domingo, 15 de dezembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XVII: Leipziger Gose

Até agora, nesta série de matérias sobre cervejas selvagens, temos falado praticamente (para não dizer exclusivamente) sobre a Bélgica, o paraíso dos amantes de sour ales. Mas não foi só lá que existiu uma tradição de cervejas selvagens. Um dia no passado, toda cerveja era fermentada espontaneamente e era mais ou menos azeda – ou seja, toda cerveja era “selvagem”, de um modo ou de outro. Foi na Idade Média que começou o hábito sistemático de recolher a espuma que se formava no topo das cervejas em processo de fermentação, e que consistia basicamente de leveduras do gênero Saccharomyces. Essa espuma era então adicionada ao mosto recém-produzido para acelerar a fermentação, dando origem à prática de inocular fermento e criando aquilo que hoje se denomina ales (cervejas de fermentação no alto). As cervejas de fermentação espontânea de outrora foram sendo gradualmente substituídas pelas novas ales. Mas será que só na Bélgica elas chegaram aos nossos dias?

Como quase todas as invenções da humanidade, as ales 
devem ter surgido de uma ideia de jerico. Ou você 
realmente pensaria em jogar essa espuma nojenta 
na sua cerveja recém-brassada?
Fonte: www.franken-bierland.de
É verdade que a Bélgica tem uma tradição histórica de sour ales mais forte que qualquer outra parte do mundo, tendo perpetuado e desenvolvido estilos como as lambics, Flanders red ales e oud bruin­ ­- já falamos de todas estas aqui. Mas, mesmo na ultraconservadora Alemanha, berço das lagers e da lei de pureza da Baviera de 1516, certos estilos selvagens sobreviveram até a modernidade como remanescentes excêntricos de um tempo passado. Uma dessas excentricidades é um raro estilo conhecido como Gose, composto por cervejas de trigo caracterizadas pela alta acidez e pela adição de sal marinho e sementes de coentro. As Gose são tão excêntricas que nem sequer possuem um verbete próprio no bastante completo Oxford Companion to Beer, muito embora sejam reconhecidas pelo guia de estilos da Brewers Association.

Uma breve história do estilo

As Gose não são um estilo isolado. Elas são um dos ramos de uma grande família de cervejas de trigo ácidas outrora produzidas no norte da Europa, numa faixa que se estendia dos Países Baixos até a região de Berlim. Na Bélgica, lambics e witbiers são alguns dos desenvolvimentos mais modernos desse grande grupo. Na Alemanha, além da Gose, ainda existem até hoje as Berliner Weisse, cervejas de trigo do norte do país, que se diferenciam das clássicas Weissbiere da Baviera pela alta acidez lática. Antigamente, um estilo especialmente disseminado eram as Breyhan ou Broyhan, cervejas de trigo ácidas originárias da região de Hannover (no século XVI), e que podiam ser encaradas como variações da Altbier produzidas com trigo. É provável que a Gose tenha surgido como uma variação da Broyhan.

Antigo rótulo de uma Broyhan de Hannover.
Fonte: www.philly.com
O nome “Gose” (que se pronuncia de forma notavelmente semelhante a “gueuze”), a fermentação lática, o uso do trigo na receita, tudo isso nos faz pensar imediatamente em um parentesco direto entre a Gose de Leipzig e as lambics engarrafadas conhecidas como gueuze. Contudo, uma derivação etimológica direta é improvável. O nome Gose provavelmente advém do riacho de Gose, na cidade de Goslar, onde o estilo se desenvolveu provavelmente ainda durante a Idade Média. As Gose se tornaram populares na cidade de Leipzig e, em 1800, eram consideradas como uma espécie de “estilo oficial” da cidade, de forma que começaram a ser produzidas lá mesmo.

As Gose nunca foram cervejas exatamente populares, nem mesmo em Leipzig. Eram complicadas para se produzir e vender, já que precisavam ser consumidas com muita rapidez antes de estragarem, e atingiam preços mais altos. Uma garrafa de Gose podia facilmente estragar e virar vinagre em apenas 3 semanas. O século XX trouxe o golpe de misericórdia: depois de uma interrupção temporária da produção da Gose durante a II Guerra Mundial, seu público declinou irreversivelmente. O último lote foi produzido em 1966. Todos os produtores fecharam as portas ou foram comprados por grupos maiores, desinteressados na produção de uma especialidade regional tão complicada. Para piorar, perderam-se todas as anotações contendo os métodos tradicionais de produção da Gose.

O estilo teria se perdido nos anais da história cervejeira não fosse o entusiasmo revivalista de Lothar Goldhahn, que decidiu voltar a fabricar o estilo depois de revitalizar o Ohne Bedenken, um dos mais tradicionais bares de Leipzig que serviam a Gose nos tempos áureos. Ele conseguiu contatar um antigo funcionário de uma cervejaria produtora de Gose, que ainda tinha consigo anotações a respeito dos métodos de produção. Como não havia estrutura em Leipzig para recriar a receita, ele buscou uma parceria com a Schultheiss, uma produtora de Berliner Weisse localizada em Berlim. O primeiro lote de teste foi produzido em 1985, e a produção comercial iniciou-se no ano seguinte. A Gose havia renascido das cinzas!

A Rittergutsbrauerei Döllnitz, 
tradicional cervejaria do século XIX, 
era a última produtora de Gose de 
Leipzig quando foi fechada 
durante a II Guerra Mundial.
Fonte: www.europeanbeerguide.net
Seguiram-se várias dificuldades enfrentadas por Goldhahn para continuar fabricando sua Gose sob licença, mas a mensagem havia sido dada. Hoje em dia, Leipzig conta com duas cervejarias produzindo regularmente o estilo: a Bayerischer Bahnhof e a Ernst Bauer. Mais importante que isso: a Gose ultrapassou as fronteiras de sua região natal e ganhou o gosto de cervejeiros contemporâneos, sobretudo nos EUA, que reinterpretaram o estilo, transformando-o numa bebida de verão, mais leve, mais refrescante e menos “selvagem” que o estilo original.

Características do estilo

Como ocorreu com todos os estilos cervejeiros, a Gose passou por várias transformações durante os vários séculos de sua história. Registros do século XVIII mostram que, nessa época, as Gose ainda não recebiam adição de fermento, sendo produzidas por um método de fermentação espontânea possivelmente análogo ao das lambics belgas. É provável que a cerveja fosse extremamente ácida e tivesse uma presença considerável de microorganismos nocivos ligados à deterioração de alimentos (como as enterobactérias). Uma enciclopédia de 1773 descreve a Gose como tendo um gosto doce a princípio, e depois como o do vinho (ou seja, ácido), e ressalta suas propriedades laxativas – o que é um possível indício de considerável presença enterobacteriana.

No século XIX, a cerveja já passara a ser inoculada, recebendo inclusive a adição de bactérias láticas para desenvolver seu gosto ácido. Além disso, recebia adições de sal marinho e sementes de coentro – por ser considerada uma especialidade regional, a Gose não segue as diretrizes da lei de pureza da Baviera. O método e momento precisos de inoculação das bactérias eram um dos segredos mais bem-guardados da produção. A cerveja fermentava brevemente em barris e era vendida aos cafés e bares ainda antes de finalizar a fermentação (portanto, sem a longa maturação que caracteriza os estilos selvagens belgas). Daí se explica uma diferença crucial entre a Gose e todas as lambics: enquanto estas desenvolvem um acentuado perfil de Brettanomyces (aromas animais) advindos de longa maturação em madeira, a Gose era finalizada antes que as Brettanomyces pudessem se desenvolver a ponto de influenciar decisivamente a cerveja. Ela mantinha certa doçura residual e não desenvolvia os aromas animais de leveduras selvagens.

