quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Cervejas selvagens - Parte XIX: Brasil indomável

Na última parte desta nossa viagem pelo mundo da selvageria cervejeira, falamos sobre microcervajarias da chamada “revolução artesanal” que começaram, a partir dos anos 1990, a sair da barra da saia das Saccharomyces (as tradicionais leveduras cervejeiras usadas para produzir ales e lagers) e flertar com as ariscas Brettanomyces, Lactobacillus e Pedioccocus. Foi assim com muitas cervejarias dos EUA, Dinamarca e Holanda. Mas e o Brasil, terra de natureza exuberante e colossal? Aposto como aqui a selvageria cervejeira também poderia encontrar uma expressão grandiosa, não?

Produção do cauim de milho entre os araweté do Pará.
Fonte: http://pib.socioambiental.org/
Pois é, por enquanto, não. Não que não haja antecedentes históricos. Todo o território brasileiro – aliás, toda a América do Sul –, antes da expansão desenfreada da pecuária e da agricultura pelo interior do continente, era habitado por diversos povos indígenas que produziam vários tipos de fermentados selvagens – seja na forma do caium, fermentado de mandioca, algarobo ou milho, seja na forma do hidromel, feito do mel, seja na forma de bebidas que misturavam essas matérias-primas. Em todo o litoral sul do Brasil, área de grupos tupinambás, bem no Centro-Oeste, essas ricas tradições de fermentados naturais (cada qual com inúmeras variações nas técnicas de produção) conviviam entre si. Portanto, o Brasil tem uma baita bagagem histórica para a produção de bebidas alcoólicas com fermentação natural. Se a Bélgica é o país das lambics e Flanders red/brown ales, o Brasil é um continente inteiro de selvageria.

Mas – convém lembrar o leitor – estamos falando do Brasil. É, esse Brasil eurocêntrico, tacanho, colonizado, que fica macaqueando modas estrangeiras e joga fora o que teve e tem de melhor em nome de uma imitação de segunda categoria do que é “fino” lá fora. Poderíamos ter uma rica interlocução entre produtores industriais e nossas tradições culturais autóctones, mas preferimos simplesmente enfiar frutas tropicais aleatórias como aditivos exóticos em meio a bebidas produzidas seguindo tintim por tintim as técnicas do “Primeiro Mundo”. Enfim. Apesar de se um país com uma rica tradição histórica de fermentados “selvagens” de fontes de amido, o Brasil parece estar quase completamente alheio às cervejas selvagens.

As dificuldades técnicas

Mas vamos com calma. Alguns fatores explicar essa relutância dos produtores nacionais em se aventurar no “lado negro” da selvageria cervejeira. Não estou nem falando em resgatar e adaptar industrialmente técnicas indígenas e autóctones de fermentação espontânea – o que seria o ápice de uma verdadeira contribuição nacional ao cenário cervejeiro global. Isso seria um segundo – e ambicioso – passo, que demandaria pesquisa etnográfica, etnohistórica, arqueológica e etnocientífica numa escala que o Brasil simplesmente não está acostumado a fazer, além do desenvolvimento de novas tecnologias de produção e de uma regulamentação jurídica junto aos órgãos oficiais. Sim, eu gosto de sonhar alto, por que não? 

Mas, por enquanto, vamos falar simplesmente em produzir, em solo tupiniquim, cervejas selvagens baseadas nas tradições europeias e nas sour ales da “nova geração”. A primeira dificuldade é o acesso às criaturinhas que fazem a mágica acontecer: Brettanomyces, Lactobacillus e Pediococcus são leveduras e bactérias que só recentemente passaram a ter boa disponibilidade para produtores nacionais, na forma de culturas laboratoriais especificamente adaptadas para a produção cervejeira. Para piorar, esses microorganismos (em especial as Brettanomyces) podem ser bastante agressivos e, uma vez que se instalem num determinado ambiente, são muito, mas muito difíceis de serem extirpados. Ocorre que, para quase todos os estilos de cerveja fora do mundo das sour ales, sua influência é considerada um defeito. Muitos produtores evitam convidar esses monstrinhos para suas fábricas com medo de comprometer a produção de suas cervejas mais “convencionais”.

