sábado, 27 de dezembro de 2014

Destaques de 2014

Leitores queridos, estamos de volta! O Cru e o Maltado passou por um interregno de 4 meses durante os quais não postei nada por aqui. Peço desculpas aos meus (dois ou três) leitores fiéis, mas precisei ficar um pouco longe das telas para conseguir redigir minha tese de doutorado. Mas agora que voltamos à ativa, pensei em fechar 2014 com os destaques do ano, do ponto de vista deste bêbado humilde apreciador de cervejas.

Não vou mentir: 2014 foi um ano em que me distanciei um pouco do universo cervejeiro. E não estou sozinho: tenho notado que vários dos meus colegas de hobby da mesma geração – ou seja, que começaram a beber e estudar cerveja antes de 2010, quando o mercado era radicalmente diferente do que é hoje – estão passando por algo semelhante. Ou eles se profissionalizaram e entraram para valer no mercado (enquanto a bolha não estoura), ou então estão tendendo a viver um certo refluxo. Veja só: quando comecei, havia um discurso de que a demanda por cervejas especiais ainda era pequena no Brasil, e que isso explicava por que tudo era tão caro e difícil de encontrar. Com os anos – dizia-se –, os brasileiros iriam “entender” o que era uma boa cerveja, o mercado cresceria, haveria oportunidades para os empresários e nós finalmente teríamos um montão de marcas de cervejas excelentes no supermercado para beber com a família, os amigos, no churras, tudo a preço de Eisenbahn ou mais barato.

Preciso dizer que nada disso aconteceu? Claro que ainda tem gente tonta por aí falando que, em poucos anos, nosso mercado será como o dos EUA ou o belga. E tem outros que ficam culpando Deus e o mundo (leia-se: o PT) por isso ainda não estar acontecendo no Brasil. Mas uma hora precisa cair a ficha de que o mercado de cervejas especiais no Brasil se configurou e cresceu como um mercado de produtos de luxo, não muito diferente de outros mercados parecidos: o de cosméticos, o da moda, o de vinhos, o gastronômico etc. Produtos supérfluos pelos quais as classes A e B se dispõem a pagar muito caro para se diferenciarem da classe C. Não daria para esperar nada muito diferente do que acabou acontecendo. O melhor que pode acontecer ao mercado de cerveja no Brasil, nos próximos anos, é que ele fique igual ao de vinhos (igualmente elitista, mas pelo menos um pouquinho mais profissional e adulto). O resto é balela.

Isso para dizer que, de todas as novidades que vimos no mercado em 2014, muito poucas realmente me animaram. 95% do que circulou pela blogosfera, pelas redes sociais e pelo Untappd parece requentado do que vi e bebi em outros anos. E convenhamos que cerveja requentada é especialmente decepcionante. Mas ainda dá para destacar um ou outro lançamento interessante que valeu a pena, seja pela qualidade intrínseca, seja pela novidade, seja pelo custo-benefício.

Acho difícil negar que as cervejas selvagens foram um dos destaques do ano de 2014 no Brasil. Começando com a volta das Cantillon ao mercado nacional no final de 2013, tivemos uma chegada de bons rótulos importados ao longo de 2014 e uma sinalização das cervejarias nacionais de que começarão a produzir cervejas ácidas e/ou fermentadas com leveduras “selvagens”. Infelizmente, os preços estão lá no alto. Cervejas selvagens são estilos de produção complexa e demorada, o que aumenta o preço final naturalmente. Isso, somado à sua exclusividade e à sua raridade no Brasil, elevou a etiqueta de preços às alturas. Como resultado, os rótulos que ainda mais valem a pena no nosso mercado são velhas conhecidas do apreciador: as Flanders red ales belgas e as lambics importadas pela Bier&Wein (como a Boon Oude Geuze Mariage Parfait ou a Lindemans Kriek Cuvée René), que não devem nada às marcas mais conceituadas e caras e que custam às vezes menos da metade. Mas pelo menos temos algumas novidades para quem, como eu, é fã do “lado negro da Força”.