A Bayerischer Bahnhof exemplifica o 
formato tradicional da garrafa de Gose.
Fonte: www.do-it-at-leipzig.de
Assim que o barril parava de espumar, a cerveja era envasada em peculiares garrafas de vidro, de gargalo estreito e comprido. O inusitado formato não era fortuito: como as garrafas não eram tampadas, o gás carbônico da fase final da fermentação escapava para o ar e a espuma (composta por leveduras) extravasava pela boca da garrafa. Depois de seca e solidificada no estreito gargalo, a espuma formava uma espécie de “rolha natural”, que retinha apenas uma levíssima carbonatação residual. A cerveja pronta mantinha uma refrescante acidez, reforçada pelo aroma fresco das sementes de coentro, com certa doçura de malte e com uma presença de sal para equilibrá-la.

Gose tradicionais são raríssimas hoje em dia. Produzem-se duas em Leipzig, e as inventivas cervejarias norte-americanas trataram de fazer sua reinterpretação, transformando-as numa espécie de “sour ale light”, menos ácida e menos impactante do que as cervejas selvagens de inspiração belga. Algumas versões apostam mais no sal e nas sementes de coentro, com a acidez ocupando um papel secundário, apenas para reforçar a refrescância. O mercado brasileiro passou a receber dois rótulos do estilo no ano de 2013 – curiosamente, nenhum dos quais é alemão ou norte-americano. Um deles é produto nacional: trata-se da Gose produzida pela cervejaria Abadessa, do RS, em parceria com o cervejeiro alemão Günther Thömmes. Ela teve distribuição restrita aqui em São Paulo e, infelizmente, eu não tive a chance de prová-la.

O segundo rótulo que temos no Brasil é holandês: a De Molen Mühle & Bahnhof Barrel Aged, produzida em parceria com Matthias Richter, mestre-cervejeiro da cervejaria Bayerischer Bahnhof, especializada em Gose. O nome, bem à moda da De Molen, une os símbolos das duas cervejarias: o moinho (Mühle, em alemão), e a estação ferroviária (Bahnhof). Se uma Gose tradicional já é bastante rara, esta é única: ela se apresenta como uma “imperial gose”, o que equivale a dizer que é uma interpretação com mais álcool do estilo, atingindo 9.2% ABV. A mera leitura do rótulo já nos permite inferir outras particularidades de seu método de produção, em relação às Gose tradicionais. Em primeiro lugar, ela recebe a adição direta de ácido lático, em vez de uma cultura de bactérias láticas. Portanto, deve ser fermentada normalmente e depois acidificada de forma artificial. Além disso, é maturada em barris de madeira, não sei durante quanto tempo – certamente não o bastante para desenvolver um perfil de Brettanomyces, mas o suficiente para absorver aromas e sabores oriundos da madeira.


Aparência: a garrafa verte um líquido cristalino de belíssima cor de mel queimado, semelhante a conhaque. Não há creme, apenas uma leve carbonatação que forma uma fugaz névoa frisante, semelhante à de um vinho verde.
Aromas: diferente de tudo o que eu já tinha provado antes. Bastante acidez volátil no nariz, e um aroma que mistura traços de malte doce (caramelo, castanhas, mel), frutas maduras (com destaque para uvas passas brancas, damasco seco e algo de banana e tutti-frutti) e toques amadeirados muito sólidos, lembrando amêndoas doces, baunilha e madeira. Há uma evidente licorosidade lembrando rum e um inusitado aroma lembrando cloro. As sementes de coentro aparecem discretas. Percebe-se claramente a oxidação com um aroma químico que remete a plástico, não de todo agradável. Pela sua licorosidade e doçura, lembra uma espécie de mistura entre um vinho do Porto branco e uma Belgian dark strong ale.
Paladar: acidez e doçura são acentuadas, com forte salgado e praticamente sem amargor. Há uma intensa acidez inicial que dá espaço à doçura do malte e depois termina num final intensamente ácido e salgado, perene, um pouco “quente”, “duro” e incômodo – possivelmente devido à acidificação artificial da cerveja.
Sensação na boca: o corpo é bastante intenso, ao mesmo tempo bem licoroso e cremoso, e intensificado pela adição de sal na receita, sem nenhuma carbonatação. O aquecimento é bem perceptível, com ares de licor.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Cerveja absolutamente peculiar. Daquelas que, mesmo depois de já ter tomado mais de mil cervejas distintas, você pode abrir com a certeza de que vai beber uma coisa diferente de tudo o que já conhece. A forte acidez lática convive com uma doçura e um perfil licoroso de dark strong ales e que lembra vinhos fortificados. A não ser pela acidez, não se parece quase em nada com uma lambic, pois a doçura é acentuada e não se notam os traços animais típicos das Brettanomyces, que dão lugar a aromas de frutas passas claras. Provavelmente não reflete o caráter de uma Gose alemã tradicional, mas é um daqueles experimentos que estendem (ainda mais) os limites daquilo que nós podemos entender por cerveja. Uma pena que o preço pelo qual chegou ao Brasil (em torno de R$ 80-90 a long neck) não ajude em nada.

Cervejas selvagens já não são exatamente os estilos mais comuns do mundo. E as Gose são ainda mais raras e excêntricas dentro de uma família já meio “alternativa”. Apesar disso, a De Molen nos mostra que elas não apenas podem ter lugar no cenário moderno, como podem ainda servir de base para novos e deliciosos desenvolvimentos!

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XVI: Com frutas, sim; mas lambic, não!

Já falei anteriormente que, se você correr para o empório mais próximo e pedir uma indicação de fruit lambic, pode acabar saindo com uma fruit beer xoxa, teoricamente feita “para o paladar feminino” (por homens que subestimam profundamente suas mulheres) e que não tem nada de selvagem – como uma Floris ou uma Mongozo. OK, talvez isso seja um exagero – se você for atendido por alguém um pouco mais qualificado, não será vítima de um erro tão grosseiro. Mas mesmo profissionais com conhecimento sobre cervejas (já vi ocorrer com gente gabaritada...) podem cometer um outro equívoco semelhante: chamar de fruit lambic qualquer cerveja selvagem ou sour ale com frutas.

“Sour ales? Pois não! Estão todas naquele 
cantinho sujo que ninguém olha lá atrás!” 
Mas nem por isso são todas iguais entre si...
Fonte: paraquevocerveja.blogspot.com
Mas não é tudo a mesma coisa? De jeito nenhum! No misterioso e encantador universo das cervejas selvagens da Bélgica, não são apenas os produtores de lambics que adicionam frutas às suas receitas. Também as cervejarias de Flandres, produtoras de Flanders red e brown ales, usam frutas para criar variações de suas cervejas. E as diferenças entre essas cervejas com frutas de Flandres e as lambics com frutas não podem ser subestimadas! A degustação de dois rótulos de Flandres – que felizmente temos no Brasil de forma bem acessível, naquela faixa ainda suportável dos R$ 20-25 pela garrafa pequena – nos dará a oportunidade de explorar melhor a questão.