Infestação de fungos: o pesadelo
secreto de todo produtor de cerveja.
Fonte: www.hgtvremodels.com
Há outros detalhes. Quase todas as sour ales exigem o uso de barris de madeira, técnica complexa, quase esotérica, que está longe de ser dominada pelas cervejarias nacionais. E um barril usado para fermentar e maturar sour ales não pode depois ser usado para mais nada além de outras sour ales. Lembra que eu disse que as Brettanomyces eram invasoras praticamente inexpugnáveis? Pois é, e a madeira é seu habitat preferido. Há ainda as questões legais. A legislação sul-americana de produção cervejeira ainda não está preparada para lidar com as complexas questões sanitárias que envolvem a produção de alguns tipos de sour ales. Se até na União Europeia os produtores de lambics precisam brigar para serem deixados em paz pelos órgãos sanitários, imagine então como seria a regulamentação de uma cerveja de fermentação espontânea no Brasil.

E, por último, resta a questão dos preços. Sour ales demoram para serem fabricadas, pois exigem longos períodos de maturação em madeira. Se as cervejarias brasileiras acham que podem cobrar R$ 20-30 reais numa long neck de qualquer nova cerveja um pouco mais ousada e/ou alcoólica, quanto custaria uma sour? Essa questão eu me abstenho de comentar, e deixo para a consideração dos meus leitores.

Dois experimentos brazucas

A despeito de tudo isso, existem aqui e ali alguns experimentos. A maior parte deles, hoje, é feita ou por cervejeiros caseiros, ou na condição de lotes experimentais, sem intenção comercial, de cervejarias estabelecidas. Eu mesmo tive a honra de provar uma ótima “lambic” com amoras feita em casa um velho amigo, que estava com apenas um 1 de maturação e ainda exibia uma boa dose de açúcares residuais, bem como uma extraordinária “Flanders red ale” da Wäls que resultou da maturação da Quadruppel em barris de uísque (sobre a qual falei aqui). Mas, nas prateleiras, ainda reina a escassez. Apesar disso, começam a aparecer lentamente alguns rótulos de distribuição comercial, e espero que continuem a aparecer mais no futuro próximo. Falarei sobre dois com uma forte pegada de brasilidade.

A primeira sour ale produzida no Brasil provavelmente foi a Falke Vivre Pour Vivre (“viver para viver” em francês, título de um filme de Claude Lelouch). Da mesma forma que ocorreu com a primeira cerveja americana a faturar medalha na categoria “lambic” nos campeonatos gringos, consta que essa Falke teve sua origem em um erro, uma contaminação bacteriana numa tentativa de produzir outra cerveja. Diz a lenda que a Falke teve uma contaminação lática em um dos lotes de sua Tripel Monasterium e, em vez de jogar a cerveja azedada ralo abaixo, o proprietário Marco Falcone decidiu adicionar suco de frutas e mais leveduras nas garrafas, para refermentar. O resultado agradou Falcone de uma tal forma que inspirou a Falke a produzir uma sour ale.

Fonte: biervila.wordpress.com
A fruta escolhida para adicionar à cerveja-base foi a nacionalíssima jabuticaba, cujos tons terrosos e a leve acidez casaram bem com as características selvagens da fermentação. A cerveja, com teor alcoólico de 4.5% (bem mais baixo que o da Monasterium, e mais próximo daquele das lambics belgas) passa por uma fermentação primária com Saccharomyces e uma segunda fermentação lática, com um longo período de maturação de 3 anos, segundo a cervejaria. Aparentemente, a maturação ocorre em tanques de inox, e não em madeira. Depois, as jabuticabas são adicionadas para ocasionar uma terceira fermentação. A cerveja foi lançada pela primeira vez em 2009, mas ainda sem distribuição comercial, podendo ser degustada apenas por aqueles que foram honrados com uma garrafa oferecida pelo próprio Marco Falcone (ou por aqueles que, como eu, estão longe de fazer parte da “nobreza cervejeira” brasileira, mas têm generosos amigos dentro dela!). Mais tarde, salvo engano em 2011, ela entrou em distribuição comercial pela espantosa cifra de R$ 200 pela garrafa de 750ml, desincentivando completamente os consumidores a apoiarem essa nascente, e quase natimorta, “revolução selvagem” brasileira.