Fonte: blog.seniorennet.be
Uma dessas novidades anunciadas em 2014 (mas que, sinceramente, eu ainda nem vi nas prateleiras) é a chegada de um extraordinário rótulo da belga Rodenbach. A cervejaria é conhecida por fazer as mais famosas Flanders red ales do mundo, feitas a partir de um blend entre uma cerveja ácida e madura, envelhecida longamente em tonéis de carvalho, e uma cerveja jovem e fresca. Quanto maior a proporção da cerveja madura, mais sofisticado (e caro) é o produto final. Até este ano, tínhamos no Brasil a versão comum (com um quarto de cerveja madura) e a Grand Cru (com dois terços de cerveja madura). A Rodenbach Vintage, cuja safra 2012 aportou aqui este ano, é composta apenas pela cerveja madura e envelhecida, sem blendar com a cerveja fresca. Para os apreciadores do estilo, é o santo graal. Os toques animais, os traços de evolução e guarda, o perfil do malte, as especiarias, as frutas passas, tudo está lá um torvelinho de complexidade aromática. Estábulo, madeira, terra úmida, pimenta-do-Reino, bloody Mary, caramelo, ameixas e figos são apenas algumas das muitas sensações que você vai encontrar no nariz. Na boca, uma leve doçura inicial, uma acidez firme mas bem domada pelo envelhecimento e um final equilibrado, impecável, com taninos perceptíveis mas gentis acariciando as bochechas. O corpo é leve sem ser ralo, com textura levemente terrosa. Um espetáculo de cerveja, uma das melhores que este degustador já teve a honra de provar. Infelizmente, ainda não vi em nenhuma loja e não sei dizer quanto está custando, mas não há de ser barata, visto que a meia-garrafa fica em torno de 5 euros na fonte. Vale ressaltar que eu provei a safra 2011, sendo que a que chegou ao Brasil foi a 2012.

Fonte: www.flickr.com
Para os amantes dos estilos sevagens, outra notícia de 2014 a se comemorar foi a chegada da linha de lambics da Oud Beersel. Trata-se de um blender autônomo, o que significa que a cervejaria não produz seu próprio mosto, mas sim compra o mosto feito por outros produtores (no caso, a Boon) e faz o trabalho de maturação, blendagem e engarrafamento dos produtos, dando-lhes a sua identidade sensorial. A Oud Beersel Oude Geuze Vieille é um dos rótulos trazidos ao Brasil este ano. Ainda não sei quanto ele está custando no nosso mercado, mas já adianto que, se chegar ao consumidor a menos de R$ 40-45 (já que custa menos de 4 euros lá fora), é uma boa opção de compra. Seu diferencial é que ela é brassada com lúpulos que foram envelhecidos por apenas 1 ou 2 anos, em vez dos 3 anos habituais. Como resultado, a lambic resultante guarda um pouco do frescor aromático e do amargor afiado dos lúpulos. No aroma, flores (gerânios), limão, ervas finas e apimentado acusam a presença do lúpulo e convivem com um perfil frutado que se desenvolve em camadas (melão, tutti-frutti, maracujá). O aroma animal é menos intenso do que eu outras lambics, e há toques caprílicos e abaunilhados para fechar sua complexidade. Na boca, a acidez inicial é gentil e dá lugar a um amargor limpo e refrescante, sem taninos, o que a torna uma ótima opção de entrada para quem não está acostumado com a estrutura das lambics mais ácidas e tânicas. O corpo é leve, seco, sem muita adstringência. Prova de que o lúpulo é gracioso e encantador quando usado com sabedoria. Deverá agradar quem está começando no mundo das lambics. A cervejaria ainda tem uma linha limitadíssima de lambics refermentadas pelo método tradicional de produção de espumantes (o famigerado “champenoise”), denominadas Bzart Lambiek. São lambics encantadoras e muito elegantes, mas seu preço é um pouco proibitivo para quem não mora na União Europeia, já que, por lá, seu valor ultrapassa os 25 euros. Nem cogito o quanto estarão custando no Brasil.

