quarta-feira, 18 de junho de 2014

Pegando pó: A curva de evolução de uma cerveja de guarda

Quem lê este blog há bastante tempo há de estar lembrado da época em que falamos longamente sobre a guarda de cervejas. Já tivemos a oportunidade de esclarecer que nem toda cerveja é apta para guarda: na verdade, a maior parte delas deve ser consumida o mais brevemente depois de sair da fábrica. Para algumas, porém, em especial as que possuem maior estrutura devido ao alto teor alcoólico, ao amargor firme em segundo plano e aos aromas tostados, o tempo pode ser um aliado.

Montar uma adega para envelhecer suas próprias garrafas em casa é uma das formas mais divertidas de curtir cervejas de guarda. Há algumas precauções importantes a tomar, porém. Eu frequentemente recebo questões a respeito das condições ideais de armazenagem (mais detalhes sobre isso aqui) ou do tempo de guarda para cada rótulo. O interessante é que as perguntas a respeito do período ideal de envelhecimento normalmente envolvem o limite máximo de guarda de uma determinada cerveja ou estilo.

A curva gaussiana clássica imaginada por alguns para 
o envelhecimento de cervejas. O eixo x representa 
o tempo de guarda, e o eixo f(x) representa 
a qualidade. µ é o auge da evolução.
Fonte: www.itl.nist.gov
As pessoas interessadas em envelhecer cervejas sabem que uma cerveja apta para guarda evolui até atingir um pico de qualidade, depois do qual ela vai decaindo até ficar sem graça e passada. Imagina-se normalmente que essa evolução descreva uma trajetória semelhante a uma curva gaussiana: a qualidade da cerveja começa baixa, vai subindo, subindo, atinge o ponto máximo e depois volta a cair. Ou seja: depois que a cerveja sai da fábrica, e antes de ela atingir seu auge, imagina-se que ela só vá melhorando com o tempo. Pensa-se que uma cerveja de guarda com 12 meses será necessariamente melhor que uma com 6 meses, a qual, por sua vez, estará melhor do que uma garrafa recém-saída da fábrica.

O que as pessoas não imaginam é que essa evolução não ocorre de forma tão linear. Veja, não tenho nenhuma base científica para alegar isso, mas minha experiência pessoal com minha adega cervejeira me ensinou que não é assim que funciona – pelo menos não nas condições em que eu guardo minhas cervejas, num país tropical sem controle artificial de temperatura. A verdade é que evolução da maior parte das cervejas de guarda descreve uma curva mais ou menos assim:


Ao contrário do que acontece com alguns poucos vinhos especialmente aptos para guarda (como um Bordeaux de alto nível, bem tânico e ácido), quase toda cerveja sai da fábrica em condições ótimas para ser bebida imediatamente. Isso significa que, fresca, ela está em um dos pontos altos de sua evolução. Não importa se é uma German pilsner delicada ou uma barley wine robusta. Depois de ser vendida, uma cerveja de guarda não começa a melhorar imediatamente: pelo contrário, ela vai perdendo frescor, ficando mais sem graça, começa a exibir aromas chapados de oxidação e perde um pouco do brilho na boca. Como toda cerveja. O que diferencia uma cerveja de guarda é que, em algum momento de sua trajetória decrescente, ela reverte a tendência a perder interesse, e começa a ganhar novos elementos.

Sim, a “fase sonsa” também acontece com as pessoas.
Fonte: www.tokeofthetown.com
Minha experiência com minha adega cervejeira tem me mostrado que praticamente toda cerveja de guarda passa por um período meio chatinho que eu gosto de chamar de “fase sonsa”: ela já perdeu o frescor e todo o encanto da juventude, mas ainda não desenvolveu o charme da evolução e da maturidade. É como uma adolescente boba: não é mais bonitinha como quando era criança, e não tem metade do interesse que acredita ter. Mas qual a duração dessa “fase sonsa”? Bom, algumas pessoas nunca chegam a sair dela, não é mesmo? Ah, sim, estamos falando sobre cervejas! Aí que entra o problema: depende da estrutura de cada cerveja. Paradoxalmente, as cervejas mais estruturadas e aptas para guarda, como Russian imperial stouts ou barley wines, são também as que mais demoram para desenvolver características de evolução. Sua “fase sonsa” dura mais tempo, por assim dizer. Cervejas um pouco com menos amargor ou álcool podem se desenvolver mais rapidamente, mas nunca vão chegar a ficar tão interessantes quanto uma verdadeira cerveja de guarda. Quanto mais longa a “fase sonsa”, em geral, mais interessante a cerveja fica se você souber esperar mais tempo.