A Falke Vivre Pour Vivre é frequentemente comparada às fruit lambics belgas, mas a comparação não me parece muito precisa. A começar pelo fato de que não se trata de uma cerveja de fermentação espontânea, mas de uma ale inoculada com fermento e que posteriormente recebe uma segunda inoculação com bactérias láticas. Ademais, lambics belgas se caracterizam pela ação das Brettanomyces (recebidas pelo ar durante a fermentação espontânea e potencializadas pela maturação em madeira), adquirindo uma inclemente secura e aromas animais, sendo que essas características são bastante suaves na Vivre Pour Vivre, que não recebe leveduras do ar e não matura em madeira. O pouco que há de Brettanomyces, ao que tudo indica, entra apenas na fase final, junto com as jabuticabas, imprimindo traços suaves à cerveja. Tudo isso me faz pensar nela como algo mais na linha das sour ales da nova geração.

A doçura dos açúcares ainda é bem evidente e chega até a se sobrepôr à acidez lática em alguns momentos, sobretudo no final adocicado e macio, com sabor de malte, lembrando os estilos de Flandres. A parca presença de Brettanomyces explica essa alta dose de açúcares residuais, que torna a cerveja bastante palatável. Há ainda uma boa dose de salgado. O aroma é rústico, predominando os tons terrosos, lembrando mofo, tamarindo e casca de batata, sobre sabores de frutas vermelhas (penso em morangos desidratados). Há amêndoas cruas, um acento animal suave e um final docinho em que o malte mostra mel e castanhas. O corpo é médio e sedoso. É uma sour ale com frutas mais adocicada, que não assusta quem não está acostumado, mas que não chega a ser enjoativa e nem perde em complexidade. Veja aqui a avaliação completa. Boa criação nacional, mas a comparação com as fruit lambics é descabida. O preço é impraticável, e acredito que seja motivado pela maturação de 3 anos após a fermentação lática. Uma maturação de 3 anos é comum em lambics, mas eu fico me questionando se ela realmente é necessária neste caso, tendo em vista a pequena importância das Brettanomyces. A despeito de todo esse tempo, a Vivre Pour Vivre parece uma sour ale de maturação curta.

Tenho a impressão de que, assim como a Falke foi inspirada por um erro, a segunda cerveja selvagem a ser comercializada no Brasil também acabou ficando ácida quase “sem querer”. Provando que, às vezes, errar é bem mais interessante do que acertar. Injustamente pouco comentada no meio cervejeiro nacional, ela é uma das coisas mais interessantes que já saíram das cervejarias brazucas, não propriamente porque seja uma cerveja perfeitinha e sem arestas, mas porque realmente é um produto único, que partiu da tradição alemã (a principal origem de nossa tradição cervejeira no Brasil) para criar algo totalmente inédito. Refiro-me à Bamberg St. Michael, uma sazonal de luxo da cervejaria Bamberg lançada pela primeira vez no final de 2010 para comemorar os 5 anos da cervejaria. Trata-se de uma Weizenbock escura que passa por dry-hopping com variedades alemãs de lúpulo, matura durante 6 meses em barris de carvalho usados para produção de vinho tinto e refermenta na garrafa com leveduras de espumante. As leveduras e bactérias selvagens não são inoculados, mas afetam a cerveja durante o estágio em madeira, transformando-a em uma espécie de “sour Weizenbock”.

Fonte: http://cervejariabamberg.blogspot.com.br/
A acidez lática e sobretudo acética potencializam a acidez natural da cerveja de base, uma Weizen (e a Bamberg realmente puxa bastante na acidez de suas cervejas de trigo), criando um efeito interessante sem descaracterizar seu perfil de Weizenbock. Um perfume de lúpulo alemão (bem floral com um toque de limão), abre espaço para as frutas (banana-passa, ameixas secas, morango) e o caramelado do malte. O cravo se atenuou e deu origem a interessantes notas defumadas. Vinagre, terroso, amadeirado e tostado anunciam a passagem pelo barril. Na boca ela se mostra bem elegante, com um ataque ácido intenso conduzindo a um final mais suave, em que aparece uma leve doçura de malte, nada pesada, bem elegante. O corpo é mediano, seco para seu alto teor alcoólico de 8.2%, avolumado pela espantosa carbonatação, e levemente adstringente como deve ser uma sour ale. No final, ela sintoniza bem os toques frutados e de especiarias e a refrescante acidez de uma Weizenbock com a acidez e a rusticidade da fermentação espontânea, tornando-se ao mesmo tempo menos pesada e mais complexa que uma Weizenbock tradicional. Como se o malte desse um passo atrás e a complexidade das fermentações pudesse mostrar seu brilho. Veja aqui a avaliação completa.

