terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Zwarte Piet: (mais) notas sobre o racismo em rótulos de cerveja

É natal aqui no O Cru e o Maltado! E, por mais estranho que isso vá soar, não poderia haver época mais adequada para continuarmos nossa conversa sobre estereótipos imperialistas e racistas em rótulos de cerveja. Na última postagem, contei aos meus leitores a “linda história de amor” de John Stedman e de Joana, e argumentei que o rótulo inicialmente proposto pela cervejaria Evil Twin para sua Imperial Brazilian Wax reiterava e corroborava estereótipos ligados à exploração sexual de mulheres negras por europeus nos trópicos. Papo brabo. Mas agora quero mostrar um exemplo contrário, evidenciando como uma outra cervejaria europeia discutiu com ironia e humor a cultura do racismo e do imperialismo em um rótulo de cerveja de inspiração natalina. Estou falando da cervejaria belga Brasserie de la Senne e de sua Belgian dark strong ale chamada Zwarte Piet.

Mas não vamos nos apressar e pôr os carros na frente dos bois. Esse rótulo é uma espécie de “piada interna” difícil de entender para nós, brasileiros. Para compreendê-lo, primeiro precisaremos saber um pouquinho sobre a história e o folclore natalinos da Holanda e da Bélgica.

São Nicolau e o “Pedro Preto”

Ícone russo de São Nicolau de Mira, 
do século XIX.
Fonte: commons.wikimedia.org
Você já deve ter ouvido falar que o Papai Noel, o nosso conhecido “bom velhinho” natalino, tem sua origem na figura de um santo católico chamado São Nicolau de Mira. Bom, se nunca tinha ouvido falar nisso, ouviu agora! Nicolau foi bispo da cidade de Mira, na Turquia, durante o século IV da era cristã, e a ele se atribuem diversos milagres. Entre suas pias obras, destacam-se a assistência e a educação de crianças pobres, o que veio a lhe render a fama de um benfeitor de crianças. São Nicolau tornou-se muito celebrado como patrono da igreja na Rússia e na Noruega, onde cresceu a veneração ao santo. O aniversário de sua morte é comemorado em 6 de dezembro, data próxima ao natal, o que facilitou a identificação do “bom velhinho” com a festa do nascimento de Cristo. Seu nome (“Saint Nikolaos”) foi sofrendo uma série de corruptelas até assumir a forma, em holandês, de “Sinterklaas”, de onde surgiu “Santa Claus”, o Papai Noel.

Ocorre que, na Holanda e na Bélgica, o bom velhinho não é comemorado na data do natal (25 de dezembro). Pelo contrário, existe uma grande celebração popular do santo, conhecido pelo nome holandês de Sinterklaas, no dia 6 de dezembro, data de sua morte. Diz a lenda natalina do “nosso” Papai Noel (como devem saber todos os que um dia tiveram infância) que ele entrega presentes para as crianças do mundo inteiro auxiliado por suas renas mágicas e por um montão de “elfos” ou “duendes”. Pois bem: no folclore flamengo e holandês, a lenda é um pouquinho diferente. Lá, Sinterklaas tem um ajudante negro chamado “Zwarte Piet” – ou, traduzindo para o português, “Pedro Preto”.

Ilustração de Zwarte Piet como criado 
doméstico de São Nicolau, do 
livro de Jan Schenkman (1850). Aqui, 
ele é negro e veste roupas mouriscas.
Fonte: de.wikipedia.org
A figura do Zwarte Piet surgiu durante o século XIX, quando ele era retratado como um serviçal (vestindo roupas típicas de criados medievais) de pele escura, alternativamente mouro ou negro. Suas atribuições não se limitavam a ser uma espécie de auxiliar de Papai Noel. Zwarte Piet também era uma figura meio assustadora, que, no lugar de dar presentes, punia as crianças que não haviam se comportado bem durante o ano. Como se fosse o “lado B” do bom velhinho: se você se comportou ao longo do ano, ganha presentes de Sinterklaas. Se não se comportou, apanha do Zwarte Piet. Ao longo do século XX, essa imagem “malévola” do Zwarte Piet foi sendo gradualmente atenuada: hoje em dia, na maior parte dos festivais de Sinterklaas, o Zwarte Piet funciona como uma espécie de ajudante trapalhão que, invariavelmente, acaba sem querer fazendo alguma besteira com os presentes e põe em risco o natal das crianças. E aí sucedem-se mil trapalhadas e é preciso que as pessoas acorram para restabelecer a ordem e salvar o natal.

Não é fortuito que o Zwarte Piet tenha surgido no folclore flamengo e holandês bem no século XIX. Essa foi justamente a época em que, no pensamento europeu, começaram a ser desenvolvidas várias teorias pseudocientíficas que supostamente “provavam” a inferioridade congênita da raça negra, em comparação com os brancos. Também foi a época em que, apoiadas nessa crença espúria de que os negros seriam naturalmente inferiores e mais selvagens, as grandes potências europeias invadiram o continente africano e impuseram uma brutal dominação colonial que durou até depois da II Guerra Mundial. O Zwarte Piet, como um serviçal mau ou abobalhado, era perfeitamente condizente com essas ideias racistas que dominavam a cultura do período. Ele era um subalterno da autoridade de um bondoso e sábio senhor branco em posição superior (São Nicolau) e uma figura de capacidades limitadas e moral duvidosa, com um gosto pela violência. Na Bélgica e na Holanda, até hoje o Zwarte Piet é uma figura central das celebrações públicas e festejos do Sinterklaas, em 6 de dezembro. Multidões de belgas e holandeses saem às ruas e muitos se vestem como Zwarte Piet, pintando os rostos de preto, usando batom vermelho para imitar lábios grossos de negro e usando uma peruca afro e vestes de serviçal.

Sim, é assustador. E um pouco constrangedor mesmo.
Fonte: zwartepiet.nl
Mas nós estamos no século XXI, e a cultura do racismo começou a ser sistematicamente questionada em todos os lugares. Nas últimas décadas, a Europa se encheu de imigrantes de suas ex-colônias (incluindo ex-colonos negros do Congo e Caribe, no caso da Bélgica e da Holanda), que se sentiram bastante incomodados com a representação do Zwarte Piet. A partir dos anos 1970, mais ou menos, os protestos foram recorrentes. As coisas esquentaram nos últimos anos: em 2011, dois manifestantes negros contrários ao festejo foram presos pela polícia. Já em 2013, Verene Shepherd, eminente acadêmica jamaicana estudiosa da escravidão e representante da ONU, manifestou-se a favor do fim do costume de representar o Zwarte Piet nos festejos públicos de Sinterklaas. A manifestação de Shepherd gerou forte reação contrária da parte de tradicionalistas da Holanda e Bélgica. Outros grupos desses dois países, porém, começaram a incluir nos festejos de Sinterklaas figuras de Zwarte Piet com a pele verde e azul, em adição ao negro, como forma de mitigar o caráter racista da figura. A Bélgica e a Holanda começaram a repensar uma antiga tradição folclórica que todo mundo, até então, simplesmente reproduzia sem pensar muito a respeito do seu significado.

A questão ainda permanece em aberto, mas hoje é muito mais difícil ocultar ou ignorar o teor racista dessa antiga tradição folclórica dos belgas e holandeses. E foi justamente no meio de toda essa confusão que aterrissou o rótulo que quero discutir hoje.