Fonte: www.ocontadordecervejas.com.br
No Brasil, o destaque selvagem do ano, para mim, foi o primeiro rótulo comercial produzido por estas bandas usando leveduras do gênero Brettanomyces: a Tupiniquim/Evil Twin Lost in Translation IPA Brett. A receita se beneficiou do know-how da cervejaria cigana dinamarquesa Evil Twin, conhecida por sua aclamada linha de IPAs inteiramente fermentadas com Brettanomyces, denominadas Femme Fatale. E, o que é ainda mais importante: pelo menos no primeiro lote, mostrou-se uma IPA nacional bem feita, o que é raro no nosso mercado. A fermentação com Brettanomyces ainda é assunto envolto em mistério, então vale a pena fazer alguns esclarecimentos. O primeiro deles é que as Brettanomyces não produzem a acidez que se encontra nas lambics. OK, elas produzem só um tiquinho de nada de ácido acético, mas nada que vá realmente dar uma pegada “sour” para a cerveja. Além disso, os aromas tipicamente associados às Bretta (os aromas ditos “animais”, lembrando estábulo) só são produzidos em grandes quantidades durante a fase de superatenuação de açúcares, que demora vários meses para começar. Quando as Brettanomyces são usadas para a fermentação primária, elas se comportam de forma semelhante às leveduras comuns, do gênero Saccharomyces. O que isso quer dizer? Que uma cerveja fermentada com Brettanomyces e não envelhecida, como esta Lost in Translation, não vai ter aquele perfil super intenso de lambic que é tipicamente associado a Bretta. O que ela vai ter é um toquezinho levemente rústico e “exótico”, um frescor diferente, talvez algo animal ao fundo. Coisa sutil, mas perceptível para quem sabe o que está procurando. No caso desta Lost in Translation, o perfume floral, herbal e frutado dos lúpulos predomina, remetendo a verbena, rosas, limão, mamão e manga assada ao forno. As Bretta agregam um frescor frutado lembrando uvas verdes, um toque animal de couro de sapateiro e, acima de tudo, um exótico perfume defumado que lembra borracha queimada. Rusticidade e frescor andando de mãos dadas. Há uma acidez inicial muito sutil, mas o predomínio evidente é do amargor limpo e refrescante, que perdura com sensação de secura na garganta. Corpo leve, mas aveludado. Ótimo conjunto: uma cerveja para apreciar com calma. Pena que toda a linha da Tupiniquim tenha chegado ao mercado paulistano a preços tão inflacionados. Até agora, dentre todas as que tomei, esta foi a única que me fez achar que valeu o tanto que eu paguei.

Seguindo a tendência do ano passado, 2014 também foi um bom ano para os amantes de IPAs americanas. Eu tenho de ser sincero e dizer que já estou de saco cheio das IPAs que se produzem no Brasil. As cervejarias brasileiras fazem IPAs com pouco frescor aromático e com amargor rascante e agressivo. Já cansei de explicar que o amargor de uma boa IPA pode ser intenso o quanto for, mas precisa ser limpo e refrescante (como acontece nos melhores rótulos estadunidenses). Amargor intenso não significa que a cerveja precisa descer como se fosse um gato agarrando as unhas na sua garganta. Mas parece que só eu me incomodo com isso (afinal de contas, quem é “macho” não tem medo de cerveja amarga e nem de lutar sem camisa com ursos selvagens), então tomei a resolução de simplesmente dizer que não gosto de IPAs. Pronto, assim não preciso ficar explicando.

Fonte: gastrolandia.uol.com.br
Três IPAs brasileiras (além da já citada Lost in Translation) me chamaram a atenção neste ano. Vamos por ordem crescente de teor alcoólico. A primeira delas, sobre a qual já falei aqui neste blog, é a Wäls, Session! Citra IPA, que, ao meu ver, condensou e fechou com chave de ouro os esforços da Wäls em produzir estilos americanos com a competência que eles exibem nos estilos belgas. Trata-se de uma IPA leve, de proposta “session” (para ser bebida em grande quantidade) e virtuosamente bem executada. O perfume do lúpulo Citra é vívido e marcante, com muito herbal fresco (cidreira, capim recém-cortado e pinheiro), algo floral de lavanda e um frutado-cítrico trazendo lichia, limão, maracujá e um toque petroláceo muito interessante. Lembra bastante o perfil de alguns vinhos brancos aromáticos, especialmente aqueles feitos com as castas Gewürtztraminer e Riesling. Na boca foi onde a Wäls conseguiu imprimir um diferencial “session” a esta IPA: ela abre com uma acidez atrevida e refrescante, mostra o amargor típico do estilo e termina num final muito limpo, neutro, de baixa mineralização, em que o amargor persiste mais na boca do que na garganta, implorando goles largos e profusos. Corpo muito leve e aguado, num bom sentido. Alia o frescor de uma IPA com a sensação de refrescância de uma Bohemian pilsner. Bela receita dos irmãos Carneiro!