Minhas experiências com cervejas de guarda têm sugerido um intervalo de pelo menos 18 a 24 meses desde o engarrafamento antes que as garrafas comecem a evoluir positivamente. É raro pegar uma cerveja de guarda que já tenha ficado interessante com menos tempo que isso. Portanto, se você está montando uma adega cervejeira e quer saber se suas escolhas de rótulos foram boas, será preciso ter um pouco de paciência. Muita gente descarta uma boa cerveja de guarda como se ela fosse inapta para envelhecer porque a degustou na sua “fase sonsa”. Se tivesse esperado mais 6 meses ou um ano, poderia talvez mudar de ideia. Já vi quem compre cervejas em promoção, perto do vencimento, e abre para ver se ela evolui bem com o tempo. Se a cerveja não tem um prazo de validade de pelo menos 3 anos, é muito comum que você se decepcione ao fazer isso. Paciência é uma virtude a praticar a todo momento na montagem de uma adega.

A evolução da Eisenbahn Weizenbock

Uma cerveja legal para se observar essa curva de evolução aqui no Brasil é a Eisenbahn Weizenbock. Em primeiro lugar, porque oferece um custo-benefício praticamente imbatível no nosso mercado. Em segundo lugar, pelo fato de as Weizenbocks serem escuras e relativamente alcoólicas, mas não inteiramente adequadas para uma longa guarda. Elas têm pouco amargor, e seu equilíbrio depende de um certo frescor advindo da acidez, que rapidamente se deteriora. Por serem apenas medianamente aptas para envelhecer, elas evoluem de forma mais rápida que uma barley wine, uma Russian imperial stout, uma gueuze ou uma Belgian dark strong ale, para citar alguns exemplos de estilos especialmente aptos para longos períodos de guarda. A Eisenbahn Weizenbock é uma cerveja com a qual é fácil fazer o experimento de comprar várias garrafas para acompanhar sua evolução ao longo do tempo, observando como ela progressivamente perde seu frescor inicial e ganha características de evolução.

A Eisenbahn Weizenbock fresca, não é segredo para ninguém, é uma das minhas escolhas preferidas no mercado nacional. Pena que esteja ficando cada vez mais difícil encontrá-la nos supermercados, onde ela perde espaço para outros rótulos da linha da cervejaria. Bem fresquinha, ela é um verdadeiro deleite. Aromas potentes de bananada e caramelo, com o cravo em segundo plano, são escoltados por uma graciosa complexidade sugerindo nozes, chocolate, tutti-frutti e até café. Há uma gostosa alternância entre a doçura dominante e uma acidez que se intercala para lhe dar mais leveza, conduzindo a um final levemente mais seco. O corpo é entre médio e alto, com alta carbonatação. Excelente representante do estilo: é como se deleitar com um doce caseiro de banana, do tipo que minha mãe sabia fazer como ninguém! Dá uma boa surra em muita cerveja que custa o dobro ou o triplo! (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: www.eisenbahn.com.br
Com 12 meses de guarda (ou seja, no limite de seu prazo de validade), ela já perdeu boa parte do encanto. A doçura começa a predominar de uma forma um pouco excessiva, com caramelo, mel, alcaçuz e um toque doce lembrando plástico e ofuscando a banana e o cravo. Sente-se uma maçã vermelha. O frescor da acidez se foi, e ela se tornou mais licorosa, com maior sensação alcoólica. Decididamente, aqui ela está no ponto mais baixo de sua evolução, bem no meio da “fase sonsa”. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Meio ano depois, com 18 meses de guarda, ela já começou a mostrar um desenvolvimento interessante. A acidez se foi quase completamente e ela ganhou uma complexidade licorosa e frutada que lembra uma Belgian dark strong ale. Às cegas, eu nunca adivinharia o estilo. Banana, uvas passas e ameixas passas convivem com a doçura do caramelo. Em segundo plano, defumado e uma sensação salgada e carnuda, típicas de guarda, começam a aparecer sugerindo ligeiramente molho de tomate e carne assada. A doçura predomina, mas é quebrada de forma sutil pelo salgado. O corpo já afinou um pouco, mas ganhou uma textura licorosa que compensa. Neste ponto, percebe-se que a Eisenbahn Weizenbock já está deixando sua “fase sonsa”. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Com 24 meses, ela atinge um equilíbrio muito interessante. Frutas escuras aparecem em profusão, com sabores de figos secos, ameixas passas, cereja ao marrasquino e banana caramelada misturando-se deliciosamente a um malte que voltou a ganhar profundidade, somando nozes e doce de leite ao caramelo dominante. Sabores mentolados, minerais, terrosos e salgados (carne assada, couro curtido) compõem um discreto mas agradável perfil de maturidade. A doçura é bem equilibrada pelo salgado, e o corpo, embora tenha afinado, tornou-se cremoso como mousse. Aqui, aos 24 meses, observa-se a plenitude daquilo que apenas se insinuava com 18 meses. Este talvez esteja bem próximo do ponto mais alto de sua curva de evolução. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Por fim, com 30 meses, ela já mostra características de longa guarda (evidentemente não tão bem integradas quanto em uma cerveja apta a longa guarda) e talvez já comece a demonstrar também os primeiros sinais de cansaço. O malte se adensou em um perfil mais licoroso lembrando xarope de bordo, e o frutado (banana passa, ameixas secas, maçãs ao forno) começou a diminuir, dando mais espaço aos toques de evolução, que já se adiantam em tons mais definidos e claros de terra, cogumelos, couro curtido, mel aromático, molho inglês e até um certo acético. A doçura ainda predomina, mas a sensação de salgado é bem mais intensa e se faz acompanhar de um toque de acidez acética, lembrando vinagre balsâmico. O corpo já afinou demais, e tornou-se um pouco ralo. Talvez aqui ela já esteja nos primeiros momentos de sua decadência. Eu gostei bastante (até mais do que a versão com 24 meses, para ser sincero), mas admito que é preciso ter um gosto para cervejas evoluídas para apreciá-la. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Portanto, se formos representar a evolução da Eisenbahn Weizenbock numa linha do tempo, teríamos um resultado mais ou menos parecido com o seguinte:


O resultado para 36 meses é hipotético: eu nunca cheguei a bebê-la depois de tanto tempo na adega. Mas, considerando o que observei na passagem de 24 para 30 meses, suponho que ela comece e perder em harmonia e equilíbrio à medida que o tempo passa. Como ainda tenho garrafas sobrando na adega, terei a oportunidade de verificar isso daqui a 6 meses!


Montar uma adega cervejeira no Brasil é um grande desafio. Como se não bastasse o preço extorsivo das boas cervejas por aqui, que desincentiva dramaticamente a compra apenas para estocagem, ainda há as questões relativas às condições de armazenagem, nem sempre fáceis de se obter no nosso clima. Quando você abre as suas primeiras garrafas, ainda na “fase sonsa”, e percebe que elas não estão tão legais, o resultado pode te levar a desistir da coisa toda. Espere. Em posse das informações que você leu aqui, tenha paciência. Os frutos da sua adega amadurecem lentamente, mas sua doçura compensa a espera!

domingo, 1 de junho de 2014

Cervejas selvagens: Berliner Weisse

Ah, a cosmopolita Berlim. Quem associaria você com 
a selvageria? (não vale lembrar do Hitler!)
Fonte: luxus.welt.de
Sim, já falamos longamente sobre cervejas selvagens aqui no O Cru e o Maltado. Alguns de vocês devem ter até enjoado de tanto azedume! Todos os tipos imagináveis de lambics, as selvagens de Flandres, as sour ales da revolução norte-americana e até as improváveis Gose alemãs. Pareceria que não deixamos nada de lado. Mas a verdade é que havia pelo menos um estilo selvagem clássico que não tinha sido abordado aqui no blog – até agora. Estou falando das Berliner Weisse, as cervejas de trigo típicas da região de Berlim, no norte da Alemanha. “Ah, eu sei como é uma Weisse alemã! São aquelas cervejas de trigo, com aroma de cravo e banana!”. Não, essas são as Weisse do sul da Alemanha, da região da Baviera – que não têm nada de selvagem, diga-se de passagem. Apesar do nome semelhante (derivado de “weiss”, palavra alemã para “branca”) e do uso do malte de trigo, há imensas diferenças entre os estilos.