Brasserie de la Senne e sua “Zwarte Piet”

A Brasserie de la Senne é uma das cervejarias belga da “nova geração”. Fundada em 2006, atuou como cervejaria cigana por alguns anos, produzindo suas cervejas em outras fábricas, até conseguir estabelecer sua própria estrutura produtiva em Bruxelas em 2010. O nome deriva do rio Senne, que banha a cidade. Seu portfolio inclui alguns produtos em estilos tradicionais belgas e outros em estilos característicos da nova escola mundial. A “Zwarte Piet” é uma Belgian dark strong ale. A mesma receita já era produzida pela cervejaria sob o nome de Equinox, mas foi rebatizada como Zwarte Piet em 2012 – bem no meio da rebordosa em torno dos protestos antirracistas contra o Sinterklaas. O nome, portanto, era altamente provocativo.

A partir desse nome, esperaríamos que o rótulo trouxesse algum tipo de variação estilizada (como é comum na identidade visual da marca) do ajudante negro do Papai Noel. Mas não é nada disso que encontramos. Vejamos:

 
"Cadê o natal?"
Fonte: beerpulse.com
Um negro vestido com as roupas típicas de um explorador europeu na África, carregando um fuzil e fazendo gesto de quem está observando o terreno. Sua boca é de um vermelho vivo, lembrando os lábios grossos pintados de batom vermelho das pessoas (brancas) que se fantasiam de Zwarte Piet no 6 de dezembro. À sua frente, como se fosse um batedor, vemos uma galinha. Em segundo plano, uma fera espreita incógnita, talvez pronta para devorar os dois incautos exploradores. O cenário lembra uma vegetação tropical, mas ao fundo vemos um horizonte urbano e, bem à esquerda, é possível divisar o Atomium, um dos principais pontos turísticos de Bruxelas. Mas que diabos é isso, afinal de contas? Não tem nada de Zwarte Piet, nem de Sinterklaas ou de natal aqui! Pois é. Os caras da Brasserie de la Senne ficaram loucos? Ou será que o rótulo é só uma viagem sem nenhum sentido mesmo? Comparemos a ilustração do rótulo com a imagem abaixo, que é a capa de uma revista em quadrinhos de 1931, chamada As aventuras de Tintim no Congo:

Fonte: forum.touteslesbieres.fr
Agora vemos claramente de onde saiu a inspiração para o rótulo da Zwarte Piet. A referência é inequívoca – até o bizarro formato das meias de Tintim é reproduzido no explorador do rótulo da Brasserie de la Senne. Para quem nunca ouviu falar, Tintim é um herói de quadrinhos extremamente popular na Bélgica – país que é conhecido tanto pelos seus quadrinhos quanto por suas cervejas. A Brasserie de la Senne, portanto, está citando no rótulo dois elementos que são motivo de orgulho para os belgas: um de seus mais famosos personagens de ficção (Tintim) e uma de suas maiores festas folclóricas (o Sinterklaas com seu Zwarte Piet). Mas será que o rótulo pode ser lido como uma homenagem a essas duas coisas? No meu ponto de vista, decididamente não. Como entender então essa bizarra dupla inspiração da Brasserie de la Senne?

Na verdade, é mais produtivo encarar o rótulo como uma ironia, ou até uma crítica a essas duas tradições belgas. Vejamos. Na capa original do quadrinho, Tintim era apresentado como um intrépido explorador que, apenas com a ajuda de seu fiel cãozinho Milu, partia para uma perigosa viagem de descobrimento pelo Congo. Eram os anos 1930. Na época, o Congo ainda era uma colônia belga. Aliás, o regime colonial belga no Congo ficou nas páginas da história como um dos mais brutais e violentos regimes de dominação colonial do continente africano. As populações nativas eram forçadas a trabalhar na extração de produtos agrícolas de exportação (principalmente a borracha) e na construção de linhas férreas no meio da mata, em condições de segurança e saúde abomináveis. Morriam às pencas. Diz uma lenda popular no Congo que, durante a construção da estrada de ferro que liga Matadi a Kinshasa, um africano morreu por cada dormente de madeira instalado. Alguns estudiosos especulam que as condições de saúde da população tornaram-se tão frágeis que isso criou condições que facilitaram o surgimento do vírus do HIV – que talvez nunca tivesse se desenvolvido e propagado em uma população saudável. (E você que achava que os belgas eram todos uns monges pacíficos que passavam o dia fazendo cerveja, hein?) A brutalidade do regime colonial belga no Congo foi denunciada pelo escritor anglo-polonês Joseph Conrad em seu clássico livro O coração das trevas – o mesmo que serviu de inspiração para o filme Apocalipse Now. Pois é: originalmente, o apocalipse era no Congo, e não no Vietnã.

Voltemos a Tintim. Suas aventuras no Congo, em plena época de colonização belga, são a marca da presença colonial belga na região e da violência do regime de dominação. No entanto, Tintim parece caminhar garbosamente (a roupa ainda estava limpinha!) por um terreno totalmente desabitado, povoado apenas por bestas selvagens. Nenhum traço dos milhares de nativos negros oprimidos pelo regime colonial. Era costume, nos relatos de viagem do século XIX, descrever os territórios africanos “descobertos” pelos viajantes-aventureiros europeus como se eles fossem “vazios”, apenas esperando que os brancos chegassem, “descobrissem-nos” e tomassem posse deles. Na verdade, sabemos pelos documentos que esses exploradores sempre andavam em caravanas organizadas pelos nativos, que os levavam a lugares já bem conhecidos em troca de mercadorias – ou, em casos extremos, sob ameaça de represália militar. Essas terras estavam muito longe de serem desconhecidas e mesmo desabitadas, mas era assim que elas eram representadas para o público leitor europeu ávido pelas aventuras de grandes exploradores como David Livingstone ou Richard Burton. O continente era descrito como uma grande “vazio humano” disponível para a ocupação europeia. Tintim era o substituto ficcional, no século XX, desses lendários aventureiros reais que percorreram a África no século anterior.

O missionário inglês David Livingstone 
em um momento “thug life”. Era assim 
que um europeu viajava pela África 
com estilo!
Fonte: www.scalarchives.it/
Para a crítica literária Mary Louise Pratt (que analisou magistralmente esses relatos de viagem oitocentistas em seu livro Os olhos do império), a atitude mantida por esses viajantes-exploradores era a de possuir com o olhar: como se, ao ver uma paisagem, eles pudessem legitimamente tomá-la como possessão para seus países. Mais ou menos como quando Pedro Álvares Cabral declarou a “descoberta” do Brasil e mandou Pero Vaz de Caminha descrever a terra em sua célebre carta como forma de declarar a posse portuguesa de um território que, na verdade, já era densamente povoado por populações indígenas. Mary Louise Pratt descreveu esse olhar agressivamente masculino e possuidor, comum aos exploradores europeus, como uma atitude do “monarca-de-tudo-o-que-vejo”. Pois bem: eis aqui Tintim, em pleno Congo belga, com a mão esquerda cobrindo os olhos em gesto de observação da paisagem, como um autêntico “monarca-de-tudo-o-que-vejo” europeu em terras africanas. Ele carrega um rifle, sim, mas sua verdadeira arma para dominar a terra é o olhar, já que, pela ilustração, parece nem haver pessoas contra as quais seria necessário lutar para conquistar a região (o que, obviamente, nunca foi verdade no Congo belga). A capa d’As aventuras de Tintim no Congo, portanto, pode ser interpretada como uma saudosa homenagem a esses grandes viajantes representantes do imperialismo europeu na África. Olhando a partir do século XXI (muito depois do fim das colônias europeias na África), é um tributo a uma história muito feia de opressão e violência.

