sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte VIII: A dança dos cinco

Existem várias maneiras de comparar cervejas. A mais simples delas consiste simplesmente em dizer, dentre um número limitado de rótulos, qual nos agradou mais. Pode ser a mais agradável de uma noite de degustações, ou a que mais nos impressionou dentre as representantes de um estilo, ou a mais instigante dentre as produzidas por uma cervejaria – ou até mesmo a que mais nos agradou dentre todas as que já bebemos na vida. Mas essa também é a forma mais inútil de comparar cervejas. Ora, a satisfação não apenas é um critério altamente subjetivo e intransferível como também depende da situação, do contexto: a cerveja que mais me agradou hoje pode não ser a que mais me agradará amanhã. Pode ser que a garrafa que tomei hoje estivesse especialmente fresca, ou pode ser que o papo que a acompanhou estivesse especialmente animado, ou talvez que o prato que a escoltou fosse uma combinação especialmente feliz.

Estabelecer critérios objetivos e claros é o primeiro passo para tornar útil qualquer comparação – isto é, para que ela possa servir de guia para outras pessoas, em outras situações. Claro que, a partir desse momento, surge a dúvida mais importante: a partir de qual critério serão comparadas as cervejas? Cervejas possuem diversos atributos objetivos que podem ser comparados adequadamente: coloração, densidade do corpo, sensação alcoólica, percepção frutada, doçura, amargor, acidez, e por aí vamos. É preciso escolher um, ou um pequeno número deles, para tornar nossa comparação útil. Claro que cada critério escolhido resultará em resultados muito diferentes. Façamos um teste a partir dos 5 rótulos de bières brut que discutimos no último post. Em primeiro lugar, se escolhermos como critério o amargor, teremos a seguinte escala:


No entanto, se optarmos pela acidez, o resultado seria mais semelhante ao que temos abaixo:


E se quisermos comparar a doçura?



Alguns poderão protestar: “Uma comparação desse tipo, característica por característica, é inútil! Eu quero saber qual delas é a melhor!” Melhor para quê? A mais refrescante? Talvez a mais marcante? Ou a mais complexa? Quem sabe a mais suave ao paladar? Qual é o critério mais correto? Nenhum – ou melhor, qualquer um. Tudo depende do que você espera que a cerveja faça por você. Se o objetivo é refrescar, ou quem sabe cortar melhor a untuosidade de um queijo cremoso, pode ser interessante buscar aquela com maior acidez – a Eisenbahn Lust. Já se você pretende servir com um prato muito apimentado, pode ser interessante evitar a de maior amargor – a Malheur Bière Brut – e optar pela mais adocicada – Deus Brut des Flandres. Se você quer uma sensação intensa, procure aquela que apresenta a maior soma entre acidez e amargor – justamente a Malheur, a mesma que evitaríamos há pouco!

Decompor uma cerveja da forma como fizemos é o primeiro passo, mas podemos partir dele para começarmos a elaborar comparações mais complexas e interessantes, conjugando diversos critérios. Se selecionarmos os nove mais importantes aspectos associados ao estilo bière brut, podemos traçar um perfil geral descrevendo de que forma, e com que tipo de equilíbrio, cada rótulo concretiza o estilo.



Gráficos como esse, a princípio, podem parecer confusos, mas basta observar com calma para perceber que ele consegue revelar, simultaneamente, as características que mais diferenciam os rótulos uns dos outros – ou seja, seu perfil particular dentro do estilo. Vejamos como cada um dos rótulos se destaca nesse comparativo:

Deus Brut des Flandres: leve, adocicada, frutada e com especiarias
Wäls Brut: leve, frutada, amarga
Malheur Bière Brut: amaga, ácida, madura
Eisenbahn Lust: ácida
Eisenbahn Lust Prestige: madura, floral

Estamos falando, ainda, em características sensoriais objetivas. Claro, podemos ter maior ou menor sensibilidade a este ou aquele gosto ou grupo de aromas, mas essas são características que estão de fato nas cervejas, e não apenas na consciência do degustador. Mas tenho afirmado, desde o primeiro post deste blog, que as cervejas também podem traduzir experiências e conceitos culturais. Podemos agrupar várias características sensoriais e traduzi-las com conceitos culturais. Comparadas com dados sensoriais objetivos, categorias culturais têm a vantagem de poderem transmitir de forma mais direta e mais facilmente compreensível a complexidade das experiências humanas – que é o que buscamos, afinal de contas, ao sentarmos em uma mesa para dividir uma garrafa com pessoas queridas.