A minha impressão é que o Alexandre Bazzo, proprietário da germanófila Bamberg, tentou criar uma cerveja intensa com maturação em barris (como fazem os norte-americanos com suas colossais imperial stouts e barley wines) e escolheu para isso um dos estilos de maior teor alcoólico e complexidade da escola alemã. Contudo, a baixa lupulagem e a acidez natural da cerveja de trigo fizeram com que a maturação em barris levasse a cerveja para o lado de uma sour ale. Sorte a nossa. Minha impressão sobre a safra 2011 (a única que provei) foi que a cerveja poderia talvez ter uma personalidade selvagem mais definida, com acidez mais elevada, mas mais para o lado lático e menos para o acético, que acabou sendo muito acentuado. Adoraria ver a Bamberg realmente assumir o lado “sour” dessa cerveja, sem tentar mascarar a acidez e a ação dos microorganismos selvagens. De qualquer forma, acredito que ela tenha aberto um caminho muito promissor. O Brasil tem uma longa tradição de produzir cervejas alemãs, e eu acho salutar que nossos cervejeiros aproveitem essa experiência para usar os estilos alemães como trampolins para novos experimentos.

Trata-se de dois rótulos de acidez ainda pouco ousada, o que é compreensível diante da quase inexistência de paralelos no mercado nacional e do restrito universo de comparação que tínhamos, mesmo entre as importadas, até o ano passado. E é só isso? Não exatamente. Em 2013, a cervejaria Abadessa lançou sua Gose, mas a produção foi relativamente limitada e eu não consegui ter acesso a ela. Não sei dizer qual o grau de “selvageria” dessa cerveja, ainda mais levando-se em conta que o estilo Gose tem sido recentemente reinterpretado com acidez atenuada. Só sei que ela sai de novo agora em 2014 e eu não pretendo perder desta vez!

2013 foi um ano muito interessante para os amantes de cervejas selvagens no Brasil. Quando comecei a escrever sobre o assunto, em abril, tínhamos pouquíssimos rótulos disponíveis no mercado. Passaram a ser importadas as cervejas daqueles que talvez sejam os dois mais importantes produtores de lambic da atualidade – a Cantillon e a 3 Fonteinen. Novas marcas de Flandres red ales chegaram ao país. As cervejas selvagens ganharam mais notoriedade e conquistaram paladares de cervejeiros que antes faziam careta para todo esse “azedume”. Gosto de pensar que esse blog desempenhou pelo menos um pequeno papel nesse despertar de interesses. Os preços ainda não ajudam quem é curioso, e as cervejarias nacionais parecem ainda não ter acordado muito para essa nova tendência, mas o brasileiro parece finalmente estar levando as cervejas selvagens a sério. Quem sabe o cenário não melhore ainda mais em 2014?


Nas próximas partes, finalizaremos esta longa série sobre as cervejas selvagens voltando a falar sobre lambics. Na próxima parte, quero ilustrar a evolução de uma lambic ao longo do tempo com 4 degustações, e depois pretendo finalizar falando sobre novos experimentos e o novo horizonte aberto aos produtores belgas. Acompanhe!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Cervejas selvagens - Parte XVIII: Os novos selvagens

“OK, hohoho e tudo o mais. 
Agora dá um tempo e me deixa 
beber minha lambic em paz!”
Fonte: www.italiasquisita.net
Quem convive comigo há tempo o suficiente sabe que eu detesto as festas de fim de ano. Portanto, se você, leitor fiel, estava esperando alguma postagem especial neste final de dezembro, caiu do burro! Mas, se estava esperando por algo melhor – a continuação de nossa deliciosa viagem pelo mundo das cervejas selvagens – então sente-se e aproveite o percurso confortavelmente, porque hoje cruzaremos o Atlântico para ver um pouco do que a revolução artesanal capitaneada pelos norte-americanos tem feito no reino das sour ales.

O panorama comercial para as cervejarias produtoras de estilos selvagens tradicionais (lambics, Flanders red e brown ales, Gose etc.) mostrou-se muito pouco favorável na segunda metade do século XX. A maioria dos produtores fechou as portas e os poucos que sobraram, em sua maioria, fizeram concessões a um mercado acostumado a produtos pasteurizados – na maior parte dos casos, isso resultou na produção de cervejas doces em excesso. Mas os ventos começaram a mudar na década de 1990, quando surgiu um renovado interesse por sour ales – não mais do seu público tradicional e cativo na Europa, mas dos novos bebedores norte-americanos que, imbuídos do espírito experimentalista da revolução artesanal, estavam em busca de sensações e sabores cada vez mais novos e diferentes.