Uma história controversa

Há pouca informação precisa sobre a origem deste raro estilo cervejeiro. Sabe-se hoje que, no final da Idade Média, cervejas feitas com lúpulo e malte de trigo ganharam força no norte da Europa, numa faixa territorial que se estendia entre a Bélgica e a Boêmia. Como eram relativamente mais claras que as tradicionais cervejas avermelhadas produzidas com o gruit (mistura de ervas que era usada como tempero da cerveja antes do emprego do lúpulo), ficaram conhecidas como “brancas” – daí o termo alemão “weiss”, ou o flamengo “wit” para designá-las. É possível que as gueuze da região de Bruxelas derivem desse mesmo “cinturão de cervejas claras de trigo” do norte europeu.

Data do século XVI a primeira menção documentada ao uso do malte de trigo para fabricação de cervejas em Berlim. Contudo, é impossível dizer se o estilo guardava qualquer semelhança com as Berliner Weisse atuais. Uma teoria sugere que as raízes do estilo estejam numa tentativa de reproduzir, em Berlim, um estilo de cerveja de trigo típico de Hannover, as Broyhan, que eram possivelmente variações da Altbier produzidas com trigo. Há menção, em 1640, a uma cerveja berlinense chamada Halberstädter Broihan, indicando o vínculo com o estilo de Hannover. Uma outra teoria, a meu ver muito menos plausível, sugere que as Berliner Weisse tenham sido uma criação de exilados huguenotes que emigraram da França para Berlim no século XVIII, passando por Flandres, e levaram consigo as técnicas de fermentação lática (usadas nas cervejas selvagens de Flandres). Por que eu acho essa teoria menos plausível? Porque ela se atém à similaridade entre as Berliner Weisse e as atuais cervejas de Flandres, mas não considera que, à época, a fermentação lática era muito mais amplamente disseminada na Europa.

O massacre de São Bartolomeu, em 1858, que expulsou os 
huguenotes da França. Deixemos a memória deles em paz.
Fonte: www.meyerbeer.com
Tudo isso são conjecturas históricas que aguardam investigação de historiadores da alimentação na Alemanha. O que sabemos, com certeza, é que algo parecido com as Berliner Weisse já devia existir na passagem do século XVIII para o XIX. Quando Napoleão invadiu a Alemanha, em 1805, chamou as cervejas de Berlim de “o champagne do Norte”, no que certamente aludia ao caráter leve, ácido e sutilmente frutado das Berliner Weisse. O estilo alcançou seu auge de popularidade no século XIX, quando havia 700 cervejarias que o produziam na região de Berlim. A essa altura, os métodos produtivos já estavam relativamente estabelecidos e a cerveja certamente era bastante semelhante à que ainda existe hoje.

A Berliner Weisse era produzida e servida em diferentes graus alcoólicos, indo desde os 2% de uma cerveja “de mesa” até possivelmente o teor de uma bock, acima dos 6%. A versão clássica, que sobrevive até os dias de hoje, tem um baixo teor alcoólico, em torno dos 3%. Isso se explica devido ao regime de tributação especial que incide sobre cervejas de baixo teor alcoólico na Alemanha. É provável que o costume de produzir a Berliner Weisse com baixo teor alcoólico também tenha raiz num hábito tipicamente associado à história do estilo. Por muito tempo, a cerveja era vendida logo após ser brassada, cabendo aos bares guardá-la por tempo suficiente para que ela fermentasse e maturasse. Contudo, por razões econômicas, alguns bares costumavam diluir a cerveja em água, resultando em um produto de teor alcoólico mais baixo, ao qual se opunha a “Ganz-Weisse” ou “Voll-Weisse” (literalmente, “Weisse plena”), preferida dos mais abastados.

O estilo entrou em franco declínio após a II Guerra Mundial – como, de resto, ocorreu com todas as cervejas selvagens, em apuros em uma era de paladares pasteurizados, de imensa concentração de capitais na produção cervejeira e de predomínio de lagers claras de sabor padronizado. Hoje em dia, sobrevive residualmente em Berlim, sendo produzido por apenas duas cervejarias. Há cervejarias alemãs que o produzem fora de Berlim, mas não podem ostentar o nome “Berliner Weisse”, que, segundo a legislação alemã, só se pode aplicar a cervejas feitas na região de Berlim, seguindo os métodos tradicionais. O estilo tem ganhado popularidade nos EUA, onde se tornou uma espécie de “porta de entrada” para as sour ales, por ser um estilo mais leve e de mais fácil aceitação dentro desse universo.