Malte x Bretta

Vamos retomar algumas informações importantes que já abordamos aqui nesta série de matérias, de forma a ilustrar melhor essas diferenças. Como já vimos, uma das características das lambics maduras é a superatenuação, causada pelo longo trabalho fermentativo das leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, que consumem virtualmente todos os açúcares (tanto do malte quanto da fruta) e deixam a cerveja sequinha, sequinha, com corpo de modelo de lingerie. Se uma lambic de frutas é adocicada, é porque recebeu adoçantes artificiais e/ou açúcar depois de ser pasteurizada. O produto tradicional nunca é doce.

As Flanders red/brown ales já tem um perfil diferente. Em primeiro lugar, os maltes tostados da receita conferem sabores caramelados e achocolatados inexistentes nas lambics. Em segundo lugar, Flanders red e brown ales resultam de uma mistura entre cervejas envelhecidas, mais secas, e cervejas jovens, ainda cheias de doçura de malte. Como resultado, tanto a doçura quanto o sabor do malte podem ser sentidos de forma muito mais clara numa cerveja de Flandres, em comparação com uma lambic. Sabe aquela doçura que, nas lambics comerciais, é adicionada artificialmente (e normalmente desequilibra a cerveja)? Pois é, numa selvagem de Flandres, ela é o resultado natural do blend e mostra-se mais harmônica e agradável. Flanders red e brown ales com frutas, portanto, são mais doces do que fruit lambics tradicionais. Essa doçura equilibra a acidez e faz com que elas “assustem” menos o paladar dos consumidores desabituados com cervejas selvagens.

Também os aromas frutados mostram-se distintos nos dois casos. As lambics têm aromas frutados mais frescos do que a maioria das ales belgas – no lugar das tradicionais bananas, ameixas, maçãs vermelhas ou cerejas, entram as uvas verdes, limão, maracujá, abacaxis frescos. Até por serem mais delicados e sutis, esses aromas normalmente acabam encobertos pelo peso da fruta adicionada nas lambics com frutas. Já as Flanders red e brown ales ainda têm uma forte presença dos aromas frutados “clássicos” das ales fortes belgas, o que dá outra cara ao produto final. As cervejas de Flandres, apesar da pegada selvagem, ainda têm um pouco da cara das ales fortes belga “de abadia”.

Vejamos na prática como isso funciona, a partir de duas cervejas selvagens de Flandres feitas com adição de cerejas: a Verhaeghe Echt Kriekenbier (uma Flanders red ale, da porção ocidental de Flandres) e a Liefmans Cuvée Brut (uma Flanders brown ale, da parte oriental). Ficará claro como elas não são a mesma coisa que uma kriek lambic.


Aparência: belíssima e profunda coloração, entre o rubi e o roxo, brilhante e com bom creme. Muito convidativa na taça.
Aromas: surpreendentemente assertivos e complexos, com a fruta (cereja) convivendo equilibradamente com o malte adocicado (caramelo e açúcar queimado), uma rusticidade de fermentação espontânea (terroso, vinagre balsâmico, acetona, suaves traços animais), uvas roxas e uma impressionante e encantadora presença de amêndoas cruas e canela.
Paladar: ela entra intensamente ácida na boca, mas logo se abre uma doçura de malte, finalizando com doçura levemente predominante sobre a acidez.
Sensação na boca: o corpo é mediano e os taninos são perceptíveis. O líquido tem uma textura levemente terrosa na boca (mas não seca), como a Flanders red ale da cervejaria.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Echt Kriekenbier é produzida a partir de um blend em que entram Flanders red ales de diferentes idades (partes jovens, com um e com dois anos de envelhecimento em carvalho), maturadas com adição de cerejas frescas da região de Sint-Truiden. Impressiona pela forma como a fruta, muito bem adicionada ao conjunto, consegue aparecer de forma clara sem ofuscar a rusticidade assertiva da cerveja de base, com aquele toque balsâmico e químico que sentimos, por exemplo, na Duchesse de Bourgogne. Talvez por serem usadas apenas cerejas frescas e inteiras na receita, elas também adicionam uma encantadora complexidade aromática mineral e de especiarias. Excelente exemplo de uma Flanders red ale com cerejas, em que a fruta, a rusticidade e o malte caminham de mãos dadas.

Fonte: www.belgianfamilybrewers.be

Aparência: coloração vermelha viva e escura, com nuances rosadas, de boa transparência e bom creme rosado.
Aromas: tem boa complexidade de aromas terciários e de maturação, mas o foco mesmo é o dueto afinado entre as cerejas (vívidas, lembrando também morango maduro) e o malte, acastanhado e amadeirado. Baunilha, amêndoas cruas e toques animais indicam a longa maturação, e toques florais e herbais (pinheiro) a complementam.
Paladar: ela entra doce na boca, mas depois mostra uma forte acidez mais seca. A doçura retorna após engolir, deixando um amigável final adocicado.
Sensação na boca: o corpo é leve para mediano, e ela é bastante seca, muito mais do que a oud bruin da cervejaria, com adstringência mediana de taninos.

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A Liefmans Cuvée Brut é uma cerveja com cerejas que usa como base a oud bruin produzida pela Liefmans. Antigamente, esta cerveja usava a corpulenta Goudenband, mas seu teor alcoólico acabava ficando alto demais após a fermentação das frutas, de modo que o álcool da cerveja-base foi diminuído. Ela resulta de um blend entre tanques da oud bruin com cerejas (13 kg de frutos e 200 ml de suco a cada 100 litros de cerveja), maturados longamente durante 18 a 36 meses, o que faz com que seja bem mais seca que a Goudenband, por exemplo, ressaltando sua apetitosa acidez lática. Como a cerveja-base é uma oud bruin, os traços selvagens são um pouco menos marcantes no aroma, deixando em primeiro plano o malte e a fruta (cujo aroma é ressaltado pelo uso de suco, além da fruta inteira). É interessante notar que, apesar de não haver maturação em madeira, senti delicados traços animais de Brettanomyces (atípicos nas oud bruin puras), provavelmente trazidas pelas cascas das cerejas. A cervejaria ainda produz uma versão mais comercial, adocicada e com sucos de outras frutas vermelhas.

Trata-se de duas cervejas bem diferentes entre si, ambas ótimas a seu modo. Enquanto a Echt Kriekenbier se mostra mais marcante, pesada e exótica em seus aromas selvagens, a Liefmans Cuvée Brut tem mais delicadeza, alegria e um aroma mais limpo, em que a fruta brilha mais ao lado do malte. Mas o que me interessa aqui não é destrinchar as diferenças entre as duas, mas sim ressaltar de que forma ambas, conjuntamente, se afastam das clássicas lambics de frutas. A despeito de suas diferenças, ambas possuem uma doçura natural e espontânea, ausente nas lambics, para amenizar o impacto da acidez, e trazem mais aromas e sabores lembrando ales belgas, como caramelo, frutas maduras, apimentado etc. Além dessas semelhanças naturais com outras cervejas belgas, elas ainda possuem a presença familiar e reconfortante das cerejas.


Por todos esses motivos, parecem menos “esquisitas” aos olhos de um bebedor que não esteja familiarizado com cervejas selvagens, e constituem um ótimo ponto de partida para a longa jornada para dentro do “dark side” – ops, digo, para os injustiçados encantos da selvageria cervejeira. Lembre-se delas da próxima vez que alguém questioná-lo, com honesta perplexidade, como é que você pode realmente gostar dessas cervejas azedas!