Fonte: www.krugerbier.com.br
A segunda IPA que chamou a minha atenção em 2014 foi a Therezópolis Jade. Quem mais, no mercado brasileiro, oferece uma IPA americana de boa explosão aromática, amargor intenso e que custa na faixa dos R$ 10 pela garrafa de 600ml? No RJ é ainda mais barata, diga-se de passagem. Seu aroma lupulado é bem frutado e convidativamente tropical, com muita mousse de maracujá, goiabada e doce de abóbora, além de capim cidreira, lavanda e mel. Tudo com um envolvente toque amanteigado. Com o tempo, vai aparecendo uma nota de capim seco desagradável, mas ela nunca chega a perder completamente o frescor lupulado (ao contrário de várias das suas concorrentes). Na boca, entra com boa doçura, traz um final bem amargo e deixa na boca um residual em que amargor e doçura se equilibram. Ela é mais uma daquelas IPAs tipicamente brasileiras, em que a doçura do malte é usada para tornar a cerveja mais festiva e indulgente – o que não tem nada de errado, diga-se de passagem. O amargor não é inteiramente limpo, mas a doçura dá conta de equilibrar e disfarçar suficientemente bem o caráter rascante do lúpulo. O corpo é mediano e a textura é acetinada, dando sensação de saciedade e gulodice. A verdade é que ela dá uma surra em muita IPA artesanal brasileira e custa menos da metade. Virou habitué na minha geladeira.

Fonte: brejada.com
Mas às vezes a gente está disposto a gastar mais por uma cerveja incrível e redondinha. E 2014 trouxe uma IPA assim: a lendária Serra de Três Pontas Cafuza Imperial India Black Ale, que finalmente saiu das panelas e ganhou versão comercial produzida nas instalações da cervejaria Invicta. Confesso que não entendi direito a história da associação entre a Serra de Três Pontas, a Prima Satt e a Noturna: as três mantêm os nomes separados como três “brands”, mas se associaram para lançar os produtos como uma espécie de “holding” cigano. Aparentemente, esta é da Serra de Três Pontas. Uma black IPA robusta, em escala imperial com seus respeitáveis 8.5% ABV, de execução impecável. O perfil lupulado é fresco, vívido e muito complexo, trazendo uma tonelada de erva cidreira, manga madura, casca de goiaba, uva verde, grapefruit, hortelã e lavanda doce. Dá tanta vontade de ficar cheirando que você quase se esquece de levá-la à boca. Quase. Na boca, são os sabores do malte torrado que ganham a frente: café expresso, cinzas e chocolate amargo lhe dão um perfil torrado bem definido. Ótimo equilíbrio entre lúpulo e torrefação, sem que um ofusque o outro (o que eu acho que é o ideal para uma black IPA). O corpo é robusto, pesadão, cremoso e aveludado, muito mais encorpada do que o padrão para o estilo, quase na fronteira com uma imperial stout mais lupulada. O longo retrogosto traz um amargor limpo, mineral e oleoso, com doçura na medida precisa para equilibrar sem enjoar. A R$ 20 pela garrafinha caçulinha, o preço não é o mais convidativo, mas, levando em conta que tem um monte de artesanal xexelenta custando R$ 15 pela caçulinha, a Cafuza é um negócio muito mais vantajoso.