Relações perigosas

Mas o que diabos São Nicolau e o “Pedro Preto” têm a ver com Tintim, à parte o fato de ambos serem elementos tipicamente associados à cultura belga? Quando uma cervejaria batiza sua cerveja de Zwarte Piet mas, em vez do folclórico ajudante negro do Papai Noel, ilustra o rótulo com uma alusão ao Tintim, está querendo que pensemos em qual seria a semelhança entre essas duas figuras. O que torna possível “trocar” o Zwarte Piet pelo Tintim no Congo? Ora, a característica comum a ambos é sua associação com um histórico e uma sensibilidade associados ao racismo e ao imperialismo. Assim como o Zwarte Piet expressa uma visão negativa dos negros, o Tintim no Congo traduz as aspirações imperialistas belgas que pressupunham, também, a inferioridade dos negros e sua dominação pelos exploradores brancos.

O que o rótulo faz, no entanto, não é reforçar ou endossar essa sensibilidade, mas invertê-la de forma irônica e paródica. Se o Zwarte Piet do folclore natalino é um branco fantasiado de negro fantasiado de serviçal, o Zwarte Piet da cervejaria é um negro igualmente fantasiado, mas desta vez de dominador colonial. Os papéis foram trocados. Seu olhar abobalhado é tanto uma paródia da suposta “inocência” do explorador europeu (o “monarca-de-tudo-o-que-vejo” que não dispara um tiro e só observa a paisagem) quanto uma referência ao aspecto parvo e atrapalhado do Zwarte Piet nos festejos belgas de natal. No lugar de Milu, o fiel cão de Tintim, vemos uma galinha, animal normalmente associado a populações pobres africanas (em contraste com o aristocrático cão de caça do ariano Tintim). O animal feroz ao fundo se mantém, mas, no lugar de um leopardo, aparece apenas como um vulto negro indefinido – será o bicho-papão do colonizador branco pronto para devorar os frutos do trabalho, a saúde e a vida dos súditos coloniais?

Reconhece?
Fonte: www.independent.co.uk
O rótulo faz questão de nos dizer claramente que, a despeito da alusão à capa do Tintim, ele não está falando do Congo, mas sim da Bélgica. Como apontei, se prestarmos atenção ao cenário, conseguiremos notar ao fundo a silhueta do Atomium, um dos mais famosos pontos turísticos de Bruxelas. O cenário é a Europa moderna (dilacerada pelos protestos de e contra imigrantes negros), e não o Congo dos anos 1930. O rótulo do Zwarte Piet é um cutucão provocativo à cultura do racismo na Bélgica contemporânea. Em primeiro lugar, ele ironiza o hábito de pessoas brancas se fantasiarem como negras no Sinterklaas e mostra como essa proposta é descabida ao fazer o contrário: vestir um negro como um explorador branco na África, criando uma situação inversa e igualmente espúria. Mais do que isso, o rótulo junta dois elementos considerados centrais do orgulho nacional belga – o Sinterklaas e Tintim – e mostra como ambos são solidários com uma cultura de racismo e de exploração imperial na África. É um duro ataque, feito com humor inteligente, que tem o poder de conduzir os belgas a refletirem o quanto de sua cultura “típica” está baseada em atitudes racistas e em históricos muito pouco lisonjeiros de dominação imperial e discriminação racial.

Na postagem anterior, sobre o rótulo da Evil Twin Imperial Brazilian Wax, tentei demonstrar como uma cervejaria europeia reproduziu hábitos arraigados de pensamento com conotações imperialistas, machistas e racistas. O rótulo da Brasserie de la Senne Zwarte Piet, pelo contrário, oferece um revigorante contraponto, e mostra uma outra cervejaria – igualmente europeia, mas com uma atitude política totalmente diferente – disposta a desconstruir e ironizar esses hábitos de pensamento arraigadamente imperialistas e racistas de uma parte importante da cultura europeia. Alguns cervejeiros e consumidores brasileiros, incomodados com os protestos contra rótulos ideologicamente problemáticos como o Imperial Brazilian Wax, frequentemente se queixam de uma suposta “patrulha ideológica do politicamente correto”, e alegam que não se pode mais fazer alusão a nenhum grupo social subalterno e/ou marginalizado sem ser taxado de preconceituoso. E aí desfilam todo o rosário histriônico do saudosismo conservador sobre como “o nosso mundo está perdido” e sobre como “o politicamente correto acabou com o humor e a criatividade” das pessoas, e todo aquele blablabla que estamos carecas de saber.

Ora, o rótulo da Brasserie de la Senne Zwarte Piet é uma clara demonstração de que isso é uma enorme bobagem: a cervejaria mobilizou vários estereótipos delicados (para dizer o mínimo) com humor e inteligência, sem ser preconceituosa nem reforçar a discriminação. Muito pelo contrário, aliás: em tempos de polarização da opinião pública belga em torno dos festejos de Sinterklaas, a cervejaria lançou uma provocadora proposta para que os belgas repensassem sua cultura de discriminação. Basta saber onde você está mexendo e assumir uma atitude crítica e questionadora diante das babaquices que circulam por aí no nosso mundo. É perfeitamente possível ser bem humorado e espirituoso sem se escorar na muleta fácil de uma cultura que sempre ridicularizou as minorias. Façamos um brinde à Brasserie de la Senne e ao humor criativo!

A cerveja

Ué, mas e a cerveja? Como é a Zwarte Piet no copo? Um rótulo desses com certeza merece uma descrição sensorial! Como mencionei, a Zwarte Piet é uma Belgian dark strong ale, o mesmo estilo de tradicionalíssimas cervejas monásticas belgas. Nada mais adequado, aliás, para um rótulo que faz alusão ao folclore natalino do que um estilo desenvolvido pelos cervejeiros católicos. Mas é uma reinterpretação moderna do estilo, com lupulagem assertiva (tanto em aroma quanto em amargor), uma certa secura e com perfil de maltes um pouco mais torrado. Trata-se, portanto, de uma releitura moderna da tradição – muito adequada, aliás, para uma cervejaria do século XXI que não se limita a reproduzir as tradições belgas (como o Sinterklaas racista ou as cervejas de abadia), mas que inova criativamente a partir delas e nos oferece uma variação atual sobre o tema. Vejamos como ela se comporta no copo:

Ah, é, a cerveja!
Fonte: bieresbelges.skynetblogs.be
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 8.2%
Aparência: a coloração é típica do estilo, um marrom-escuro com reflexos em tom bordô, talvez um pouco mais escura do que o tradicional, com creme alto e de boa persistência.
Aroma: curioso e atípico para o estilo. No lugar do trio caramelo-frutas-especiarias que encontramos em outras Belgian dark strong ales, a Zwarte Piet apresenta um perfil de malte mais torrado (muito cacau em pó e um toque de café) e lupulagem bem perceptiva, lembrando variedades nobres (gerânios e ervas finas). Mamão e cravo dão o suave toque “belga” da receita, e nuances exóticas de amêndoas cruas, coco e cal/mineral vai se desenvolvendo, lembrando até cervejas com maturação em madeira. Com o tempo, esses elementos começam até a predominar, descaracterizando um pouco o estilo e roubando algo da complexidade da receita.
Paladar: inicialmente há um equilíbrio entre a doçura do malte e o amargor dos lúpulos, mas ela vai se tornando seca ao longo do gole e finaliza com amargor que predomina visivelmente sobre a doçura, o que é atípico para o estilo, conduzindo a um retrogosto intensamente amargo e seco com toques de ervas e café.
Sensação na boca: o aquecimento alcoólico é bem suave para seus 8.2% e o corpo é surpreendemente seco e leve para o estilo, sem o peso de outras Belgian dark strong ales, mas com uma textura acetinada bem agradável.