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XV: Oud bruin

Pesquise em cinco fontes diferentes, e você corre o risco de ter cinco formas de entender a separação entre os dois estilos selvagens da região de Flandres: as Flanders red ales, por um lado, e as Flanders brown ales ou oud bruin, por outro. A confusão é tão grande que o guia da Brewers Association simplesmente unifica os dois estilos sob uma única denominação: “Belgian-style Flanders oud bruin or oud red ales”. Outras fontes fazem distinção entre os estilos com critérios levemente diferentes. Sobre as red ales já falamos antes aqui nesta série de matérias sobre cervejas selvagens. Portanto, agora falaremos sobre suas menos conhecidas primas, as oud bruin.

Uma questão de definição

A tripartição do Império Carolíngio no tratado de 
Verdun. A fronteira entre as porções rosa e 
verde, no extremo norte, é o rio Escalda.
Fonte: http://commons.wikimedia.org
Num primeiro nível, a fronteira que separa as Flanders red ales das brown ales é geográfica, e localiza-se na cidade de Oudenaarde. Mais especificamente, no rio Escalda (em flamengo, Schelde). Ocorre que o Escalda é o marco divisório entre as duas províncias de Flandres Ocidental (domínio das Flanders red ales) e Flandres Oriental (lar das oud bruin). O Escalda foi um importante marco geopolítico da região pelo menos desde o final do Império Carolíngio em 843, quando o tratado de Verdun estabeleceu no rio a fronteira entre a Francia Ocidental e a Francia Central. O Escalda continuou exercendo papel demarcatório por muito tempo, demarcando a fronteira entre o reino da França e o chamado Sacro Império Romano-Germânico. Como se poderia prever, a influência latino-francesa do lado ocidental e a influência germânica do lado oriental acabaram por influenciar a produção de cerveja, fazendo com que o uso do lúpulo e de modernas técnicas de produção, mais semelhantes às das lagers alemãs, se disseminassem com mais rapidez no lado oriental de Flandres.

O resultado é que, enquanto as Flanders red ales têm um caráter selvagem mais acentuado, bem acético e animal, as oud bruin mostram-se mais limpas, com acidez mais suave e perfil de maltes mais acentuado. O método produtivo guarda muitas semelhanças com as Flandres red ales: um mosto pouco lupulado, com maltes escuros, é fermentado por uma cultura mista que inclui leveduras do tipo Saccharomyces cerevisiae (ou seja, da variedade ale) e bactérias láticas dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. Aliás, na mais tradicional produtora de oud bruin, a Liefmans, a cultura original deriva daquela obtida com a Rodenbach, tradicional produtora de Flandres red ales. Ou seja, Flanders red e browns compartilham boa parte de seu DNA. A cerveja fermenta por uma semana, normalmente em tanques abertos, e depois é maturada por até um ano, período durante o qual se torna mais ácida. A porção envelhecida é então blendada com uma ale jovem antes de engarrafar, exatamente como se faz com as Flanders red ales.

Então o que faz com que sejam diferentes? O segredo está em como a cerveja evolui durante a maturação. Derek Walsh considera que o estilo pode ser maturado em madeira; contudo, para o guia do BJCP e para Jeff Sparrow, é distintivo das oud bruin a maturação em tanques de aço inox. E por que isso a torna tão diferente? Ora, lembremo-nos de que a cultura mista com a qual se fermentam as cervejas selvagens de Flandres não inclui Brettanomyces. No caso das Flanders red ales, as Brettanomyces habitam os tonéis de madeira, e é durante a maturação que a cerveja sofre sua influência crucial. Tanques de aço inox, por sua vez, são ambientes cuja rigorosa assepsia e ausência de porosidade impedem a proliferação e infiltração de Brettanomyces. Como resultado, a cerveja não desenvolve traços associados a estes microorganismos – nomeadamente, os aromas animais (estábulo, couro cru) e a superatenuação (consumo de quase todos os açúcares residuais). Secundariamente, também não adquirem aromas e sabores amadeirados e abaunilhados, comuns nas Flanders red ales. Por fim, não sofrem micro-oxigenação, minimizando a produção de ácido acético.

Os tanques de inox onde a Liefmans matura suas 
oud bruin comportam impressionantes 700 hl.
Fonte: belgianbeerspecialist.blogspot.com
Isso significa que as oud bruin, em seu conjunto, parecem menos “selvagens” que suas primas ocidentais. Não têm uma pegada acética perceptível (que nas Flanders red frequentemente remete a vinagre balsâmico) e não exibem os aromas animais tão associados às cervejas selvagens. Como resultado, os sabores caramelados do malte se destacam, e os ésteres pendem decisivamente para o lado das frutas passas (uvas passas, ameixas, figos etc.). Os traços de oxidação tornam-se mais limpos e licorosos. De fato, ao beber uma oud bruin, às vezes se tem uma sensação mais semelhante à de uma dubbel do que aquela sensação “selvagem” a que nos habituamos ao beber Flanders red ales e lambics.

Uma oud bruin especial

Atualmente, tornou-se difícil encontrar cervejarias que ainda façam cervejas que seguem fielmente o estilo. A maioria das cervejarias na região oriental de Flandres fechou ao longo do século XX, e poucas das remanescentes mantiveram a tradição. A maior e mais famosa delas é a Liefmans, que pertence ao grupo Duvel-Moortgat desde 2007. Hoje em dia, as oud bruin da Liefmans são brassadas na fábrica da Duvel, em Breendonk, e depois transportadas para a antiga fábrica em Oudenaarde, às margens do rio Escalda, onde são fermentadas, maturadas e blendadas.

Em sua linha, destaca-se a Liefmans Goudenband (a pronúncia é algo como "rudenband"), uma versão mais potente do estilo, com 8% de álcool e com vocação para guarda. As oud bruin tradicionais são cervejas de teor alcoólico mediano, em torno dos 5%, para se beber cotidianamente, e a própria Goudenband costumava ter 5.2% antes de ter sua receita alterada para a atual, em 1992. Hoje, mostra-se uma cerveja intensa, com um atrevido perfil adocicado e licoroso que se equilibra admiravelmente com a acidez do estilo. A cerveja costumava vir ao Brasil antigamente, por preços bastante salgados, mas hoje em dia não tem sido mais importada. O resultado é que não temos nenhuma – repito, nenhuma – representante fiel do estilo no mercado nacional. Agora que a gigante Interfood adquiriu os direitos de importação sobre a linha da Duvel-Moortgat, quem sabe não comecem a trazer novamente este belo rótulo?


Estilo: oud bruin / Flanders brown ale
Teor alcoólico: 8%
Aparência: bela coloração entre o ameixa e o castanho, escura e convidativa. O creme é volumoso, de persistência mediana.
Aromas: destaca-se de cara o equilíbrio entre o malte (açúcar queimado e caramelo bem marcantes) e os ésteres frutados (ameixas secas e maçãs vermelhas), tudo bastante intenso e impactante. Couro curtido e molho de tomate, ao fundo, lhe dão aquele sóbrio ar de “envelhecido” que se espera de uma cerveja de guarda. Nada dos aromas animais associados às Brettanomyces – nem adianta sair bradando que sentiu “estábulo” e “cobertor de cavalo” só para mostrar que entende de cervejas selvagens.
Paladar: predomina uma doçura muito intensa, lembrando licor, contrabalanceada por uma acidez lática bem perceptível, mas suplementar. Não espere uma acidez impactante. O amargor é suave. Em nenhum momento perde aquela sensação agradável, bem belga, de “cerveja doce”.
Sensação na boca: volumosa e opulenta, com textura licorosa que impõe respeito. A carbonatação é alta, e percebe-se alguma adstringência, mas menos do que a maioria das Flanders red ales, maturadas em madeira. O aquecimento alcoólico é bem perceptível, mas não propriamente exagerado.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A combinação entre a acidez lática, a doçura licorosa e os traços oxidativos lembra alguns vinhos fortificados, como os da Madeira, fazendo com que a Goudenband tenha vocação para digestivo, ao final de uma refeição. É uma experiência muito interessante para fãs de cervejas selvagens, na medida em que desvincula a acidez dos aromas rústicos, animais, produzidos pelas Brettanomyces. Lembra um pouco a sensação de uma barleywine ácida.