Esse novo interesse vindo dos bebedores ianques ofereceu uma oportunidade de rejuvenescimento comercial para os poucos produtores europeus que conseguiram se sustentar ao longo das “décadas negras” depois da II Guerra Mundial. Mas, além disso, também propiciou uma internacionalização das cervejas selvagens, à medida que as inventivas cervejarias americanas começaram a se aventurar na produção de sour ales. Hoje em dia, sour ales transformaram-se em uma espécie de “febre” nos EUA – é comum dizer que “sour is the new hoppy”, ou seja, “o azedo é o novo lupulado”, em referência ao fato de que as sour ales, hoje em dia, capturam a atenção do público cervejeiro norte-americano tanto quanto os estilos hiperlupulados o fizeram até pouco tempo atrás. O Brasil, como sabemos, tem uma mentalidade tacanha e colonizada, então nosso público tenta avidamente macaquear as tendências norte-americanas; contudo, os brasileiros também são, paradoxalmente, caipiras e provincianos – o que significa que nosso mercado ainda está feliz como pinto no lixo bebendo as IPAs da vida e ainda nem se deu conta de que, agora, a moda lá fora são as sour.

A verdade é que nem sempre as sour ales norte-americanas conseguem replicar o grau de finesse e sofisticação dos melhores exemplares do Velho Mundo, mas deram origem a todo um novo horizonte de possibilidades a explorar. Na minha opinião, no mundo da selvageria cervejeira, a escola norte-americana atinge sua máxima expressão quando, ao invés de tentar replicar os estilos belgas, inspira-se neles para criar coisas novas e surpreendentes.

As sour ales americanas

Os primeiros experimentos com sour ales nos EUA começaram durante a década de 1980, quando produtores caseiros tentaram produzir cervejas que se aproximavam do perfil das lambics belgas. No começo, as coisas aconteceram mais ou menos ao acaso, de forma assistemática: a primeira vencedora do Great American Beer Festival, na categoria lambic, foi simplesmente uma ale que deu errado, sofreu contaminação bacteriana e azedou! Oprocesso tradicional de fermentação espontânea das lambics era complicado demais para se replicar em casa ou nas microcervejarias que produziam outros estilos, e os laboratórios fornecedores de culturas de leveduras não ofereciam leveduras do gênero Brettanomyces e culturas de bactérias láticas.

A pioneira New Belgium e as simpáticas 
bicicletas que lhe servem de símbolo.
Fonte: www.pitchengine.com
Tudo isso mudou ao longo dos anos 1990, quando os laboratórios começaram a oferecer culturas adequadas à produção de sour ales e as microcervejarias iniciaram programas sistemáticos de produção de cervejas selvagens. Uma das pioneiras foi a New Belgium Brewing Co., inaugurada em 1991 no Colorado, cuja trajetória é bem ilustrativa dos caminhos das sour ales nos EUA. A New Belgium buscou know-how no Velho Mundo para desenvolver sua linha de cervejas selvagens, ao contratar Peter Bouckaert, antigo mestre-cervejeiro da Rodenbach, uma das mais tradicionais produtoras de Flanders red ales na Bélgica. Seu primeiro rótulo selvagem foi a Flanders red ale La Folie, expressão em francês que significa “a loucura”, mas que pode ser uma expressão para designar um empreendimento fadado a perder dinheiro. Isso porque cervejas selvagens, como já vimos, são estilos bem mais complicados de se produzir do que ales e lagers, e a aceitação do público era incerta à época. O fato de a New Belgium estar expandindo seu programa de sour  ales mostra que essa folie, afinal de contas, não foi tão desastrosa.

Outras microcervejarias vieram na sequência. A New Glarus Brewing Co., em Wisconsin, que abriu as portas em 1993 já com a intenção de produzir cervejas na tradição belga de sour ales. Uma das características das sour ales produzidas nos EUA é que elas não eram exatamente... “selvagens”. No caso dos estilos belgas, como vimos, a acidez e os aromas característicos advêm de microorganismos que, em vez de serem deliberadamente inoculados na cerveja pelo produtor, adentram o mosto a partir do ambiente – o ar, a madeira dos barris etc. No caso das norte-americanas, esses microorganismos são mais “domesticados”; isto é, são adicionados diretamente pelo produtor ao mosto a partir de culturas criadas em laboratórios. Essas culturas, contendo microorganismos como Brettanomyces, Pediococcus e Lactobacillus, foram isoladas a partir de cervejas belgas e passaram a ser comercializados para as cervejarias. Até hoje, a maioria esmagadora das sour ales americanas são produzidas assim.