No cômputo geral, é uma releitura bastante moderna e experimental do estilo, com um toque lupulado característico da “nova escola” cervejeira mundial. Não tem o peso, nem a complexidade frutada e envolvente, nem a picância dos exemplares canônicos do estilo, perdendo em profundidade, mas traz alguns aromas exóticos e interessantes para compensar. (Clique aqui para ver a avaliação completa)


Mas, pensando bem, diante do rótulo, não poderíamos mesmo esperar que a Brasserie de la Senne se limitasse a reproduzir as características “tradicionais” do estilo, assim como se recusou a reproduzir o teor tradicionalmente racista dos festejos de natal belgas. Mais um brinde à inovação, ao bom humor e à modernidade!

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

De John Stedman ao Brazilian wax: gênero e raça no marketing cervejeiro

Faz algum tempo que eu não tinha condições de escrever aqui no blog. Culpa dos compromissos profissionais. Mas – vejam só! – foram esses mesmos compromissos que também me deram o mote e o assunto para esta matéria. É que uma das coisas que fiz nesses meses foi reler, para um seminário acadêmico, um livro chamado Os olhos do império, da crítica literária canadense Mary Louise Pratt. Trata-se de um magnífico estudo sobre relatos de viagens, e foi uma leitura que influenciou fortemente minha formação desde minha graduação em História, quando tive a oportunidade de lê-lo pela primeira vez.

A escrava Joana é a heroína desta matéria. 
E é a segunda mulher negra do século 
XVIII homenageada neste blog!
Fonte: en.wikipedia.org
O livro não fala sobre cerveja. Fala sobre viajantes, e fala inclusive sobre o lendário diplomata e agente secreto inglês Richard Francis Burton, que passou 7 anos na Índia britânica na década de 1840 e teve a rara oportunidade – para um ocidental – de se tornar um brâmane hindu. Por coincidência, o sobrenome de Burton era homônimo à pequena cidade inglesa de Burton-on-Trent, de onde, na mesma época, saíam as cervejas claras e lupuladas enviadas para os oficiais ingleses na Índia, as mesmas que viriam a ficar conhecidas como India pale ales. Richard Burton deve ter bebido sua cota de IPA na Índia, talvez até mesmo na época em que ele professou o islamismo. Isso não posso afirmar.

Mas esta postagem não é sobre a vida de Richard Burton ou sua devoção ao imperialismo inglês na Índia, no Oriente Médio e na África. Ocorre que o livro de Mary Louise Pratt também fala sobre um soldado escocês chamado John Stedman, que teve um relacionamento amoroso com uma escrava mulata chamada Joana no Suriname no final do século XVIII. Quero contar sua história e mostrar como suas visões negativas e imperialistas sobre as mulheres, os negros (e sobretudo as mulheres negras) e a América Latina estão mais vivas do que nunca neste início de século XXI, e ainda habitam o imaginário do cenário cervejeiro contemporâneo. Mas vamos com calma.

A escrava Joana

John Stedman nasceu em 1744 na Escócia e herdou de seu pai o posto de oficial da Brigada Escocesa do exército holandês (era uma época em que os exércitos não eram tão nacionalistas quanto são hoje). À época, a Holanda tinha algumas pequenas mas lucrativas colônias agroexportadoras no Caribe, entre as quais estava o Suriname. Nessa região coberta por florestas tropicais, os escravos africanos que trabalhavam nas fazendas holandesas fugiam em grandes quantidades para as matas, formando grandes quilombos que existem até os dias de hoje e travando uma guerra feroz contra as forças repressivas coloniais. A despeito de terem assinado tratados de paz com os quilombolas, os holandeses organizaram em 1773 uma expedição militar repressiva, da qual fazia parte Stedman. A guerra holandesa contra os quilombolas foi um fiasco, e comprovou, desde então, a proverbial incompetência dos exércitos europeus para guerrilhas na floresta. Cerca de 80% dos soldados europeus morreram (a maior parte devido a doenças), poucos escravos foram recapturados e a maior parte dos quilombolas atacados fugiu para a Guiana Francesa.

Gravura de John Stedman sobre o 
cadáver de um negro quilombola.
Fonte: en.wikipedia.org
John Stedman era um soldado europeu, a serviço de uma potência colonial, encarregado de esmagar uma rebelião de escravos. Diante disso, é um tanto irônico – mas esta é justamente a ironia da colonização europeia nas Américas – que ele tenha se envolvido sexualmente e tenha até se “casado” com uma escrava, chamada Joana. Há duas versões dessa história de amor transracial: a que John Stedman publicou em seu livro de memórias de viagem, chamado Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos do Suriname (de 1796), e a que consta do seu diário pessoal de campanha. Qual você quer saber primeiro?

Vamos lá: comecemos pela versão do diário. Gostamos de segredos. Na época de Stedman, havia o costume de que os oficiais militares europeus (ou oficiais diplomáticos, agentes comerciais, administradores etc.) recém-chegados à América adquirissem os serviços de uma escrava local, seja por aluguel, seja por compra da escrava. Esses serviços a serem desempenhados pela escrava comprada ou contratada incluíam atribuições fundamentais para a vida cotidiana desses europeus sozinhos em territórios coloniais: tarefas domésticas, preparação de alimentos, cuidados de saúde. E, como você já deve estar imaginando, incluíam também serviços sexuais. Em alguns casos, para evitar o escândalo público, esses relacionamentos de concubinato eram oficializados por cerimônias de pseudocasamento. John Stedman teve várias companheiras no Suriname nesses moldes. Joana foi uma delas, aparentemente sua preferida. Stedman, depois de se casar com ela no Suriname, propôs que ela o acompanhasse de volta à Inglaterra, mas ela recusou, preferindo continuar a viver como uma escrava “próspera” na América do que viver como pária (uma mulher negra e escrava) na Inglaterra do final do século XVIII. Pois bem: Stedman voltou sozinho e se casou novamente com uma esposa inglesa. Fim de uma edificante história de exploração sexual nos trópicos.

Mas a versão da história contada por John Stedman em seu livro é bastante diferente. Segundo esse relato, Joana teria sido uma espécie de escrava “hipotecada”, propriedade de uma viúva endividada. Seu destino estava selado, pois ela seria vendida para liquidar a dívida da senhora. Stedman teria se apaixonado perdidamente ao vê-la na casa da viúva, descrevendo-a como “a mais elegante forma que a natureza pode exibir, [...] com uma face na qual reluzia, a despeito do tom escuro da pele, um lindo tom carmim.” [É, era tipo “ela é preta, mas é limpinha”.] Diante da inevitabilidade de sua venda, ela teria apelado ao bondoso soldado europeu, que então tomou, segundo seu relato, a “estranha decisão” de comprá-la e se casar com ela para evitar a separação, decidido a “ser seu protetor contra qualquer insulto”. Não preciso explicar a ironia, preciso? Stedman narra sua cerimônia de casamento, sua lua-de-mel, a paixão entre os dois e o nascimento de seu filho Johnny. Ao final da narrativa, conta que a escrava Joana não quis segui-lo até a Inglaterra e que depois morreu envenenada no Suriname.

Uma das gravuras do livro de Stedman. 
O soldado denunciou os rigores da 
escravidão mas não deixou de explorar 
uma escrava negra no Suriname.
Fonte: en.wikipedia.org
Num certo sentido, não é difícil ver na narrativa de John Stedman uma tentativa de construir uma versão idealizada e romantizada de um relacionamento que era, por natureza, brutal e desigual. Joana era, afinal de contas, uma escrava sexual do soldado escocês. Literalmente. A ligação entre os dois é contada como sendo de amor recíproco, e sua união é representada como voluntária para ambas as partes – quando sabemos que ela não podia sê-lo para Joana, a não ser muito parcialmente. Não se trata de dizer que é impossível que tenham se amado. Eu não chegaria a tais extremos metafísicos. O que é inegável, contudo, é que o relato de Stedman ocultava a violência do regime de exploração sexual nas Américas, em que mulheres negras eram vistas como sexualmente disponíveis para homens brancos que iriam se valer de sua companhia e depois descartá-las.