É uma pena que já não tenhamos nenhuma oud bruin no mercado brasileiro – que ainda engatinha quando o assunto é a selvageria cervejeira. Aí talvez alguns de vocês retruquem: “Mas eu vi no empório uma oud bruin outro dia mesmo!” Temos algumas cervejas que estampam a expressão no rótulo (a exemplo da Bacchus Vlaams Oud Bruin, que analisamos anteriormente, mas que são maturadas em carvalho, o que faz com que, tecnicamente, sejam classificadas como Flanders red ales, exibindo aquele distintivo traço animal das Brettanomyces. E não é só no Brasil que isso ocorre. Devido à sua maior sutileza nos traços “selvagens”, as oud bruin têm ficado relativamente negligenciadas em favor das Flanders red ales mesmo nos países que têm se interessado por produzir cervejas selvagens, como os EUA. Estaríamos assistindo, talvez, ao lento e silencioso crepúsculo de um estilo? É o que o guia da Brewers Association sinaliza, ao unir as oud bruin às suas primas ocidentais. Torçamos para que os sóbrios encantos deste estilo algo injustiçado sejam redescobertos e revalorizados antes que ele se torne pouco mais que uma memória!


Na próxima parte desta matéria, acabaremos de abordar as cervejas selvagens de Flandres falando sobre as versões com frutas. E você achava que toda fruit beer ácida era lambic? Não perca!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XIV: Sete vermelhas de Flandres - e de outras paragens

Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de fazer um panorama dos métodos de produção e das características sensoriais das Flanders red ales, cervejas selvagens típicas do norte da Bélgica que, por misturarem características de ales com traços de acidez e Brettanomyces, costumam ser uma ótima primeira aproximação ao universo das cervejas selvagens para paladares menos acostumados. Todas as cervejas do estilo são produzidas usando o mesmo tipo de fermentação mista e maturação em madeira, mas suas características variam muito conforme os tempos de maturação e as proporções usadas para compor o blend final.

É o que veremos na prática a partir da comparação de sete cervejas do estilo. As cinco primeiras são representantes mais fiéis do estilo, com teor alcoólico mediano e obtidas por meio da mistura entre cervejas jovens e envelhecidas, em diferentes proporções. As duas últimas – infelizmente indisponíveis no Brasil – são versões mais fortes, longamente maturadas em carvalho, sem mistura com cervejas jovens, e nos mostram quão ousadas podem ser as cervejas de Flandres.


Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com
A cervejaria Rodenbach é a maior referência mundial no estilo, e foi dela que se originou a cultura mista de leveduras e bactérias atualmente empregada pela maior parte dos produtores de Flanders red ales, donde se pode dimensionar sua importância histórica. A cervejaria vende cinco versões de sua cerveja, dentre as quais a Rodenbach (também denominada “Rodenbach Classic”) é a mais simples e amena. Composta a partir de um blend em que entra um quarto de cerveja envelhecida (por dois anos) e três quartos de cerveja jovem, mostra predomínio das características maltadas, tostadas e frutadas da ale fresca. Caramelo, castanhas e tostado unem-se a notas de morango maduro, uva roxa e pimenta-do-Reino. Ao fundo, algum animal e caprílico denunciam as Brettanomyes, enquanto os tonéis imprimem um tom levemente amadeirado e uma sutil baunilha que reforça a percepção dos morangos. Ela começa medianamente ácida na boca, mas logo abre uma envolvente doçura maltada que se prolonga no final. O corpo é médio, com textura é cremosa. Mantém-se suave, de paladar muito acessível, sem perder completamente a complexidade da maturação. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.boozehund.com
A “Grand Cru” é o segundo blend clássico da Rodenbach, com mistura de proporções invertidas em relação à “Classic”: dois terços de cerveja envelhecida em madeira (por dois anos) e apenas um terço de cerveja jovem. Como se poderia esperar, o resultado é que a complexidade e o caráter “selvagem” da cerveja envelhecida brilham com muito mais transparência, muito embora a maciez da jovem ainda se evidencie para tornar o blend mais amigável ao paladar. Quase tudo o que está presente na versão “Classic” reaparece aqui com mais intensidade. Couro cru, estábulo, caramelo e morangos maduros se equilibram no aroma em partes iguais, com sensações complementares de castanhas, chocolate, vinho tinto, pimenta-do-Reino e lírios. A maturação em madeira aparece mais – além dos aromas animais, notam-se amadeirado, amêndoas cruas, vinagre e uma baunilha que se junta às frutas para reforçar a sensação de morango. Ela entra bem ácida na boca, mas a acidez vai decaindo em direção a um final muito longo e gentil, em que a doçura do malte aparece de forma equilibrada. O corpo é mediano e a textura é aveludada, com uma certa adstringência da madeira. Um blend equilibrado e refinado, em que os encantos do estilo aparecem de forma mais clara sem que a doçura pese demais. Lembra muito um vinho tinto da Borgonha. É uma pena que custe tão caro no Brasil – bem que a importadora poderia trazer as garrafinhas de 330 ou 250ml para que ela se torne mais acessível. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: ministerieetenendrinken.nl
A denominação desta cerveja causa bastante confusão, já que seu rótulo traz a expressão “oud bruin” – que, em flamengo, significa “velha marrom” e que é homônima a um estilo que também pode ser denominado “Flanders brown ale”. Contudo, esta Bacchus não é uma Flanders brown, e sim uma Flanders red ale, com maturação em carvalho. O predomínio da acidez sobre a doçura e a intensidade dos traços de Brettanomyces sugerem uma grande proporção da cerveja envelhecida no blend, enquanto seu corpo surpreendentemente leve e sua baixa adstringência de taninos lhe garantem uma alta drinkability. No aroma, brilham as Brettanomyces, com frutas frescas (cerejas vívidas e uvas verdes) e os aromas de couro cru e estábulo. Caramelo, chocolate e toques discretos de vinagre e canela a complementam de forma agradável. A acidez é intensa, mas muito limpa e refrescante, e dá lugar a uma doçura final. O corpo é muito leve, crocante e seco. Uma Flanders red talvez pouco marcante, mas muito bela e graciosa, para refrescar uma noite de verão. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: 366bottles.blogspot.com
Produzida pela cervejaria Timmermans, esta Flanders red ale da região de Bruxelas apresenta algumas peculiaridades interessantes em seu processo produtivo. Como a Timmermans também produz lambics pelo método tradicional, esta cerveja não é inoculada com uma cultura mista de leveduras ale e bactérias. Antes, a cervejaria fermenta normalmente uma ale escura, à qual adiciona uma proporção de lambic pronta e matura a mistura em carvalho para que a lambic acidifique a ale. Depois de envelhecida, a cerveja resultante é blendada com a ale jovem e engarrafada. O resultado é que o produto final apresenta a profundidade aromática de Brettanomyces da lambic, mas sem tanta acidez quanto outras do estilo, já que não é inoculada com bactérias láticas. Aromas animais e principalmente terrosos e de mofo são acentuados, sugerindo mais acidez do que efetivamente se encontra na boca. Caramelo, frutas (morango, suco de uva, uvas verdes) e especiarias (alcaçuz e pimenta-do-Reino) aparecem com grande complexidade, junto com um abaunilhado perceptível. Há uma pontadinha de acidez lática no começo (sem traços acéticos perceptíveis), mas logo depois a doçura predomina, até de forma um pouco enjoativa. O corpo é leve para mediano, com textura agradavelmente cremosa e acetinada. O rótulo indica “aromatizantes” e não os especifica – fiquei com a impressão de que talvez seja caramelo. Interessante versão “alternativa” do estilo, com um contraste entre o aroma marcante e o sabor mais suave e amigável. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.camrgb.org
Este é o blend mais maduro da cervejaria Verhaeghe, que apresenta uma peculiaridade: a mistura usa apenas cervejas envelhecidas em madeira, sem ales jovens. Uma parte é envelhecida durante 8 meses, enquanto o restante matura por 18 meses. Assim sendo, o blend ganha forte acidez e aromas animais e amadeirados acentuados, tornando-se uma representante especialmente marcante do estilo. Belíssima no copo, com uma cor bordô intensa e boa espuma. Os aromas aparecem com bastante vigor: muito estábulo e couro cru, madeira, terra, aceto balsâmico e acetona convivem com sabores mais amenos, remetendo a suco de uvas azedas, caramelo e castanhas. A acidez, lática e acética, é intensa, mas equilibrada ao final pela doçura residual do malte e pela adstringência da madeira. O corpo é mediano, com marcante textura terrosa e um certo aquecimento com sensação “química”, mas não necessariamente desagradável. É uma representante do estilo com “pegada” bem forte e muita personalidade, bem rústica, mas equilibrada pelo balanço entre acidez e doçura. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: barleydine.wordpress.com
Esta espetacular e especialíssima cerveja da tradição de Flandres é uma versão da dark strong ale da cervejaria, a Oerbier, que matura por 18 meses em barris de carvalho usados para a produção de vinhos Bordeaux. A cerveja-base é uma potente ale belga de 13% de álcool, mas é produzida com uma cultura mista de leveduras e bactérias, de modo que a longa maturação a acidifica, exatamente como ocorre com uma Flanders red mais convencional. A complexidade aromática é vertiginosa: a cerveja-base traz bastante cereja madura, maçã-do-amor, caramelo, chocolate, rosas, pimenta-do-Reino, pimenta vermelha e anis. Dentre tudo o que a maturação lhe imprime, identifiquei amêndoas cruas, estábulo, couro cru, terroso, tabaco, mofo, vinagre, madeira e vinho do Porto. Tudo isso se funde num torvelinho delicioso de aromas, em que o rústico, o maduro e o doce se misturam deliciosamente. No boca, predomina o tempo todo a acidez, mas há uma breve doçura inicial e um surpreendente amargor final, levemente tânico. O corpo é mediano, seco considerando seu teor alcoólico, mas soberbamente estruturado por elegantes e impecáveis taninos. Uma joia rara cravada na coroa de Flandres. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.beerfm.com
Embora nem sempre os norte-americanos consigam com sucesso replicar cervejas selvagens belgas, alguns dos seus maiores acertos ocorrem quando eles não tentam seguir à risca os estilos originais, mas criam novas interpretações. É o caso desta Flanders red ale da californiana The Bruery, que matura durante 18 meses em barris de vinho tinto (sem blendagem com ales jovens) e que apresenta um dos mais impressionantes perfis de maturação que este humilde degustador já encontrou. Notas animais, terrosas, de mofo, baunilha e madeira, típicas do estilo, convivem com traços de oxidação e autólise lembrando molho de tomate, couro curtido, molho inglês e vinho do Porto. O malte aparece com um caramelado e as frutas sugerem figos secos e passas ao rum. O aroma parece uma mistura entre uma Flanders red ale e uma old ale inglesa longamente envelhecida. A acidez é muito intensa e reina ao lado de uma forte sensação salgada, mas ela começa e termina na boca com uma leve doçura de malte. O corpo é leve para mediano, mas os taninos acentuados lhe dão uma textura muito estruturada e adstringente. Impactante e intensa, mas misteriosamente harmônica em sua sobriedade. Prova de que as cervejas selvagens de Flandres podem ser palcos muito férteis para a criatividade da revolução artesanal. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Curiosamente, embora nosso mercado nacional ainda seja carente de boas lambics a preços acessíveis, temos boa disponibilidade de cervejas do estilo Flanders red ale. Dentre outros rótulos que podem ser garimpados nos empórios nacionais, é possível encontrar as 5 primeiras cervejas desta seleção. As duas últimas, contudo, seguem sendo rótulos raros, de difícil acesso mesmo em seus países de origem. As cervejas da De Dolle acabaram de chegar ao Brasil, mas ainda não há sinal da Oerbier Special Reserva, nem de sua irmã Stille Nacht Special Reserva – as duas são produzidas e lançadas em anos alternados.

Talvez ainda mais do que as tradicionalíssimas lambics, as Flanders red ales desafiam classificação e padronização. Seus métodos produtivos, sujeitos a uma certa variação de produtor para produtor, resultam necessariamente em produtos com caráter muito distinto. É verdade que a Rodenbach Grand Cru tem sido historicamente considerada o “paradigma” do estilo; contudo, se analisarmos todas as demais Flanders red tendo ela como referência, estaremos sendo injustos e deixaremos de ser capazes de observar a beleza que cada uma traz em sua proposta. Flanders red ales podem ser mais “selvagens”, desafiando nosso paladar com sua acidez e seus taninos, ou mais “amáveis”, conquistando pela maciez do seu corpo e dos seus açúcares. Podem, igualmente, trazer em primeiro plano os aromas e sabores mais rústicos e rurais das leveduras selvagens, ou podem ostentar o encantador frescor das frutas e especiarias.




Mesmo com toda essa variedade interna ao estilo, as Flanders red ales não são as únicas cervejas selvagens produzidas nos territórios flamengos. Na próxima parte desta matéria, teremos a oportunidade de entender as diferenças entre as Flanders red e as Flanders brown ales, dois estilos frequentemente confundidos entre si, mas que passaram por desenvolvimentos históricos razoavelmente distintos. Não perca!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XIII: Flanders red ales

Antigo forno de malte da cervejaria 
Rodenbach, possivelmente a mais 
tradicional produtora de Flanders red ales.
Fonte: http://commons.wikimedia.org
Nas últimas partes desta matéria sobre cervejas selvagens, temos concentrado nossas atenções sobre as lambics, as cervejas de fermentação espontânea do vale do rio Senne. Algumas pessoas consideram “lambics” e “cervejas selvagens” como sinônimos – contudo, como vimos antes, as intrigantes cervejas do Senne compreendem apenas uma parte dos estilos selvagens, mesmo dentro da Bélgica. Tão importantes quanto elas são aquelas produzidas tradicionalmente na região de Flandres, no norte da Bélgica, que podem ser divididas em dois subestilos: Flanders red ales e Flanders brown ales (também conhecidas como oud bruin). Ambas se caracterizam por sofrerem uma fermentação mista, com fermento ale, bactérias láticas e leveduras selvagens. É sobre o primeiro desses subestilos que falaremos a partir de agora.