Os métodos de produção

Berliner Weisse têm um método de produção muito peculiar, que não é usado em nenhum outro estilo. O que as caracteriza é o sabor ácido e refrescante, fruto da fermentação com bactérias láticas do gênero Lactobacillus (normalmente da espécie L. brevis). Portanto, assim como ocorre com as cervejas de Flandres, as Berliner Weisse sofrem uma fermentação mista, com leveduras cervejeiras comuns (do gênero Saccharomyces) e com bactérias láticas. Ao mesmo tempo, assim como se vê nas lambics e nas Weissbiere da Baviera, ela leva uma grande porcentagem de malte de trigo, variando entre 30% e 50%.

Para criar o ambiente ideal para a proliferação de bactérias láticas, as cervejarias berlinenses do século XIX usavam uma série de artifícios. Tradicionalmente, o mosto (solução de grãos e água) de uma Berliner Weisse não é fervido, mas apenas aquecido por um processo de tripla decocção, o que significa que uma parte do mosto é separada, fervida e devolvida à tina principal, causando um aumento na temperatura. O procedimento era realizado três vezes, e a temperatura da tina principal nunca superava os 80º C. O mosto era simplesmente mantido nessa temperatura durante 20 minutos e, depois de resfriado, era inoculado. Como não havia esterilização completa do mosto, as bactérias láticas sobreviviam ao processo e fermentavam a cerveja juntamente com as leveduras, gerando a acidez típica do estilo. Algumas cervejarias ainda usavam tonéis de madeira para fermentar e maturar a cerveja, o que aumentava a incidência de microorganismos selvagens.

O tradicional e trabalhoso processo de decocção do mosto, como 
figurado em um mural na escolha cervejeira de Weihenstephan. 
Hoje em dia, a Bamberg é uma das únicas 
do Brasil a usar o procedimento.
Fonte: braukaiser.com
Tradicionalmente, elas eram refermentadas na garrafa, aumentando a complexidade e também a acidez com o tempo. O método, contudo, era diferente daquele empregado pelos belgas. Na Alemanha da lei de pureza, que proibia o uso do açúcar na produção cervejeira, a cerveja engarrafada não recebia uma nova dose de açúcares, mas de mosto parcialmente fermentado, ainda com carboidratos do malte a serem fermentados (o chamado kräusen). Michael Jackson relatou o hábito tradicional de se enterrar as garrafas na terra durante meses para deixá-las desenvolver um caráter ácido ao longo do tempo.

O grau de acidez era um fator a se controlar, e cada cervejaria havia desenvolvido seus métodos para isso. Algumas inclusive “purificavam” seu fermento, voltando a usar uma cepa pura de Saccharomyces retirada de uma ale a cada duas ou três fermentações para evitar o predomínio das bactérias láticas. As Berliner Weisse industriais, hoje em dia, atingiram um grau ainda maior de padronização. É comum que a cerveja engarrafada seja o resultado de um blend entre uma cerveja fermentada apenas com Saccharomyces e uma outra cerveja ácida, que sofreu fermentação lática, em proporções padronizadas. A cervejaria Berliner Kindl não emprega mais a refermentação na garrafa, mas fermenta e matura a cerveja em tanques pressurizados. Já a cervejaria Schultheiss ainda refermenta na garrafa.

O gosto de Berlim

Do ponto de vista do consumidor, a Berliner Weisse é uma cerveja selvagem muito leve, refrescante e com uma acidez moderada, equilibrada por uma delicada doçura residual de malte. Ao contrário do que ocorre com outras cervejas selvagens, sente-se bem o sabor do malte claro, de forma muito agradável, remetendo às lagers claras da escola alemã. O amargor é muito baixo, tipicamente abaixo dos 10 IBUs. O guia do BJCP indica que a interpretação alemã tradicional do estilo tem presença suave a moderada de aromas frutados, enquanto o guia da Brewers Association, mais antenado às inovações do mercado americano, abre a possibilidade de o estilo ser fortemente frutado.

O traço distintivo da Berliner Weisse, sem dúvida, é a acidez lática. Como ela não recebe adição de leveduras selvagens (do gênero Brettanomyces) e nem fermenta em madeira, não exibe os aromas animais tradicionalmente associados às cervejas selvagens belgas. Sente-se apenas uma acidez limpa, “fria” e refrescante, com aroma e sabor suavemente lácteo, equilibrada por uma suave doçura de malte. O estilo é seco e bem atenuado (possuindo poucos açúcares residuais), mas nem de longe tão seco quanto uma gueuze, por exemplo. O malte está lá, agradável e discreto.