Essas histórias de amor transracial envolviam sempre mulheres negras (ou pelo menos não brancas, ou de alguma forma em posição subalterna) e homens brancos, e quase nunca o contrário. Pocahontas, Iracema, Bartira, a escrava Isaura – you name it. Isso não é fortuito, já que o pensamento da época considerava o gênero como uma metáfora da raça, e vice-versa: a raça branca era representada na pseudociência racial da época como sendo “masculina” (ativa, dominadora, racional), enquanto as raças não brancas eram consideradas “femininas” (passivas, irracionais, emocionas). A relação sexual entre homens brancos e mulheres negras, portanto, era o lugar ideológico em que todas essas questões espinhudas eram tratadas na cultura da época. Stedman deu a essa questão um tratamento lisonjeiro aos olhos de seus leitores europeus, em que a violência sexual e racial aparecia sob a roupagem da reciprocidade do amor romântico correspondido. Não à toa, seu livro foi um sucesso editorial, sendo publicado em 6 diferentes línguas europeias. A história de Stedman e Joana foi adaptada para teatro, poesia, conto e romance. Era um conto de fadas agradável para aplacar a consciência pesada do imperialismo europeu.

Evil Twin Brazil Brazilian Wax

Infelizmente, como sabemos, esse regime de exploração sexual da mulher de cor (negra, indígena, asiática ou mestiça) do Terceiro Mundo por homens brancos do Primeiro Mundo não acabou. Claro que ele assumiu outras formas, que atualmente incluem o tráfico internacional de pessoas, o turismo sexual e várias formas, diretas e indiretas, de violência doméstica. Também sobrevive de formas mais sutis na nossa cultura contemporânea, traduzido em preconceitos a respeito da promiscuidade e/ou da sensualidade aflorada da mulher negra. É um estranho e abominável lugar ideológico onde se cruzam duas das mais perniciosas e duradouras pragas culturais do nosso mundo: o machismo e o racismo, que, como vimos, andaram de mãos dadas pelo menos desde o final do século XVIII.

Eu adoraria dizer que o meio cervejeiro, por ser composto de pessoas “cultas”, “bem-educadas”, “sensíveis” e “de mente aberta”, [ironia detectada] não tem nada disso. Mas isso não é verdade. Uma polêmica relativamente recente a respeito de uma cervejaria europeia no Brasil reeditou, quase ponto a ponto, a velha história de John Stedman no Suriname, mais de dois séculos depois. Alguns dos meus leitores terão acompanhado essa discussão, enquanto talvez outros nem se lembrem mais dela. De qualquer modo, acho que o acontecimento foi tão emblemático de todas essas questões que vale a pena fazermos questão de não esquecê-lo. Falo da polêmica criada em torno do rótulo da cerveja Evil Twin Imperial Brazilian Wax.

Bunda ou virilha: eis a questão.
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/
 
 
Para quem não sabe, a Evil Twin é uma cervejaria cigana de origem dinamarquesa (hoje em dia sediada nos EUA) que exporta alguns de seus rótulos para o Brasil. Em decorrência de uma parceria com a cervejaria Tupiniquim, do RS, a Evil Twin passou a produzir alguns rótulos no Brasil, na planta da microcervejaria rio-grandense. A primeira cerveja dessa linha produzida em solo nacional, em 2014, foi uma imperial stout que foi inicialmente batizada de Imperial Brazilian Wax – em alusão à técnica de depilação íntima frequentemente associada às mulheres brasileiras no exterior. O rótulo inicialmente anunciado para a cerveja é este que você vê acima deste parágrafo.

O anúncio suscitou uma justificada e previsível reação de protesto de diversos consumidores brasileiros – e especialmente de consumidoras brasileiras –, que viram no rótulo um subtexto machista e depreciativo. Alguns admiradores da marca tentaram aplacar a situação, dizendo que não havia nenhum machismo no rótulo e que era tudo uma espécie de teoria da conspiração de grupos feministas. A emenda saiu pior do que o soneto, e gerou uma avalanche ainda maior de críticas – desta vez não apenas à Evil Twin, mas a uma parcela substancial dos blogueiros e “formadores de opinião” do meio cervejeiro, que haviam perdido uma excelente oportunidade de ficarem em silêncio. Isso porque, ao deslegitimarem o protesto contra o rótulo, não só deixavam de reconhecer seu subtexto machista como também condenavam a expressão pública de indignação por parte de coletivos femininos. Por conta da pressão dos consumidores e da má publicidade em torno do fato, a Evil Twin acabou trocando o nome e o rótulo da cerveja, que foi lançada como Evil Twin Metro Man.

Uma análise semiótica elementar do rótulo proposto para a Evil Twin Imperial Brazilian Wax é suficiente para expor seu subtexto ideológico problemático, que nem de longe se limita ao machismo, mesmo que este tenha ganhado maior visibilidade e tenha se tornado o alvo prioritário de protesto nas redes sociais. Façamos a análise em três etapas: comecemos pelo nome da cerveja, passemos à imagem do rótulo e finalizemos com o texto de descrição comercial contido no rótulo. Ao final, juntaremos tudo isso para tentar extrair algum tipo de impressão global do rótulo (já adianto: não vai ser bonita).

O nome

Comecemos pelo nome proposto para a cerveja: Imperial Brazilian Wax. A ironia é tão deliciosa quanto involuntária. “Imperial” refere-se a estilos cervejeiros de teor alcoólico elevado – no caso, trata-se de uma “stout imperial”, como esclarece o rótulo na parte inferior (em letras pretas). Contudo, o termo também remete às complexas formações sociais e ideológicas criada pelo imperialismo europeu nos trópicos – as mesmas que deram origem às Joanas do período escravista e que reaparecem no rótulo da Evil Twin. Desde a primeira palavra do título, a Imperial Brazilian Wax já se apresenta como súdita do euroimperialismo.

Já “Brazilian wax” refere-se à chamada “depilação brasileira”, uma técnica de depilação introduzida nos EUA por profissionais brasileiras, que consiste na retirada total dos pelos da virilha e das áreas genital e anal, deixando, opcionalmente, uma “faixa” de pelos no púbis. A técnica atende a dois propósitos principais: 1. o uso de biquínis cavados sem revelar os pelos pubianos; e 2. o prazer sexual do parceiro ou da parceira da mulher que se submete à técnica. O biquíni, como sabemos, é um traje de banho que visa revelar a maior parte do corpo da mulher para a observação de terceiros, frequentemente uma observação de caráter erótico por parte de homens, deixando cobertas apenas as partes consideradas obscenas e ofensivas ao pudor público (genitália e mamilos). Portanto, não seria exagero afirmar que essa técnica de depilação tem uma conotação eminentemente erótica, e tem como objetivo potencializar os atributos da mulher como objeto de desfrute erótico. O fato de esse tipo de depilação estar associado, nos EUA e na Europa, às mulheres brasileiras já é uma reiteração daqueles velhos preconceitos que veem a mulher do Terceiro Mundo ou de regiões tropicais como mais intensamente sexualizada. Ou seja: num certo sentido, o próprio nome escolhido pela Evil Twin já é um tributo à cultura do imperialismo que herdamos de John Stedman e de outros europeus nos trópicos. Ponto para o império!