Também isso tem mudado lentamente. No Colorado, a Bristol Brewing Co. deu um passo adiante em direção ao conceito belga de cervejas selvagens, isolando cepas locais de leveduras e bactérias para inocular em suas cervejas, em vez de usar as cepas belgas isoladas pelos laboratórios. Começaram a nascer sour ales com terroir legitimamente norte-americano. Outros experimentos se seguiram, timidamente. A Russian River Brewing Co. foi inaugurada em 2004 por Vinnie Cilurzo, que descende de uma família ligada à produção de vinhos na Califórnia. Cilurzo conta que a produção de cervejas o atraiu pelo menor tempo de fermentação e maturação em relação aos vinhos – em um mês é possível produzir uma excelente IPA! –, mas ele logo começou a usar seu expertise em vinificação para produzir cervejas selvagens maturadas em madeira, o que ironicamente o levou de volta a precisar de pelo menos um ano para finalizar seus produtos! A Russian River emprega principalmente culturas de bactérias e leveduras selvagens criadas em laboratório, mas emprega barris de vinícolas californianas, e eventualmente produz uma cerveja com fermentação espontânea, na tradição das lambics, chamada Beatification. A Allagash Brewing Co., de Portland, também se aventurou recentemente na fermentação espontânea das lambics, dando origem a uma série de produtos chamada Coolship (que é o nome dado ao recipiente no qual o mosto é resfriado e recebe, do ar, as bactérias e leveduras selvagens responsáveis pela fermentação). A série Coolship inclui até mesmo uma verdadeira gueuze americana, obtida a partir do blend de cervejas de fermentação espontânea de diferentes idades!

Depois de migrar da vinicultura para as 
cervejas, Vinnie Cilurzo tornou-se uma das 
referências da nova geração de sour ales 
com a Russian River.
Fonte: www.saveonbrew.com
Mas não foram só os EUA que usaram sua criatividade para criar novos tipos de cervejas selvagens. Também as novas microcervejarias da Europa, influenciadas pela revolução artesanal norte-americana, começaram a experimentar com sour ales. Hoje em dia, países como a Itália, a Dinamarca e a Holanda estão lentamente construindo para si uma reputação como produtores de sour ales ao estilo do “Novo Mundo”.

Não é fácil para uma microcervejaria especializada em ales e lagers começar a fazer sour ales. A oferta de culturas de bactérias e leveduras “selvagens” pelos grandes laboratórios torna as coisas mais fáceis, mas ainda há dificuldades a enfrentar. A maior parte das sour ales exige longos tempos de maturação em barris de madeira, que nem sempre são muito fáceis de lidar e exigem tempo, dinheiro e algum know-how. Para piorar as coisas, microorganismos selvagens têm uma natureza agressiva e dominante, e podem rapidamente infectar todo o equipamento de uma cervejaria de forma irreversível, arruinando a produção de ales e lagers! Apesar de todos esses desafios, o “bichinho do azedume” realmente picou as microcervejarias, de modo que o número de produtores de sour ales só tem aumentado. Só que, enquanto o mundo todo desperta para a selvageria cervejeira, no Brasil, nossas cervejarias ainda estão quase todas dormindo... Mas falaremos mais sobre isso na próxima postagem!

Alguns rótulos da nova geração

Sour ales da revolução artesanal não possuem um padrão ou perfil estilístico definido. A maior parte delas não se encaixa em nenhum estilo conhecido. Algumas se inspiram em estilos belgas, mas raramente os reproduzem de forma fiel. As lambics são as fontes de inspiração mais frequente, mas também as mais difíceis de se reproduzir. Em primeiro lugar, é preciso considerar que as sour ales da nova geração são inoculadas artificialmente, o que reduz a diversidade genética dos microorganismos e às vezes redunda em menor complexidade aromática.