Fonte: www.ocontadordecervejas.com.br
Deixei para o final a cereja do bolo (e não é daquelas feitas de chuchu!). Em 2014, uma cervejaria realmente se destacou por apresentar um produto de proposta séria e ousada, com um padrão de qualidade até então inexistente no mercado nacional, e que realmente estabeleceu um novo patamar para seus concorrentes. Falo da paranaense Bodebrown e da sua fantástica linha Wood-Aged Series. A ideia da linha é apresentar cervejas com perfil de guarda, envelhecidas em barris de madeira, e com potencial para pelo menos 10 anos de envelhecimento em adega. O primeiro rótulo da linha chegou ao mercado este ano com o prolixo título de Bodebrown Double Perigosa Wood-Aged Series2014 Cabernet Sauvignon. Trata-se de uma cerveja de teor alcoólico extremo (15.1% ABV), para o qual foi necessária uma longa fermentação de 4 meses (a maioria das cervejas fermenta em menos de uma semana). Seguiu-se a isso uma maturação de mais 9 meses em barris anteriormente usados para a produção de vinhos gaúchos com a uva Cabernet Sauvignon. Cerveja feita com seriedade, sem subestimar o consumidor. Esta não é uma wood-aged ordinária que maturou durante 30 dias em chips de carvalho e é vendida como se fosse a última bolacha do pacote. É maturação em madeira encarada com seriedade. O resultado é evidente. A madeira é suculenta e bem-integrada ao perfil de maltes, resultando em uma explosão de marrom-glacê, castanhas portuguesas, baunilha, cedro e coco. Muitas frutas doces, com destaque para frutas vermelhas (framboesa), provavelmente acentuada pelos resíduos do vinho no barril, tâmaras e ameixas. Pimenta-do-Reino para quebrar tanta doçura. E um encantador perfil de evolução que ainda vai se aprofundar: couro curtido, molho de tomate e vinho do Porto. É isso o que acontece quando se leva a maturação em madeira a sério. Na boca, é uma explosão indulgente e envolvente de doçura, com um amargor mediano ao fundo e um agradável aquecimento alcoólico que lhe dá ares de licor ou digestivo. Corpo intenso, cremoso, como de licor mesmo. Vai melhorar muito com a guarda, mas já está pronta para beber. Uma cerveja de outro patamar. Definitivamente, a Bodebrown saiu na frente na corrida para produzir cervejas envelhecidas em madeira de altíssima qualidade no Brasil. A partir de agora, as cervejarias brasileiras vão ter trabalho para se destacar com seus rótulos envelhecidos em madeira. E o preço (R$ 30 pela caçulinha) é menor do que o de outras concorrentes produzidas com muito menos competência e empenho. A venda foi feita apenas pelo site, em sistema en primeur (pré-venda) e esgotou antes mesmo de a cerveja ficar pronta. Quer uma dica? Quando a safra 2015 for anunciada, não perca a oportunidade de reservar três garrafinhas, beber uma e deixar as outras duas envelhecendo na adega.

Enfim, é isso! Sete dicas para todos os gostos e bolsos resumindo o que há de melhor dos lançamentos do ano que passaram pelo meu copo. Felizmente, o mercado cresceu o suficiente para atingir um determinado tamanho em que é impossível para quem não é um profissional do setor conseguir provar todos os lançamentos. Isso significa que tem um montão de coisas que foram lançadas em 2014 e que eu não provei, então esta lista reflete as escolhas que fiz como consumidor. Mas acho que já oferecem um itinerário para conhecer um pouco do que chegou ao consumidor brasileiro de cervejas neste ano que se encerra!


Boas festas e um feliz 2015!

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

"Preço real" e preço por dose

Lembro-me de ter lido, há algum tempo, um artigo interessante no blog O Mosto Crítico, a respeito do “preço real” da cerveja. Para o autor, a relação de custo-benefício de diferentes cervejas artesanais não podia ser avaliada e comparada a partir do preço unitário da garrafa, mas teria de ser calculada a partir do preço do litro. Diante da enorme variedade de envases (as garrafas variam desde 250ml até mais de 1 litro), essa era a única forma de realmente comparar o preço das cervejas que consumimos.

Fonte: tvcominternet.com.br
Parece perfeitamente sensato, mas sabemos que existem fatores que influenciam nessa consideração. Muitas vezes compramos uma cerveja apenas para degustar, para provar, e não necessariamente estamos interessados em beber uma grande quantidade. Nessas ocasiões, uma garrafa de 375ml por R$ 35 pode parecer mais vantajosa ao consumidor do que uma garrafa de 750ml por R$ 65, embora isso contrarie o princípio do preço por litro. Mas há outro fator que interfere nessa conta e que tem ocupado minha atenção há algum tempo: a maneira como a concentração de álcool da cerveja influencia esse cálculo.