A imagem

A imagem do rótulo reforça esse sentido. Há um triângulo invertido amarelo (com as duas arestas inferiores côncavas) sobre um fundo marrom. Não é difícil ver a representação estilizada de uma mulher de biquíni – ainda mais quando consideramos que a técnica do Brazilian wax está associada ao uso do biquíni. Mas não se trata de uma representação de corpo inteiro da mulher de biquíni: pelo contrário, o rótulo faz um recorte que enfatiza apenas a região da genitália da mulher. Se esta é a parte da frente ou de trás do biquíni é matéria controversa, embora eu acredite que as concavidades do triângulo sugiram mais a volumetria da parte de trás. Seria, nesse caso, a representação estilizada de uma bunda de biquíni fio-dental – o que é razoável, considerando que o fio-dental é outra coisa tipicamente associada ao Brasil na mentalidade estrangeira. De qualquer forma, é evidente que se trata de uma representação erotizada da mulher, que atua por meio de uma estratégia retórica de metonímia, representando o todo (a mulher) por uma de suas partes (a genitália), que é considerada a mais importante ou representativa. É como se a mulher “se resumisse” a um traço fundamental, ou pudesse ser reconhecida apenas por ele: a saber, a bunda exposta.

As cores escolhidas para a imagem trazem outras associações e significados. O triângulo (que, como vimos, representa o biquíni) é amarelo. Como sabemos, o amarelo é uma das principais cores da bandeira brasileira, junto com o verde. As letras usadas no rótulo são verdes, e o biquíni é amarelo, remetendo de forma muito imediata e inequívoca ao Brasil. Portanto, não se trata apenas de uma mulher de biquíni, mas (pelo menos simbolicamente) de uma brasileira de biquíni. O fundo, por sua vez, é marrom. Forçando um pouco a barra (para aliviar para a Evil Twin), poderíamos até dizer que a cor lembra uma pele intensamente bronzeada. Mas me parece mais convincente que o marrom remeta à pele negra, ou, mais precisamente, à pele mulata. Ora, sabemos que, no exterior, o Brasil é frequentemente associado à imagem da mulata sensual, de modo que me parece bastante razoável supor que essa é a associação sugerida pelo rótulo. Sendo isso verdade, estamos diante de um rótulo que representa a bunda (ou a virilha) de uma mulata brasileira de biquíni, uma imagem que está, digamos, “disfarçada” por um trabalho de estilização formal. Portanto, é uma imagem da mulher brasileira representada como objeto de deleite erótico para o olhar masculino. Mais que isso, é uma mulher negra. E o olhar masculino em questão é o de um europeu (uma vez que a marca Evil Twin é dinamarquesa). Ora, se é assim, então a mulher do rótulo é uma Joana, pronta e disponível para o consumo e o deleite de um Stedman! A imagem, portanto, reforça e ecoa o imaginário euroimperial, machista e racista da disponibilidade sexual das mulheres de cor tropicais para o deleite dos homens brancos europeus.

O texto

A descrição comercial apresentada no rótulo também confirma esses significados. Arrisco uma tradução do texto: “Há muitas coisas sobre as mulheres que os homens não entendem. Por exemplo, por que elas suportam tanta dor para corresponder aos ideais da sociedade moderna? Elas estão indo longe demais? Ou talvez os homens possam aprender uma ou outra coisa a respeito do comprometimento extremo das mulheres com a perfeição – seja beleza extrema, seja cerveja extrema – é tudo questão de gosto. Lembre-se de que, quando você beber esta stout extrema, ela pode doer um pouco, mas às vezes é preciso aguentar até o fim para ficar perfeito [to get it right].”

Para ser bem sincero, o texto já começa mal, sugerindo que as ações das mulheres são pouco compreensíveis para os homens. Como se elas fossem seres alienígenas, irracionais ou alguma coisa assim. Na sequência, o texto afirma que as mulheres “suportam dor” (e muita dor), ou seja, que sofrem, com o objetivo de “corresponder aos ideais da sociedade moderna”. A alusão aqui é ao doloroso processo da depilação brasileira: segundo o texto, as mulheres se submetem a esse sofrimento com o intuito não de atender a um desejo próprio, mas sim de corresponder aos padrões de beleza e aos ideais de perfeição feminina da sociedade. Ou seja, segundo o rótulo (e não sou eu quem estou falando isso, é a Evil Twin!), essa depilação não é feita pela mulher exatamente por vontade própria, mas para atender a padrões externos. Padrões estéticos masculinos, subentende-se, já que são eles, prioritariamente, que irão observar e se deleitar com as mulheres de biquíni após elas terem se submetido a esse sofrimento. O texto sugere que essa prática seria um tipo de excesso (“ir longe demais”), um “comprometimento extremo” para se atingir uma “beleza extrema”.

A última frase do texto coroa esses sentidos: “é preciso aguentar até o fim para ficar perfeito” (na frase original, de difícil tradução: “you just have to go all the way to get it right”). Ou seja, o sofrimento causado pela depilação é visto como um requisito necessário para que a mulher fique “perfeita” (ou “correta”, “right”). E o que seria essa perfeição a ser almejada pela mulher do século XXI? Talvez uma carreira profissional brilhante, talvez um comportamento ético irreprochável, quem sabe um alto nível de sofisticação intelectual? Não, não é nada disso. Para uma mulher ser “perfeita”, ela deve atingir a “beleza extrema”. Esse seria o ideal mais importante a ser almejado pelas mulheres: a beleza. E, quando falamos em depilação íntima, isso significa que ela deve fazer o necessário para ser um objeto agradável de contemplação e deleite erótico para os homens: deve suportar a dor da depilação para poder usar um biquíni cavado na praia e ser avaliada de forma positiva pelo olhar masculino. Em resumo: mulher tem que sofrer para atender ao deleite sexual dos homens. Estamos em pleno século XXI, mas a verdade é que poderíamos dizer exatamente o mesmo para descrever as demandas dos europeus do século XVIII nas Américas a respeito de mulheres como Joana. Será que evoluímos tanto assim?

Imperial no ** dos outros é refresco

Vamos juntar todas as peças. O rótulo que estamos analisando foi criado por uma cervejaria europeia (dinamarquesa, para ser mais exato) especialmente para sua primeira cerveja produzida no Brasil. É uma espécie de “cartão de visitas” representativo da colaboração entre o Brasil e uma empresa europeia. Há um intuito deliberado de condensar uma imagem ou representação sobre o país, o que se traduz no nome (“Brazilian”) e no verde-e-amarelo da paleta de cores do rótulo. Essa imagem parte de uma associação entre o Brasil e a sexualidade do seu povo (e especialmente das mulheres). Um europeu visitando o Brasil poderia elogiar positivamente muitos aspectos da cultura brasileira: nosso multiculturalismo, talvez nosso cosmopolitismo, quem sabe nossa tão propalada alegria, ou nossa hospitalidade. Mas a Evil Twin decidiu mencionar a sensualidade da mulher brasileira. Portanto, em primeiro lugar, o rótulo é ofensivo à cultura brasileira como um todo, sugerindo que sua disponibilidade erótica seria seu mais proeminente ou interessante atributo ao olhar de um estrangeiro. Exagerando um pouco a nota, é como se o Brasil fosse um grande bordel.