Mais importante que isso, porém, elas raramente seguem os longos tempos de maturação das cervejas selvagens belgas. Uma gueuze chega a precisar de 3 anos e meio desde a primeira brassagem até a finalização do produto, enquanto as sour ales modernas são produzidas em um tempo muito mais curto, frequentemente menos do que 1 ano. É verdade que a inoculação artificial das leveduras e bactérias acelera a fermentação, mas também altera o processo. As leveduras do gênero Brettanomyces, que são o cartão de visitas das lambics belgas, precisam de um longo tempo para manifestarem sua influência sobre as cervejas e produzirem suas marcas características: os aromas animais e de frutas frescas e a superatenuação (ou seja, a conversão de todos os açúcares da cerveja em álcool). Sour ales da nova geração raramente se dão ao luxo de esperar tanto tempo: como resultado, a maior parte delas não chega a desenvolver os aromas animais na mesma intensidade e nem obtêm a mesma complexidade aromática das melhores lambics, e ainda retêm uma certa doçura residual.

Outro problema recorrente é a mentalidade tipicamente norte-americana do “the bigger, the better”. As microcervejarias ianques ficaram conhecidas por criar cervejas extremas no teor alcoólico, extremas no amargor etc. A moda do extremismo parece afetar alguns produtores, que acreditam que a melhor sour ale deve ser a mais intensamente azeda. Já vimos que nada está mais longe da tradição belga. O resultado de todo esse extremismo, frequentemente, são cervejas com uma quantidade excessiva de ácido acético e com sensação agressiva demais. Ainda não consegui provar uma sour ale da nova geração, seja americana ou europeia, que reproduzisse com sucesso o grau de sofisticação e elegância de uma gueuze ou fruit lambic. Quando tentam fazer isso, parecem um pouco “desajeitadas”, rústicas demais, azedas demais, ou então doces demais para equilibrar tanto azedume. Os melhores resultados surgem quando as microcervejarias não tentam replicar os estilos belgas, mas quando se propõem a fazer algo realmente novo, sem precedentes.

