sexta-feira, 1 de maio de 2015

Espumantes brazucas - Parte IV: Três rosés nacionais

“Não bebo vinho rosé porque rosa não é cor de macho!” OK, talvez essa seja uma formulação extrema e especialmente babaca, mas a verdade é que ainda há uma certa rejeição do público – mesmo considerando os apreciadores de vinhos! – para os injustiçados rosés. Tem gente que acha que não é vinho “de verdade”, ou que não é “sério”. Besteira. Os espumantes rosés podem ser tão sérios quanto quaisquer outros espumantes brancos, e o mesmo vale para os vinhos rosés sem borbulhar. Portanto, se ainda tiver algum preconceito, dispa-se dele e me acompanhe por uma degustação de três bons espumantes rosés brasileiros, todos com ótimo custo-benefício!

O processo produtivo

Na segunda parte desta matéria sobre espumantes nacionais, falamos sobre os diferentes métodos de produção de espumantes, mas não falamos nada sobre sua coloração. É chegada a hora de fazê-lo. Algumas pessoas acreditam que os espumantes rosés sejam obtidos por meio de uma mistura entre vinhos brancos e tintos, um tipo de “gambiarra” usada pelas vinícolas para obter uma coloração diferenciada. Alguns até podem ser cortes de uvas brancas e uvas tintas. Mas não é isso que explica o processo e a coloração. Para entender como um vinho pode chegar a ter essa coloração rosada, vamos primeiro repassar o básico sobre a coloração dos vinhos.

A maceração das uvas para a produção de vinho tinto.
Fonte: www.vivendoavida.net
Vinhos tintos são feitos de uvas tintas, ou seja, variedades de uvas de coloração escura. Só que, se você pegar uma uva tinta e espremê-la (pode inclusive fazer isso com aquelas variedades comestíveis que a gente compra no fruteiro, como a Niágara), vai notar que sua polpa e seu suco são brancos. A cor está toda na casca. Ora, o vinho é obtido a partir da fermentação do suco de uva, extraído da polpa. O suco de uma uva tinta é branco – então, como é que o vinho é tinto? O vinho adquire sua coloração característica durante o processo denominado maceração. Para a produção do vinho, as uvas são esmagadas e o suco começa a fermentar ainda em contato com as cascas das uvas. Nesse período, o mosto de uvas (o suco ainda não inteiramente fermentado) extrai da casca algumas substâncias, como compostos aromáticos, taninos e antocianos – estes responsáveis pela coloração. Nesse processo, o álcool age como uma espécie de solvente para potencializar a passagem desses compostos das cascas para o mosto. Ou seja: para adquirirem sua característica coloração escura, os vinhos tintos passam por uma maceração em que ficam em contato com as cascas. Se não houver contato nenhum com elas, o vinho resultante seria branco – mesmo em se tratando de uma uva tinta. Isso explica por que muitos espumantes brancos são feitos usando uvas tintas, como a Pinot Noir.

Mas e se, durante a maceração de uvas tintas, o mosto ficar “só um pouquinho” em contato com as cascas? É aí que temos os rosés. Rosés, portanto, são vinhos elaborados com uvas tintas que passaram pouco tempo em contato com as cascas durante a maceração. Isso faz com que eles tenham a leveza dos brancos (ausência de taninos, normalmente também a acidez) e, ao mesmo tempo, alguns dos aromas dos tintos, especialmente aqueles de frutas vermelhas (cerejas, framboesas, amoras, cassis etc.) – que se encontram em muitas uvas tintas. No caso dos espumantes, seu sabor é um tiquinho mais marcante que o dos brancos, o que faz com que o espumante rosé seja um aliado útil para harmonizações difíceis. A coloração, porém, não tem nada a ver com a doçura. Algumas pessoas associam vinhos rosés a vinhos doces, o que não tem nada a ver: a doçura vai depender da quantidade de açúcar residual que o produtor quiser deixar em seu vinho. Há rosés super secos, bem como outros um pouco mais adocicados.

Espumantes rosés

Os espumantes rosés não ficam devendo nada aos brancos. Podem ser tão complexos quanto eles e admitem a mesma variedade de perfis e sensações. Há rosés feitos pelo método tradicional e pelo método Charmat. Há rosés mais secos, outros mais doces. Há os baratos e há também os muito caros. O que unifica quase todos é que, em vez dos aromas frutados associados às uvas brancas (frutas cítricas e de caroço, por exemplo), surgem amiúde as frutas vermelhas ao lado dos toques de panificação, tostado e frutos secos advindos do fermento. Escolhi três espumantes rosés nacionais, todos situados numa faixa de preços ligeiramente inferior aos brancos da última postagem, para dar aos meus leitores algumas boas opções para conhecer o estilo.