E a Evil Twin não é a única empresa estrangeira 
a enxergar o Brasil dessa forma...
Fonte: www.morganpr.co.uk
Em segundo lugar, o rótulo é ofensivo à dignidade feminina, pois reduz a mulher a um mero objeto sexual: seu corpo é seccionado para ser metonimicamente representado por uma bunda, e o ideal de perfeição a que ela deve almejar acima de todos é o tipo de beleza erótica que a transforma em objeto de satisfação sexual para os homens. Ainda por cima, ela precisa sofrer para atingir esse ideal pouco lisonjeiro. Por fim, o rótulo é ofensivo à dignidade racial negra, ao trabalhar em cima do velho estereótipo que associa as mulheres de cor à sensualidade exacerbada e as representa como sexualmente disponíveis ao deleite dos europeus nos trópicos. A mulher brasileira a ser eroticamente desfrutada pelo europeu não é branca, mas negra. Full house: a Evil Twin conseguiu ser ofensiva simultaneamente ao sentimento nacional brasileiro, às mulheres e aos negros. Com isso, ela reproduziu perfeitamente todas as coordenadas da velha ideologia imperialista europeia sobre os trópicos: a mesma mistura indigesta de uma representação negativa sobre as culturas tropicais com elementos de machismo e de racismo que encontramos em textos como o de John Stedman.

O infeliz rótulo da Evil Twin me lembrou muito uma polêmica criada em torno de duas camisetas comercializadas pela Adidas durante a Copa do Mundo da FIFA de 2014 (mesmo ano de lançamento da Imperial Brazilian Wax, por sinal). Uma das camisetas trazia os dizerem “I love Brazil”, sendo que o “love” era substituído por um coração estilizado para lembrar uma bunda de biquíni (a imagem você vê acima). A outra, ainda mais nojenta (era o modelo masculino), trazia a imagem de uma mulher de biquíni (sempre ele...) com o Pão de Açúcar ao fundo, e os dizeres “Looking to score”, expressão que tem duplo sentido, podendo ser traduzida como “tentando marcar gols” ou como “tentando obter sexo”. A Embratur e a presidente Dilma Roussef, corretamente, repudiaram as camisetas e exigiram produtos menos ofensivos à dignidade nacional e que não incentivassem o turismo sexual durante a Copa do Mundo. A venda das camisetas foi suspensa e o episódio foi uma tremenda bola fora diplomática da Adidas.

Boa, Evil Twin, agora ficou joia! #sqn
Fonte: http://www.bebendobem.com.br/
O rótulo da Evil Twin Imperial Brazilian Wax também foi suspenso. Em seu lugar, a cervejaria lançou a mesma cerveja com o nome de Evil Twin Metro Man. Muitas das consumidoras ofendidas celebraram a mudança, mas a verdade é que o novo rótulo não traz uma mensagem de gênero muito melhor. Não pretendo cacetear meus leitores (que já me acompanharam até aqui!) com mais uma análise extensa, mas a verdade é que a Metro Man reforça padrões de gênero heteronormativos, ao sugerir que a vaidade masculina estaria ligada aos “problemas de gênero” que a cervejaria havia enfrentado. Isso antes de dizer que esse problema todo seria “nonsense”. A Evil Twin realmente parece incapaz de deixar de ser ofensiva com seus consumidores: mesmo ao atender a uma reclamação e mudar o rótulo, não deixou de reiterar que a polêmica era vazia e sem sentido. Mas pelo menos a cervejaria aprendeu, da pior forma possível, que as Joanas do século XXI não pretendem ficar quietas diante dos abusos dos John Stedmans que continuam por aí.


Mas você deve estar pensando: “ah, mas isso tudo é tão sutil, tão subentendido, tão subliminar que ninguém percebeu!” Em primeiro lugar, muita gente não só percebeu como se ofendeu. Isso já é motivo suficiente para polêmica. Mas, ainda mais importante, como pretendi mostrar, todos esses significados estão perfeitamente acessíveis para uma interpretação semiótica básica. E o fato de eles serem sutis e de frequentemente passarem despercebidos não os torna inofensivos: como os estudos de psicologia do consumidor evidenciam, não precisamos nos dar conta, conscientemente, de todas as mensagens de uma peça publicitária para que ela exerça influência sobre nossa mente, nossos desejos e nossos sentimentos. A ideologia também funciona assim: é até desejável que nós não saibamos ou não possamos exprimir conscientemente todos os conteúdos das ideologias que nos influenciam. Elas moldam nossa sensibilidade, nossas opiniões e nossas ações de forma muito mais eficientes se continuarem “encobertas”, como estão no rótulo da Imperial Brazilian Wax. Não há absolutamente nada de inocente nisso tudo.

sábado, 1 de agosto de 2015

Pássaros do Cone Sul, ou "A arte de beber bem e barato"

Tenho aproveitado minha atual situação de desemprego para exercer e aprimorar a arte de beber bem gastando pouco. Nem sempre é fácil, é verdade. Mas quase sempre é muito gratificante, em parte porque faz você se dar conta de quanto dinheiro estava gastando antes de forma relativamente “supérflua” – ou mesmo completamente em vão, nos piores casos. O consumo mexe com a sua cabeça: quanto mais você consome, mais acredita que precisa consumir, e mais sua dignidade e seu bem-estar começam a depender do quanto você gasta. O velho barbado Marx chamava isso de fetiche, mas isso é assunto para outra conversa. Diminuir seu padrão de consumo, às vezes, é um salutar revés nesse ciclo quase vicioso do consumo.

E tenho a impressão de que não é só para mim...
A diminuição do meu poder de compra me fez rever muitos dos meus hábitos de consumo etílico (junto com um monte de outros hábitos, é verdade). Nem penso mais em provar regularmente cervejas de R$ 20 a long neck, optando, sempre que possível, por garrafas grandes na faixa dos R$ 15-20 e complementando o consumo das artesanais pelas acessíveis standard lagers “de sempre” do mercado. Elas têm seu valor, sobretudo quando a grana está curta. E a verdade é uma só, doa a quem doer: uma Brahma fresca e bem acondicionada, como às vezes tenho a felicidade de encontrar em alguns bares, pode ser até mais saborosa do que uma artesanal xexelenta e oxidada que custa o quíntuplo. Mas isso, também, é assunto para outra ocasião. E é claro que abandonei o passageiro hábito que tentei cultivar, em meados do ano passado, de beber diariamente a quantidade recomendada pela Organização Mundial de Saúde.

Além disso, tenho trocado com frequência a cerveja pelo vinho, depois que descobri, para meu espanto, que é mais barato beber vinho do que cerveja no Brasil – como já argumentei aqui no blog. E substituí as antes frequentes garrafas de R$ 40-60 por vinhos mais baratos, na faixa dos R$ 20-30. E é aí que tenho encontrado o grande desafio: beber vinhos agradáveis, limpos e bem-feitos apesar de simples, nessa faixa de preços. Muito bebedor de cerveja, quando descobre que tenho uma queda pelo fermentado de Baco, me pede indicações de bons vinhos abaixo dos R$ 40. Nem sempre é fácil, admito. A maior parte dos vinhos nessa faixa, sobretudo os de supermercados (onde vamos à procura de vinho barato), tem defeitos mais ou menos sérios, ou então é enjoativa. Para piorar, no nosso mercado, vinho barato é sinônimo de vinho chileno e argentino, e nem sempre o perfil deles – às vezes amadeirados e adocicados em excesso, com pouca acidez – bate muito com o meu santo. O que fazer, então?