Fonte:
blog.beerandnosh.com
Vejamos na prática alguns rótulos para exemplificar isso. A Cascade Brewing produz uma série de experimentos com cervejas selvagens, seguindo de mais ou menos perto os estilos belgas. Um dos seus destaque é a Cascade Sang Royal, cuja receita muda levemente de ano para ano. A Cascade Sang Royal 2009 Project foi feita a partir de um blend de cervejas avermelhadas: uma parte maturou em carvalho com uvas da variedade Cabernet Sauvignon, enquanto a outra parte maturou sem frutas em barris de vinho do Porto e vinho Pinot Noir. O resultado se assemelha a uma Flanders red ale. Como ela não recebe adição de cerveja jovem, fica bem seca, deixando transparecer uma acidez um pouco agressiva, demasiadamente acética. As uvas reforçam a percepção vínica que já é característica do estilo e adicionam a alta dose de taninos pelos quais a Cabernet é famosa, colaborando para a agressividade na boca. O aroma mescla suco de uva e maçã vermelha com algum caramelo e com uma forte rusticidade selvagem: muito mofo, terroso e vinagre, com toques secundários de envelhecimento (molho de tomate e xarope). Sem aroma animais notáveis. Uma sour ale intensa, marcante, mas um pouco agressiva demais para quem está acostumado com a finesse das belgas. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: 
A Russian River Consecration é mais feliz, ao meu ver, ao criar uma nova e deliciosa harmonia com inspiração nos estilos belgas, mas sem tentar replicá-los de forma fiel. Trata-se de uma brown ale de alto teor alcoólico, que matura em barris de vinho tinto de Cabernet Sauvignon com adição de groselha-negra ou cassis (os “black currants”), além de uma cultura de Lactobacillus, Pediococcus e Brettanomyces, com um tempo de maturação relativamente curto, que varia entre 4 e 8 meses. O resultado é uma cerveja de singular harmonia, que cruza as fronteiras entre estilos, em que os aroma da fruta brilham suculentos sobre traços frutados (banana) e apimentados típicos de ales belgas, e sobre um fundo de aromas animais, acéticos, minerais e amendoados que lembram lambics. Na boca ela começa docinha, mas depois revela uma refrescante acidez e um final em que a doçura volta para equilibrar. Apesar do corpo leve e dos 10% de álcool diabolicamente ocultados, ela possui uma pegada forte e adstringente (o cassis é rico em taninos) que lhe dá estrutura e suculência. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte:
www.beer-naise.se
Do outro lado do Atlântico, na Bélgica, a microcervejaria da nova geração De Ranke decidu homenagear a tradição nacional de cervejas selvagens com a Cuvée De Ranke, uma sour ale que cruza características de uma gueuze e uma Flanders red ale. Trata-se de um blend em que entram 30% de lambic (produzida pela Girardin) e 70% de uma ale clara, produzida na tradição de Flandres, com 6 meses de maturação em madeira. Como resultado, ela tem aquela breve doçura maltada inicial de uma Flanders red ale ou de uma lambic jovem, mas finaliza seca e ácida, com uma pegada bem acética, como a lambic da Girardin. O aroma lembra o de uma gueuze, combinando uma forte rusticidade orgânica (animal, couro cru, suor, terroso, casca de árvore) com fenóis apimentados e aromas frutados em que se destacam as uvas verdes e, depois de um tempo, deliciosas framboesas maduras. A quase ausência de taninos lhe dá um corpo um pouco sem estrutura e um final mineral e fugaz. Das cervejas selvagens da nova geração que provei, é a que mais se aproxima de uma lambic, mas ainda assim é menos elegante do que uma gueuze tradicional, embora mais amigável ao paladar. Pode ser encontrada no mercado nacional a um preço razoável, na faixa dos R$ 60 pela garrafa grande. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: untappd.com
A holandesa De Molen (que produz uma inventiva “imperial Gose” que comentamos aqui) se arriscou a fazer uma sour ale inusitada. Se você já se questionou por que toda sour ale é clara ou avermelhada, saiba que a De Molen pensa como você. A De Molen Wilde Porter Barrel Aged foi uma sour ale feita com maltes torrados (como indica o nome, “porter selvagem”) e envelhecida em madeira, que fica em algum ponto entre uma Flanders red ale, uma stout e uma old ale. Predominam os traços selvagens no aroma (animal, couro cru, caprílico, acidez volátil), mas os maltes torrados trazem caramelo, chocolate e queimado bem perceptíveis. Sentem-se ainda características típicas de oxidação e envelhecimento (tomates secos e vinho do Porto) e frutas escuras (ameixas secas, vinho tinto). A combinação é inusitada, mas funciona bem, e os traços de maturação e frutas garantem uma boa transição entre o torrado e o selvagem. Na boca, ela revela primeiro uma doçura de malte e depois muita acidez, fechando num final seco e amargo de torrado e lúpulo. Combinação inusitada, mas bem-resolvida. Só podia ser coisa dos malucos da De Molen! Este rótulo veio ao Brasil em quantidade limitadíssima, e não chegou a ser distribuído comercialmente pela importadora. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: 
Por fim, a dinamarquesa Mikkeller é outra que está se notabilizando pelos flertes com as cervejas selvagens. Sua Mikkeller/Grassroots Wheat is the New Hops, feita em parceria com a cervejaria norte-americana Hill Farmstead, é uma inusitada e deliciosa IPA americana que leva trigo na receita e é fermentada com leveduras do gênero Brettanomyces. Enquanto lambics e outras sour ales passam por uma primeira fermentação com Saccharomyces (como as ales) e depois sofrem a influência das Brettanomyces e de outras bactérias láticas, esta cerveja usa apenas e exclusivamente Brettanomyces para a fermentação, mas sem a longa maturação das lambics. Como resultado, desenvolve pouca acidez (já que não leva bactérias láticas) e um aroma animal bem discreto (já que a maturação é curta). É muito impressionante a interação entre os aromas dos lúpulos norte-americanos com os ésteres frutados produzidos pelas Brettanomyces, resultando em percepções cítricas (maracujá, lima-da-Pérsia), herbais (capim-limão, verbena, terroso, palha), apimentadas e de frutas frescas (peras e uvas verdes) em rara sintonia, criando novas profundidades de frescor herbal e frutado. Toque animais (estábulo, caprílico) são discretos, e o malte mostra um pouco de pão e biscoito. Na boca tem o amargor de uma IPA e um final seco e amargo, mas com uma breve acidez acética inicial. Lembra muito um vinho branco no nariz, mas com o amargor no lugar da acidez. Foi uma das cervejas que mais me impressionou em 2013 e mereceria uma matéria à parte. Felizmente chega ao Brasil a preços razoáveis (na faixa dos R$ 20-25 pela long neck) e mostra que um novo horizonte de estilos inovadores nos espreita nas possibilidades criadas pelo cruzamento entre técnicas de produção de ales, lagers e sour ales. Clique aqui para ver a avaliação completa.

O Brasil ainda é quase um deserto no que tange às cervejas selvagens, mas já se podem vislumbram tímidas manifestações de selvageria aqui ou ali. É sobre essas pioneiras brazucas que falaremos na próxima parte desta matéria!