Começo pelo mais barato, que apresenta um invejável custo-benefício: o Lovara Brut Rosé. A Lovara é uma vinícola localizada no município de Bento Gonçalves, no RS – portanto, nas proximidades daquela faixa de terras denominada Vale dos Vinhedos, famosa pelos seus espumantes de excelência. Tem como peculiaridade o fato de ser feito 100% a partir de uvas da variedade Grenache, pouco cultivada no Brasil, mas muito comum na Espanha (onde é conhecida como Garnacha) e na França. A Grenache costuma apresentar coloração amena e muita frutosidade, motivo pelo qual é usada frequentemente nos vinhos rosés franceses. O Lovara Brut Rosé é produzido pelo método Charmat, que permite preservar todos esses aromas frutados da variedade, mas sem abdicar dos ricos aromas de fermentação. Na taça, ostenta uma coloração rosada intensa, com perlage bem discreto. No aroma, predominam fortemente as frutas vermelhas, com destaque para morangos maduros. Ao fundo, flores brancas, nozes tostadas e massa podre, compondo um conjunto que lembra uma torta de morangos. Apesar da suculência das frutas, na boca ele é bem seco, com acidez bastante expressiva e refrescante e um final perceptivelmente amargo, de grande persistência e que pede novo gole. O corpo é bem leve e crocante (como é comum nos espumantes secos feitos pelo método Charmat), com carbonatação expressiva. Trata-se de um espumante fresco, vívido e refrescante, que se destaca pelas frutas vermelhas e pelo amargor. Na faixa dos R$ 30, é uma excelente compra para momentos descompromissados de celebração.

Fonte: 
http://etilicasnotas.blogspot.com.br/
O segundo rosé desta seleção é feito pelo gigante Miolo Wine Group – aposto como você já tomou algum Miolo na vida, quer tenha notado, quer não. A Miolo possui uma série de propriedades no RS, mas este rótulo em especial é produzido na própria vinícola Miolo, localizada também no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. O Miolo Cuvée Tradition Brut Rosé é produzido pelo método tradicional, com 12 meses de maturação sobre leveduras. Interessante notar que ele não é feito apenas com uvas tintas: ele é produzido com as variedades Chardonnay (branca) e Pinot Noir (tinta) – por sinal, as mesmíssimas usadas na versão branca do mesmo vinho. O que muda, apenas, é o tempo de contato com as cascas da Pinot Noir. Na safra 2011, apresentou coloração escura e vibrante, numa tonalidade cereja escura (o que indica que o Pinot Noir passa um bom tempo com as casca para extrair coloração), com pouco perlage e creme fugaz, parecendo até um vinho tranquilo na taça, e não um espumante. O aroma é pleno e intenso, embora pouco complexo para o método tradicional: destacam-se as frutas vermelhas, com destaque para cerejas e groselha, com uma camada de panificação (biscoito de forno e pão fresco) se revelando apenas com o tempo. Na boca é menos interessante: é relativamente seco, mas tem acidez muito suave para meu gosto e termina num final um pouco inexpressivo e fechado. Não tem amargor, ao contrário de muitos outros rosés – para alguns, isso é qualidade a se destacar, já que há quem considere o amargor um defeito nos rosés (não é o meu caso). É um rótulo que ousa pouco na boca, e por isso mesmo tem potencial para agradar um número maior de pessoas. O corpo é mediano, com alguma cremosidade. Na faixa dos R$ 40, é uma boa opção para conhecer um rosé elaborada pelo método tradicional, mas eu gostaria de que ele fosse mais ousado.

Fonte: qvinhos.blogspot.com
Deixo para o final, com o devido destaque, um rosé elaborado pela tradicional vinícola Dal Pizzol, localizada em Bento Gonçalves, também na região do Vale dos Vinhedos. O leitor atento terá notado que eu selecionei, nesta matéria, 6 espumantes da mesma região, o Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha – trata-se do nosso terroir mais destacado para a produção de espumantes de alta qualidade. O Dal Pizzol Rosé Brut é feito com as variedades Chardonnay e Pinot Noir, com a peculiaridade de que os vinhos de base são misturados ainda antes da fermentação primária, quando são apenas mosto. Ele é feito pelo método Charmat, com 60 dias de contato com as leveduras após o fim da refermentação, propiciando a surgimento de aromas associados às leveduras. Sua coloração é bonita, delicada e peculiar, a mais clara dos três espumantes analisados aqui, oscilando entre o salmão, o rosado e o alaranjado, com perlage disperso. Seu aroma é pleno, vibrante e complexo, com boa interação entre frutas e toques de panificação. Predominam os morangos, frescos e maduros, aos quais se somam baunilha, algum tostado e uma profusão de frutos secos (amêndoas torradas e nozes), em boa intensidade. O final traz uma sensação cítrica lembrando suco de laranja, muito refrescante. Na boca tem pegada e personalidade: há um amargor inicial muito fino, que dá lugar à acidez predominante (com sensação de suco de laranja), finalizando novamente com o suave amargor. Uma doçura suave de segundo plano, correta, acompanha todo o gole. O corpo é leve e crocante. Na minha opinião, é o mais interessante dos três, complexo e atrevido, provando que um bom espumante elaborado pelo método Charmat pode fazer frente a outros feitos pelo método tradicional – caso do Miolo analisado acima. Pode ser encontrado a partir dos R$ 50, configurando uma ótima compra para celebrar.

Caso você duvidasse da qualidade dos vinhos brasileiros, espero que, a esta altura, 6 rótulos depois, você tenha sido convencido de que, pelo menos no que toca aos espumantes, temos um monte de rótulos interessantes que oferecem uma ótima oportunidade de beber bons produtos sem pagar tão caro. E espero também que eu tenha conseguido despertar, nos meus colegas cervejeiros, pelo menos uma vontade de pular a cerca e provar alguns vinhos de vez em quando. Por conta da carbonatação, os espumantes podem ser alguns dos vinhos mais próximos das fronteiras com o mundo cervejeiro. Então que tal começar por um desses seis bons espumantes nacionais? Duvido que você vá se arrepender!