“Custo-benefício-álcool”

A expressão acima não foi inventada por mim – eu apenas reproduzo o que ouvi de outro amigo cervejeiro. Ela leva em conta o fato de que nós bebemos cerveja, em parte, para consumir álcool. Claro que a cerveja tem propriedades sensoriais vastíssimas, tem sabores, tem aromas, tem texturas. Claro que a cerveja é uma bebida que agrada ao paladar. Claro que ela oferece maravilhosas oportunidades de harmonização com alimentos e pode valorizar uma boa refeição. Mas é difícil negar que um dos motivos que nos leva a beber cerveja é a sensação do leve entorpecimento alcoólico que ela provoca.

Mais que isso: a quantidade de álcool de uma cerveja é um fator decisivo para determinar o volume que vamos consumir numa determinada ocasião. Não se diz que as chamadas “session beers”, cervejas de mais baixo teor alcoólico, são idealizadas para serem bebidas em grandes quantidades? Isso apenas reflete o fato, conhecido para qualquer consumidor habitual, de que uma cerveja muito alcoólica nos faz “pisar no freio” e beber mais devagar, o que, consequentemente, nos leva a beber menos ao longo do mesmo espaço de tempo em que beberíamos uma quantidade muito maior de uma cerveja pouco alcoólica. Na real, se formos calcular a quantidade de álcool ingerida, veremos que 4 garrafinhas de uma witbier equivalem, mais ou menos, a duas garrafinhas de uma Russian imperial stout. É razoável supor que iremos beber mais ou menos o dobro de garrafas de uma witbier para nos satisfazermos, em relação a uma imperial stout.

Se arrisca a comprar várias caixas da última
session IPA do mercado para o churras?
Fonte: sp.quebarato.com.br
Nesse sentido, o “custo-benefício-álcool” nada mais é do que uma expressão do bom-senso do consumidor. Ele é uma medida do quanto vamos gastar de dinheiro para consumir uma determinada quantidade de álcool, e não apenas um determinado volume de cerveja. Ele também reflete o fato de que as cervejas possuem variações muito significativas de teor alcoólico, que podem ir desde menos de 4% até mais de 12% – observe que o valor maior equivale a 300% do menor. Não estamos falando de variações negligenciáveis, mas de algo que vai nos fazer modificar a maneira como bebemos – e, sobretudo, a quantidade de que precisaremos para nos satisfazer.

A dose mínima

Um dos motivos que me fez pensar nisso é o hábito, que tenho tentado manter, de consumir álcool de forma constante e moderada, a fim de aproveitar os benefícios que ele pode trazer à saúde. Há muita controvérsia científica e médica a respeito, mas diversos estudos mostram que o consumo moderado de bebidas alcoólicas pode trazer benefícios à saúde. O álcool auxilia na manutenção do índice do chamado “bom colesterol” e está associada a uma diminuição nos riscos de doenças cardiovasculares. Além disso, a composição específica da cerveja pode trazer benefícios que se estendem ao aumento das vitaminas do complexo B e de minerais de difícil absorção (como o silício) e à prevenção da diabetes. A bebida alcoólica em questão não precisa necessariamente ser a cerveja. Há toda uma tradição de estudos que associam também o vinho a benefícios de saúde, sobretudo pela propriedade antioxidante da substância conhecida como resveratrol.

Contudo, o consumo deve ser moderado. O que significa isso? A quantidade indicada é influenciada por diversos fatores, incluindo tendências genéticas, estilos de vida e hábitos alimentares – mas, de forma geral, considera-se benéfico o consumo de uma quantidade diária de cerveja equivalente a uma long neck (para mulheres, já que a quantidade aumenta um pouco para homens). No caso do vinho, diferentes fontes indicam uma quantidade que varia entre 125 ml e a genérica medida de “duas taças” (o que, como sabemos, varia de acordo com o tamanho da taça que você está usando, podendo ir desde 200 até 400 ml).