O processo produtivo

As “cervejas vermelhas de Flandres” fazem parte de uma tradição cervejeira que, no passado, era mais largamente disseminada, e que se caracterizava pelo hábito de blendar cervejas escuras envelhecidas e jovens. As envelhecidas adquiriam traços selvagens acentuados com a longa maturação em madeira, tornando-se ácidas, secas, complexas e levemente vínicas. As jovens traziam sabores mais adocicados e gentis. A mistura das duas preservava a complexidade da cerveja envelhecida e a refrescância da acidez, ao mesmo tempo em que trazia equilíbrio pela doçura e maciez da cerveja jovem. Antes do século XX, processos de controle microbiológicos eram menos bem conhecidos, de modo que tanto lambics quanto as cervejas de Flandres deviam ser mais ácidas do que são hoje. Lambics costumavam ser adoçadas no copo; as cervejas de Flandres, por sua vez, tornavam-se naturalmente adocicadas por meio do blend, ganhando equilíbrio.

O hábito de blendar também obedecia a imperativos econômicos. A cerveja envelhecida era razoavelmente mais cara devido ao seu longo tempo de maturação, que ocupava o equipamento produtivo e diminuía a rotatividade das cervejarias. Existiam até intermediários especializados que compravam a ale jovem da cervejaria, deixavam-na maturando e a vendiam aos bares, já envelhecida, praticamente pelo dobro do preço. Sendo assim, a mistura de cervejas jovens e velhas era uma maneira de oferecer aos clientes aquele “gosto selvagem”, tão apreciado pelos consumidores, por um preço mais baixo e em maior volume.

Antigamente, as Flanders red ales eram fermentadas espontaneamente, depois de receberem leveduras selvagens e bactérias em um koelschip, tina de resfriamento aberta que permitia a inoculação natural do mosto pela microflora do ambiente – damesma forma como ocorre ainda hoje com as lambics. Atualmente, são inoculadas de forma artificial, como quase todos os demais estilos cervejeiros: o produtor prepara o mosto e adiciona os microorganismos responsáveis pela fermentação. Contudo, em vez de serem inoculadas apenas com uma única cepa de leveduras, elas usam uma “cultura mista”, composta Saccharomyces cerevisiae (as leveduras usadas em cervejas ales) e bactérias láticas dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. A maioria das cervejarias que produzem Flanders red ales emprega uma cultura mista originária da tradicional cervejaria Rodenbach, isolada a partir da microflora que ocorria espontaneamente na cerveja no passado. O estilo é nativo da Bélgica, mas hoje também é produzido abundantemente nos polos da revolução artesanal, sobretudo nos EUA, onde a maior parte das novas incursões de microcervejarias no reino das cervejas selvagens se inicia com uma Flanders red.

Para se produzir uma cerveja no estilo, um mosto de coloração escura é brassado e inoculado com essa cultura mista (ainda em tanques de aço inox). Num primeiro momento, as leveduras do gênero Saccharomyces se reproduzem e rapidamente dominam o mosto, realizando a fermentação alcoólica primária em torno de uma semana. Até aí, o processo difere muito pouco em relação a uma ale comum. Assim que a atividade das Saccharomyces diminui devido à escassez de açúcares fermentáveis restantes, as bactérias do gênero Lactobacillus tomam a dianteira e começam a metabolizar os carboidratos remanescentes. Essa segunda fermentação não produz álcool, mas sim ácido lático, resultando na acidez característica do estilo. Os Lactobacillus são pouco tolerantes à diminuição no nível de pH, de modo que, depois de mais ou menos um mês desde o início da fermentação, são substituídos pelas bactérias do gênero Pediococcus, que finalizam a fermentação lática.

A Rodenbach exibe em sua cave uma das mais 
impressionantes coleções de tonéis de carvalho – os 
foeders – do mundo cervejeiro, e lá promove 
refeições para grupos.
Fonte: www.palmbreweries.com
Depois desse período de fermentação, que pode durar até dois meses, a cerveja “jovem” está pronta. Ela tem uma boa dose de açúcares residuais e exibe certa acidez, além de aromas frutados e de especiarias típicos de ales. Pode ser usada imediatamente para blendar, ou pode ser reservada para envelhecer em tonéis de madeira por um período que varia entre 8 meses e 2 anos. Ao longo desse tempo, ocorre uma terceira fermentação, realizada por leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, residentes na madeira. As Brettanomyces produzem pouca acidez, mas realizam a chamada superatenuação, ou seja, consomem os carboidratos restantes da cerveja, deixando-a seca (à semelhança de uma lambic). Além disso, também produzem ésteres e fenóis de aromas característicos, importantes para o estilo. Via de regra, quanto mais tempo a cerveja permanecer nos barris, mais marcantes serão os traços de Brettanomyces no produto final. Ao final do processo, a cerveja que envelheceu em madeira normalmente é misturada à jovem para compor o produto final.

Comparado a uma lambic, o mosto de uma Flanders red ale tem diferenças importantes que influenciam as características da cerveja pronta. Em primeiro lugar, as cervejas do estilo recebem lúpulos frescos, mas costumam ser bem menos lupuladas (em torno de 10 IBUs), o que permite a proliferação mais livre de bactérias láticas. Como resultado – e contraintuitivamente em relação a nossa percepção sensorial primeira –, uma Flanders red ale normalmente tem uma quantidade total de ácidos maior do que uma lambic! Em segundo lugar, a composição de grãos é diferente. Enquanto uma lambic usa trigo não maltado para obter muito amido e um mosto pouco fermentável, as Flanders red ales normalmente usam uma proporção maior (em torno de 80%) de malte de cevada, com o milho como adjunto para fornecer um pouco de amido. O resultado é que o mosto de uma Flanders red ale é mais facilmente fermentável do que o de uma lambic. Consequentemente, a maior parte dos açúcares é consumida nas primeiras fases da fermentação, deixando menos alimento para as etapas finais, conduzidas pelas Brettanomyces. Por isso, Flanders red ales envelhecidas (sem blendar) são mais ácidas do que lambics, mas exibem aromas animais (associados às Brettanomyces) em menor intensidade.

A mistura perfeita

O traço definidor das Flanders red ales clássicas, além da acidez, é a mistura entre características da cerveja jovem e da envelhecida. A ale jovem se assemelha a uma brown ale de estirpe “belga”: tem doçura residual bem perceptível (pois não sofreu superatenuação), sabores de malte levemente tostado e aromas evidentes de ésteres e fenóis produzidos por leveduras de alta fermentação (que lembram frutas doces e especiarias, especialmente pimenta-do-reino). Mal e porcamente comparando, seria uma espécie de Belgian dubbel mais ácida e menos alcoólica. A cerveja envelhecida, por sua vez, traz traços de maturação em carvalho, pouca doçura e corpo, maior acidez, toques acéticos e aromas associados a Brettanomyces – animais e de frutas frescas e ácidas.

A arte de blendar na tradição de Flandres, em seu mais alto estado, consiste em preservar ao máximo as características de ambas as cervejas, sem ofuscar a maciez frutada e caramelada da ale jovem e nem neutralizar a acidez e os aromas animais e amadeirados da velha. A mistura também deve neutralizar as características “negativas” de cada uma das cervejas-base, corrigindo a doçura demasiada da cerveja jovem e a secura inclemente da envelhecida. O resultado deve ser uma cerveja equilibrada, em que doce e azedo se misturam de forma harmoniosa na boca, sem que ela fique enjoativa ou agressiva demais, e com altíssima complexidade aromática. Ela deve preservar o melhor dos dois mundos: o exotismo firme da fermentação espontânea e a maciez reconfortante das ales belgas. Por conta disso, Flanders red ales trazem uma “pegada selvagem” muito clara e definida, mas ainda têm características de ales belgas bem claras. Como resultado, elas assustam menos os bebedores pouco habituados a cervejas selvagens (que ainda reconhecem nelas características claras de “cerveja”, como eles entendem o termo), e normalmente fornecem uma excelente porta de entrada para esse vasto reino da selvageria cervejeira.

