar em toda a sua glória. Uma lambic tradicional
oferece um espetáculo de acidez que você pode apreciar como se estivesse
sentado na primeira fileira, sem cabeças ou pilares para atrapalhar sua visão.
É nessa franqueza que está seu encanto.
Se eles praticamente não têm doçura, então o que equilibra
sua acidez? Em grande medida, o amargor. Os níveis objetivos de amargor de uma
lambic são muito difíceis de se medir. A escala dos IBUs (international
bitterness units, ou unidades internacionais de amargor), usada para medir o
amargor de ales e lagers com maior ou menor grau de precisão, não funciona com lambics.
Isso porque os IBUs medem a concentração absoluta de ácidos iso-alfa na
cerveja, ou seja, o amargor oriundo de lúpulo. Ora, como vimos, lambics
empregam lúpulos envelhecidos, que perderam o potencial para produzirem essas
substâncias. Por isso, elas nunca ultrapassam os 20 IBUs – na verdade,
raramente vão além das 10 unidades. Mas isso não traduz completamente sua
sensação de amargor.
Taninos! Os das lambics não
vão te dar essa careta. Não garanto o mesmo da acidez...Fonte: drinks.seriouseats.com |
Se considerarmos os elementos que perfazem o equilíbrio
gustativo da maior parte dos estilos cervejeiros, a tríade amargo-doce-ácido
tem lugar de destaque. Contudo, na maior parte dos estilos cervejeiros, a
doçura é a responsável por “ancorar” o paladar e fornecer equilíbrio às outras
sensações (amargor e acidez). As lambics são uma das poucas exceções. O quadro
abaixo ilustra o posicionamento de diversos estilos cervejeiros nesse “tripé
gustativo” (note que a imensa maioria dos estilos estaria localizada no quadrante
superior-esquerdo):
Lambics também possuem uma sensação salgada característica. Ao contrário do que ocorre no caso das gose alemãs, que recebem adição de sal, a sensação salgada de uma lambic surge naturalmente da microflora responsável pela fermentação. Essa sensação é chocante para o degustador de primeira viagem (que só consegue perceber o ácido e o salgado, justamente as sensações que estão pouco presentes em outros estilos), mas vai se tornando mais e mais equilibrada e sutil à medida que nosso paladar aprende a identificar outras sensações. Eu me lembro de achar as primeiras lambics que bebi todas chocantemente salgadas – hoje em dia, percebo isso apenas como uma sensação auxiliar, mesmo quando degusto exatamente os mesmos rótulos.
Em todos os sentidos, a lambic é uma cerveja que acompanha a
sua evolução como degustador, seja porque você vai se tornando progressivamente
capaz de apreciar a elegância da acidez lática, seja porque você vai
familiarizando seu paladar com ela para poder perceber o delicado equilíbrio
com o amargor, os taninos, o salgado. E as descobertas não param no seu gosto,
estendendo-se talvez ainda mais no vasto reino dos exóticos aromas da
fermentação “espontânea”. É sobre eles que falaremos na próxima parte desta
matéria! Não perca!
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