O Chile não tem palmeiras, mas lá canta o sabiá

Para encontrar vinhos bons e baratos, é preciso dar a cara a tapa. E beber algumas porcarias, antes de achar coisas mais interessantes. Um desses achados recentes que fiz foi a linha de vinhos Aves del Sur, produzida pela vinícola chilena Carta Vieja e importada no Brasil pelo Pão de Açúcar. O Pão de Açúcar investiu muito em vinhos e, hoje, é o maior vendedor varejista de vinhos do país. O supermercado conta até com uma linha própria, a “Club des Sommeliers”, composta por vinhos produzidos sob encomenda por vinícolas nacionais e estrangeiras e engarrafados com o rótulo da rede. É a estratégia da rede para distribuir o que, na prática, são vinhos importados diretamente pelo Pão de Açúcar. Ocorre que, a despeito do preço bastante competitivo e da seleção do fera Carlos Cabral, os rótulos do Club des Sommeliers nunca me atraíram. Tive más experiências com algumas opções da linha, e acho que os vinhos tendem a ser comerciais em excesso, um pouco “padronizados” para atingir um mercado mais amplo. Muitas vezes, isso resulta em vinhos amenos, sem muita personalidade, doces em excesso, pouco tânicos e pouco ácidos.

A linha básica, com seus simpáticos passarinhos.
Fonte: ru-vino.livejournal.com
Qual não foi minha surpresa quando encontrei a linha “Aves del Sur”, com importação exclusiva do Pão de Açúcar mas sem o rótulo do Club des Sommeliers. Resolvi arriscar o Merlot da linha mais barata. E tive uma ótima surpresa. A partir daí, provei a linha básica inteira (só não consegui ainda provar o rosé, mas está na minha lista) e até me aventurei em uma garrafa da linha Reserva que estava em promoção. Não me decepcionei seriamente com nenhum dos seis vinhos que bebi – a consistência do padrão de qualidade da linha é bastante alta. Virei fã dos passarinhos. Além de os vinhos serem bons, os rótulos são muito bonitos. Cada vinho é batizado com o nome de um pássaro chileno, e o rótulo traz uma bela ilustração da ave.

Comecei pela linha básica (“Varietal”), que, segundo a enigmática expressão do produtor, passa por estágio em madeira “sólo cuando es necesario”. São vinhos leves, fáceis de beber, amigáveis e com ótima tipicidade considerando sua faixa de preços, ali em torno do R$ 23. O primeiro que provei, e o que mais gostei da linha básica, foi o Aves del Sur Golondrina Merlot 2014. A “golondrina” é nossa conhecida andorinha, pássaro migratório cujo reaparecimento está associado ao fim do inverno e à chegada da primavera. Daí a escolha da uva Merlot, que resulta em vinhos um pouco mais macios e menos austeros e assertivos do que outras tintas chilenas mais cultivadas. Comecei pelo Merlot porque acho, no caso de vinhos baratos, que a uva geralmente resulta em bebidas com menos defeitos e arestas do que outras variedades mais “parrudas”. O Golondrina Merlot 2014 apresenta complexidade acima do esperado nessa faixa de preços: há um frutado puxando para as frutas passas, como ameixas secas, complementado por expressivos toques de chocolate ao leite, alguma baunilha, mogno, leve defumação, traindo a passagem por carvalho. Na boca é correto, com pouca acidez (o que ressalta os tons tostados e achocolatados de forma agradável), macio sem ser enjoativo, com corpo medianamente intenso e taninos pouco expressivos. Uma ótima compra pelo conjunto.

Como sabemos, uma andorinha só não faz verão; então, fui procurar os outros vinhos da marca. Os dois outros tintos da linha básica me agradaram um pouco menos. O Aves del Sur Carpintero Cabernet Sauvignon 2014 traz no rótulo o simpático pica-pau como a indicar a força e a expressividade da variedade. O vinho de fato é mais assertivo que o Merlot, com acidez mais expressiva e taninos mais presentes, dando aquela sensação de adstringência na boca. Contudo, a complexidade aromática é um pouco menor: cassis, um tiquinho achocolatado, uma doçura de baunilha bem evidente, um toque mais herbal e fresco lembrando pimentões (mas não tanto quanto em outros Cabernet Sauvignon chilenos). No conjunto, achei-o menos interessante, mas ainda bem competente e acima de média para os Cabernets dessa faixa. Já o Aves del Sur Perdiz Carmenère 2014 tem como “mascote” a perdiz, uma ave terrestre, como a indicar o caráter mais terroso e herbal da Carmenère. De fato, o aroma predominante é o típico pimentão-verde dos Carmenères chilenos – alguns gostam pela “pegada” aromática mais intensa, mas eu já não sou muito fã. Há nuances frutadas (frutas vermelhas) e defumadas, mas nada muito expressivo. Na boca é menos ácido que o Cabernet, mas ainda com taninos bem perceptíveis. Foi o que menos me agradou de toda a linha, dentro todos os que provei –, mas há que se considerar que nunca fui muito fã dos Carmenères chilenos.

Se liga na rola, Malafaia!
Fonte: www.escrivinhos.com
Entre os brancos, algumas ótimas surpresas, com vinhos muito frescos, aromáticos e com ótima tipicidade, bons para quem quer conhecer as variedades de uvas sem gastar muito dinheiro. O Aves del Sur Tórtola Chardonnay 2014 traz a imagem da singela “tórtola”, nossa conhecida “rolinha” – aquela que o Silas Malafaia deveria ir procurar. O vinho é fresco e traz a tipicidade da Chardonnay: acidez mediana, suave para um branco, alguma doçura residual para alegrar o paladar, mas sem exageros, e uma paleta aromática convidativa de frutas amarelas maduras, lembrando mousse de maracujá (com aquela leve untuosidade amanteigada de muitos Chardonnays), muitos pêssegos maduros e até um toque de tangerina, com sólido acento floral. O álcool aparece mais do que deveria e há um amargor final um pouco incômodo, mas o conjunto é acima da média para o preço. Acompanhou perfeitamente um fondue de queijo. Por fim, o Aves del Sur Frutero Sauvignon Blanc 2014 é muito expressivo e aromático. A Sauvignon Blanc é conhecida pelos aromas frutados lembrando maracujá, mas, nessa faixa de preços, é difícil encontrar um vinho com tanto maracujá. Ao servir, parece que você abriu a fruta. Há ainda flores brancas e certo frescor de grama cortada. Muito bom no nariz. Na boca, é bem seco, com corpo leve, acidez relevante e um final novamente um pouco amargo e alcoólico, de um jeito incômodo, que diminui um pouco sua drinkability. Refrescante e muito encantador pelo aroma frutado. Ótima pedida para conhecer a uva.

Por fim, provei também o Aves del Sur Reserva Gavilán Syrah 2012. O rótulo traz estampado o gavião, ave nobre que indica o maior grau de elaboração da linha Reserva, que matura por 10 meses em barris de carvalho francês e mais 8 meses na garrafa. O vinho é cheio de personalidade. Notam-se imediatamente os aromas de especiarias da Syrah, sobretudo pimenta-do-Reino em forte intensidade. Outros aromas secundários escoltam o apimentado: ameixas passas, uma defumação bem evidente, certo toque de aceto balsâmico, alguma baunilha e chocolate ao leite. A mistura de acético, defumação e pimenta faz lembrar pimenta chipotle. Na boca é macio, com doçura levemente presente, uma certa acidez, um toque salgado e poucos taninos. Corpo levemente licoroso. É complexo, cheio de nuances aromáticas e de paladar, mas não perde a tipicidade da Syrah. Pelo preço promocional de R$ 29 em que o encontrei, foi uma excelente compra, mas vale bem os cerca de R$ 35 do preço normal.


Taí: uma linha de vinhos de distribuição ampla, preço bem acessível e boa qualidade. Como bônus, muitos rótulos de ótima tipicidade, ideais para quem quer conhecer as respectivas variedades de uvas. Eles têm alguns dos vícios de muitos vinhos chilenos: acidez relativamente baixa, uma certa doçura em alguns exemplares. Mas o toque da madeira é bem colocado, sem o excesso de outros sul-americanos. Virei consumidor habitual e estou exercendo, com prazer, a arte de beber barato.