O “Ampel” (“semáforo”, em alemão), como é chamado o 
conjunto de três copos de Berliner Weisse, um puro, 
um aromatizado com framboesa, e um com aspérula.
Fonte: thebeersessions.com
Algumas pessoas preferem equilibrar a acidez lática da Berliner Weisse com xarope aromatizado. Em Berlim, é tradicional servir a garrafinha sobre uma dose de xarope de framboesa ou de uma erva aromática chamada “aspérula odorífera”, dando ao copo uma coloração rosada ou esverdeada. Antigamente, havia o costume de servi-la com uma dose de uma aguardente pura ou aromatizada com cominho – o que servia tanto para lhe dar mais aroma e sabor quanto para aumentar seu teor alcoólico. Os apreciadores, porém, preferem sempre bebê-la pura. De fato, seu sabor delicado e equilibrado é uma iguaria que merece ser apreciada sem distrações.

Minha primeira Berliner Weisse

E por que eu não havia escrito sobre as Berliner Weisse quando fiz uma longa série de postagens sobre as cervejas selvagens? Porque eu nunca havia bebido uma até este mês! O estilo é raro na sua terra natal, e apenas hoje começa a receber atenção das cervejarias norte-americanas, que têm produzido interpretações do estilo. No mercado brasileiro, não temos nem um único rótulo de Berliner Weisse. Só tive a oportunidade de provar uma cerveja do estilo quando a ganhei, fortuitamente, de presente do amigo Fabiano Pereira (que conhece muito bem meus gostos cervejeiros e a quem agradeço muitíssimo).

A Berliner Weisse que tive a oportunidade de provar não é produzida em Berlim, mas em Liepzig, pela cervejaria Bayerischer Bahnhof Gasthaus & Gosebrauerei – que, como indica o nome, é especializada na produção de outro estilo selvagem alemão, as Gose. Por não ser da cidade natal do estilo, não pode ostentar no rótulo o nome “Berliner Weisse”, motivo pelo qual se chama “Berliner Style Weisse” (ou “Weisse no estilo de Berlim”). Vejamos o que ela nos oferece:

Fonte: thebeersessions.com

Estilo: Berliner Weisse
Teor alcoólico: 3% ABV
Aparência: bem mais clara que uma Weissbier da Baviera, ostenta uma coloração amarela bem clara, palha, com alta turbidez e uma espuma volumosa que diminui rapidamente (como é comum no estilo devido à alta acidez).
Aromas: primeiro se sente no nariz a acidez limpa, com um toque lácteo que lembra iogurte ou coalhada. Com o tempo, revela-se o aroma seco e apetitoso de malte, que se confirma na boca, com notas de pão branco e massa crua, sem sensação doce. Com o tempo, nota-se mais claramente um perfil frutado tropical e delicado, com remissões a pêssego, cupuaçu e laranja, bem como um aroma floral de rosas. Complexo de uma forma sutil e interessante.
Paladar: prima pela delicadeza na boca, com um equilíbrio entre a acidez lática inicial e uma doçura final de malte que nunca chega a ser pesada demais, o que permite que a cerveja seja seca e refrescante sem extremismo. Quase não se sente amargor.
Sensação na boca: o corpo é levíssimo devido ao baixo teor alcoólico e à secura – às vezes até chega a lembrar a sensação meio “aguada” de uma cerveja sem álcool. A textura é aveludada e é possível sentir alguma adstringência de taninos, de forma interessante.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Veredito: uma sour ale leve, refrescante e descomplicada, mas ao mesmo tempo sutilmente complexa e agradável. Lembra às vezes uma Kölsch mais leve, com acidez no lugar do amargor e aquele frutadinho sutil e intrigante. Realmente é uma ótima porta de entrada para o mundo das sour ales, tanto pela sua leveza quanto pela familiaridade com outras cervejas da escola alemã, mais conhecidas do grande público.

É uma pena que não tenhamos nenhum exemplar no mercado nacional. Nenhuma das nossas cervejarias de tradição alemã se aventuraria? Eu adoraria ver algum cervejeiro do calibre da Bamberg ou da Abadessa oferecer sua interpretação do estilo para o nosso mercado!