A recompensa por um dia de trabalho honesto!
Fonte: www.folhavitoria.com.br
Vou tentar estabelecer uma média grosseira para compor aquilo que vou chamar de “dose mínima”, que equivale mais ou menos à dose diária recomendada para uma mulher. A quantidade de álcool contida nessa “dose mínima” gira em torno dos 20 ml de álcool. Isso dá um pouco mais que uma latinha de uma cerveja de 5% de álcool, e mais ou menos a quantidade contida em uma taça de 150 ml de um vinho de teor alcoólico médio-alto (13,5%). Essa será a nossa quantidade-padrão que vou usar para calcular o “custo-benefício-álcool”.

Quanto custa?

Quando comecei a consumir a quantidade recomendada pelos médicos de bebidas alcoólicas, imediatamente me assustei com o impacto que esse hábito poderia ter no meu orçamento, que poderia facilmente ultrapassar os R$ 200 por mês. Como sou apreciador tanto de cerveja como de vinhos, imediatamente me fiz a seguinte pergunta: fica mais barato beber vinho ou cerveja?

A resposta imediata a essa pergunta nos leva a optar quase sem pensar pela cerveja. Estamos acostumados a pensar na cerveja como uma bebida popular e barata, em comparação com o vinho, mais elitizado e caro. Afinal de contas, mesmo que bebamos cervejas artesanais, é fácil encontrar cervejas com preço entre R$ 10 e R$ 15, mas é difícil encontrar vinho por menos de R$ 20-25. Mas, pondo na ponta do lápis, comecei a ver que não era bem assim. E isso tem tudo a ver com toda essa coisa da “dose mínima”.

Uma long neck de cerveja equivale mais ou menos à “dose mínima”. Contudo, uma garrafa de vinho pode render 4 ou até 5 “doses mínimas”. E de fato o vinho oferece a possibilidade de guardarmos uma garrafa já aberta (tomando os devidos cuidados e precauções), se quisermos dividir as doses entre vários dias. Assim, uma garrafa de vinho de R$ 25 rende por 4 ou 5 dias, enquanto uma garrafa de cerveja aberta deve ser consumida imediatamente.

Mais que isso: ao ver o preço das cervejas numa gôndola de supermercado ou num cardápio de bar, comecei a me perguntar quanto eu iria gastar para beber, digamos, três ou quatro “doses mínimas” – que é uma quantidade que eu posso tranquilamente consumir numa sessão de bar animada no final de semana. Quanto isso me custaria se eu optasse pela Colorado Índica? E pela Evil Twin Low Life? E pela Chimay Bleue? E por aí vamos.

Montei a tabela abaixo para ajudar nesse cálculo. Ela indica o preço que custa, para cada rótulo, uma “dose mínima” (e indica o teor alcóolico de cada cerveja). Note que, em muitos casos, isso é menos do que uma garrafinha, de modo que você não pode comprar apenas essa quantidade. Mas é um valor de referência útil para multiplicar e calcular o consumo de uma noite. Escolhi propositadamente alguns rótulos que surgem na discussão quando o assunto é “custo-benefício”, e outros que surpreendem quando calculamos dessa forma. Considerei o menor preço a que já consegui encontrar cada cerveja aqui em São Paulo ou em lojas online, o que significa que algumas foram calculadas em cima do preço de supermercado, enquanto outras o foram em cima do preço de empórios e e-commerce (que é mais alto).

Cerveja
ABV
“Dose mínima”
Heineken Lager Beer
5.0%
R$ 2,93
Eisenbahn Weizenbock
8.0%
R$ 4,22
Colorado Índica
7.0%
R$ 5,71
Eisenbahn 5 Anos
5.4%
R$ 6,50
Colorado Vixnu
9.5%
R$ 7,36
Invicta Imperial Stout
9.0%
R$ 8,89
Wäls Petroleum
12.0%
R$ 8,89
Bamberg Helles
5.2%
R$ 9,61
Brooklyn Lager
5,2%
R$ 9,75
Way Beer American Pale Ale
5.2%
R$ 9,93
Duvel
8.5%
R$ 10,70
Chimay Bleue
9.0%
R$ 12,12
Wäls, Session! Citra IPA
3.9%
R$ 14,53
Brewdog Punk IPA
6.0%
R$ 16,90
Tupiniquim/Evil Twin Lost in Translation
6.5%
R$ 17,87
Boon Geuze Mariage Parfait
8.0%
R$ 20,00
Mikkeller k:rlek
5,5%
R$ 25,60
Deus Brut des Flandres
11,5%
R$ 31,30
Harviestoun Ola Dubh 18
8,0%
R$ 37,88