A proporção entre cerveja velha e jovem no blend varia de cervejaria para cervejaria, de rótulo para rótulo – bem como a definição do tempo necessário para a cerveja ser considerada “jovem” ou “velha”. Flanders red ales têm métodos produtivos um pouco mais abertos e variáveis do que as lambics. Seja como for, a proporção de cerveja envelhecida foi gradualmente diminuindo ao longo do século XX na maior parte das marcas, para atender a um mercado com menor tolerância à acidez. Apesar disso, há um movimento recente em direção a Flanders red ales mais secas e menos doces, tanto na Bélgica quanto nos novos polos da revolução cervejeira artesanal (notadamente, nos EUA), e existem cervejarias que vendem a cerveja velha pura, sem blendar – sua profundidade de caráter é absolutamente estarrecedora. Algumas cervejarias produzem blends diferentes, vendidos sob denominações distintas, que variam apenas na proporção da cerveja jovem para a velha. Os rótulos mais caros e prestigiados, via de regra, são os que têm maior proporção da parte envelhecida.

Além de dois blends distintos, a Rodenbach vende sua 
cerveja envelhecida sem blendar sob a denominação “Vintage”.
Fonte: www.bestbeersfrombelgium.eu
O que esperar de uma Flanders red ale no copo? Qual é o seu perfil sensorial? Sua coloração é entre marrom e avermelhada, normalmente límpida se for servida corretamente. O aroma surpreende inicialmente pelos traços selvagens, mais claros quanto mais elevada for a idade média do blend: acidez volátil, traços animais evidentes lembrando couro cru e estábulo (mas não tanto quanto em uma lambic), terroso e até, em alguns rótulos, uma sensação acética clara, mas nunca dominante. Contudo, logo se sentem os traços da cerveja jovem (ou seus resíduos, no caso de rótulos que não são blendados): o malte traz caramelo intenso, algum acastanhado ou achocolatado. Os ésteres frutados frequentemente lembram frutas vermelhas (cerejas, morangos maduros etc.) e vinho tinto, e há, frequentemente, uma picância fenólica remetendo a pimenta-do-reino. Acetona e uvas verdes podem advir das Brettanomyces. Traços da madeira podem ser perceptíveis por meio de aromas amadeirados ou abaunilhados. É frequente que um ataque inicial bem ácido dê lugar a uma doçura maltada final para equilibrar. O corpo costuma ser mediano, nem tão doce e pleno quanto na cerveja jovem, nem tão seco quanto na envelhecida. As melhores devem parecer ser misteriosamente capazes de equilibrar e fazer conviverem pacificamente todos os opostos imagináveis – ao mesmo tempo doces e azedas, macias e inclementes, rústicas e envolventes. Uma espécie de síntese alquímica ideal.

Flandres e a Borgonha

Se lambics são frequentemente comparadas a espumantes brut, as Flanders red ales normalmente são postas lado a lado com os vinhos tintos. Seu jogo de doce-ácido e seus aromas amadeirados e frutados, remetendo muitas vezes a frutas vermelhas, fornecem uma comparação quase imediata com muitos tintos. Aliás, algumas cervejas belgas do estilo (como a Duchesse de Bourgogne e a Bourgogne des Flandres) trazem, no rótulo, referências a uma famosa região produtora de vinhos tintos da vizinha França, a Borgonha (Bourgogne, em francês). Na realidade, Flanders red ales assemelham-se notavelmente aos tintos da Borgonha, mais do que a qualquer outro tipo de vinho do mundo.

A Borgonha é uma tradicional região vinícola reconhecida por vinhos caros e muito prestigiados, que alcançam às vezes cifras fabulosas na casa dos milhares de euros. Seus tintos são produzidos exclusivamente com uvas da variedade pinot noir – contudo, é o terroir, mais do que a variedade da uva, que mais determina as características do vinho. Muitos tintos borguinhões têm um aroma característico descrito pelos enófilos como terroso, mas que nada mais é do que o nosso já querido aroma “animal” associado às Brettanomyces, que nós, apreciadores de cervejas, aprendemos a descrever como semelhante a “cobertor de cavalo”, “couro cru” ou “estábulo”. Alguns produtores de vinho, especialmente do Novo Mundo, consideram o aroma terroso/animal como um defeito, indicador de contaminação microbiológica, mas ele faz parte do caráter tradicional da região da Borgonha. Mais do que vinhos tintos em geral, as Flanders red ales lembram muito os tintos borguinhões. Quando tive a oportunidade de tomar meu primeiro tinto da Borgonha, eu já conhecia bem as Flanders red ales. Já ao derramar o líquido no decanter, fui acometido de uma inescapável sensação de déja-vu e disse para mim mesmo: “isso é cerveja selvagem” (para meu deleite, obviamente)!

Os vinhos da Borgonha são classificados em 4 níveis: há os vinhos regionais (denominados apenas Bourgogne Rouge ou Blanc), normalmente os mais baratos, que se originam de misturas de uvas cultivadas em diferentes vilas da região. Um degrau acima na escala de preços, os vinhos de vila são feitos apenas com uvas de uma única vila, exibindo de forma mais clara o caráter daquele terroir, e sempre exibem o nome da vila no rótulo. Acima deles, existem os vinhos de “primeiro cultivo” (Premier Cru), feitos apenas com as uvas de pequenas vinícolas que se destacam dentre todas de uma região. Por fim, os vinhos de “grande cultivo” (Grand Cru) advêm exclusivamente de uvas cultivadas nas melhores vinícolas da Borgonha, e correspondem a apenas 2% da produção total.

Fonte: thewinecountry.com
O vinho que me deu esse “estalo” em relação à sua similaridade com as Flanders red ales foi o Domaine Nicolas Rossignol Bourgogne 2008, um simples vinho regional de um produtor estabelecido na vila de Volnay (conhecida por alguns dos mais delicados e femininos tintos da Borgonha). Ótimo tinto, cheio de personalidade, apesar de sua classificação algo humilde. Delicado e leve, mostrou uma acidez fresca e um corpo pouco volumoso, com taninos amenos. No aroma, convidativo, predominavam as notas animais/terrosas lembrando couro cru e estábulo, sob as quais se sentiam, em harmonia e equilíbrio, toques de morangos frescos, algum tostado de café, leve baunilha e um quê defumado. Com o tempo, melancia e solvente apareciam no nariz, sem serem totalmente agradáveis. Não se mostrou um vinho corpulento ou marcante, surpreendendo e agradando antes pelo seu frescor. Guardadas as devidas proporções, me lembrou muito a Rodenbach Grand Cru, uma das mais clássicas cervejas vermelhas de Flandres! Provando que a fronteira entre fermentados de uva e cevada, frequentemente superestimada pelos apreciadores, pode ser bem mais fluida do que imaginamos.

Na próxima parte desta matéria, faremos uma degustação comparada de sete Flanders red ales, disponíveis e não disponíveis no mercado nacional. Não perca!