Para quem tiver curiosidade, a fórmula para se chegar a esse preço é a seguinte:

Preço da dose mínima     =              20 x preço unitário            

                                               Volume da garrafa x teor alcoólico

A constante “20” foi escolhida por equivaler à dose mínima de álcool que determinamos anteriormente, em ml. Se você quiser calcular uma quantidade diferente de álcool, é só substituir o “20” pelo número de mililitros de álcool que você quer calcular. O preço unitário é o preço pago pela garrafa. O volume da garrafa foi calculado em ml. Para o teor alcoólico, não se esqueça de que ele é calculado em porcentagem – portanto, se uma cerveja tem 5,2% ABV, o número a ser usado na fórmula será 0,052.

Alguns valores da tabela são previsíveis, outros surpreendem. A Heineken foi colocada como “cerveja de referência” por ser a cerveja comercial de preferência de boa parte dos apreciadores de artesanais (embora não seja a minha). O melhor custo-benefício do mercado artesanal, se considerarmos a quantidade de álcool, fica com a minha querida Eisenbahn Weizenbock, cuja dose mínima custa R$ 4,22, apenas R$ 1,29 acima da Heineken. Estamos acostumados a pensar que as Eisenbahns são todas igualmente baratas, mas quando o quesito ABV entra em cena, vemos que não é bem assim: a Eisenbahn 5 Anos, de 5,4% ABV, já possui preço de R$ 6,50 pela dose mínima. Mais caro que uma Colorado Índica.

Cervejas fortes normalmente tidas como caras, como a Wäls Petroleum, mostram-se mais baratas neste cálculo do que outros rótulos normalmente apontados como possuindo bom custo-benefício, como Bamberg Helles, Brooklyn Lager ou Way APA. E belgas fortes como Duvel ou Chimay mostram-se decididamente mais baratas do que a média das IPAs importadas (representadas aqui pela Brewdog Punk IPA), e apenas marginalmente mais caras do que várias cervejas tidas como rótulos de bom preço. Uma cerveja como a Tupiniquim/Evil Twin Lost in Translation representa uma tendência do mercado nacional de cobrar caro por garrafas pequenas, e acaba saindo mais cara do que as importadas. A Deus, que leva fama de ser ostensivamente cara, mostrou-se mais barata do que as barrel-aged importadas que têm chegado ao mercado (representadas pela Ola Dubh 18).

Vinho ou cerveja

Fonte: colunasaboresaber.net
Volto a uma questão levantada mais acima. Quando comecei a beber a “dose mínima” diariamente, vi que o papo de que beber cerveja é mais barato do que beber vinho é balela, em vários sentidos. Um público de cervejas artesanais está acostumado a achar barato pagar em torno de R$ 6 pela “dose mínima”, o que representa o valor de uma Eisenbahn ou Colorado Índica, e aceita tranquilamente pagar entre R$ 15 e R$ 20 pela dose mínima de cervejas importadas ou artesanais nacionais de pequeno porte.

Ora, se colocamos na roda um vinho de preço baixo, mas honesto, em torno dos R$ 25, vemos que sua dose diária mínima gira em torno de R$ 4,94. Só a Eisenbahn Weizenbock é mais barata do que isso. Mas vou ainda mais longe. Você acha que um vinho de R$ 50 é caro? Saiba que a dose mínima desse vinho custa em torno de R$ 9,88, na mesma faixa de uma Brooklyn ou Way. E um vinho de R$100? Esse é um preço que decididamente assusta se você não é um enófilo. Sua dose mínima fica em torno de R$ 19,75 – apenas R$ 3 a mais do que uma Brewdog Punk IPA, e menos do que se paga por muitas Mikkeller.


E aí, assustou? :-)