Peguemos o conjunto de nove características que escolhi para representar o estilo bière brut (aquelas descritas no gráfico acima). Dentre essas possibilidades, poderíamos chamar de “jovial” uma cerveja com mais frescor (acidez, aromas frutados), em contraste com uma cerveja mais “madura” (amargor, mais traços de maturação e especiarias). Também podemos chamar de “elegante” uma cerveja leve, delicada e complexa, ao passo que seria mais “rústica” uma cerveja com mais amargor, mais corpo e mais pegada. Com isso, poderíamos comparar melhor a identidade de cada rótulo a uma situação, uma personalidade, uma pessoa – falamos em pessoas “joviais” ou “maduras”, descrevemos pessoas, lugares e ocasiões como “elegantes” ou “rústicos”; mas não falamos – a não ser metaforicamente – em pessoas e situações “frutadas”, com “especiarias” ou “ácidas”. Então façamos a seguinte brincadeira: se as nossas 5 bières brut fossem pessoas, que personalidades elas teriam?


Comparações desse tipo nos ajudam a definir melhor a vocação de cada um desses rótulos ao aproximá-los de palavras que usaríamos para descrever pessoas e situações. Se eu quero escolher a bière brut ideal para servir em uma festa ou presentear uma pessoa, posso começar a partir das seguintes perguntas: eu descreveria a atmosfera de minha festa ou a personalidade da pessoa como madura ou jovial? Rústica ou elegante? Para cada possibilidade, um rótulo irá atender melhor o meu objetivo e transmitir exatamente a sensação que estou buscando.

Essas comparações não são úteis apenas para o consumidor final, para obter a melhor sensação ao consumir a cerveja. Também podem ajudar um publicitário a vender uma cerveja explorando sentimentos e imagens condizentes com o perfil sensorial do produto – garantindo que a experiência oferecida pelo produto condiga com a imagem transmitida. A indústria nacional de cervejas – em especial as macrocervejarias, as únicas com orçamento para publicidade – está acostumada a uma publicidade que, via de regra, não tem nada a ver com o perfil sensorial de seus rótulos. Mas, se as cervejas artesanais querem vender um produto cujo maior diferencial são as sensações no paladar, precisa saber explorá-las adequadamente em sua comunicação.

Igualmente, uma sistematização como essa pode nos ajudar a imaginar possibilidades de cervejas que ainda não existem, mas que podem se tornar realidade. É fácil identificar pelo gráfico acima que ainda não temos no mercado nacional uma bière brut decididamente jovial e elegante. Podemos tentar imaginar como seria essa cerveja: leve, complexa, delicada, muito frutada e floral, com poucas características picantes ou de maturação. Identificando essa lacuna, um cervejeiro poderia desenvolver uma receita para ocupar esse nicho, garantindo que seu produto iria se diferenciar de suas concorrentes e apresentar algo novo.

Espero que tenha ficado claro por que simplesmente não faz sentido nos perguntarmos sobre qual “a melhor bière brut”. Cada uma possui uma proposta diferente. Tudo o que podemos fazer é reconhecer a qual proposta nós nos identificamos mais e tentar observar de que forma cada rótulo consegue concretizar a sua proposta. É lugar-comum afirmar que não podemos avaliar uma cerveja fora do seu estilo – não faz sentido, por exemplo, esperar de uma bière brut as características de uma Russian imperial stout. Mas eu iria além: da mesma forma, não é condizente esperar que uma Deus Brut des Flandres tenha as mesmas características de uma Malheur Bière Brut, apesar do fato de pertencerem ao mesmo estilo. Simplesmente não é a mesma a proposta que cada uma busca concretizar. Ter respeito com uma cerveja e com os profissionais que a produziram é saber reconhecer sua proposta específica e julgá-la apenas e tão-somente de acordo com ela. Não julguemos o quanto a Deus Brut des Flandres obtém sucesso em ser uma cerveja rústica e jovial – pois ela não se propõe a sê-lo. Talvez seja melhor avaliar o seu sucesso ao tentar ser uma cerveja elegante, o que condiz mais com o seu perfil.

Com isso, chegamos ao final desse dossiê sem nenhuma certeza, mas cheios de novas perguntas e caminhos a trilhar. Entendo que alguns leitores possam ter ficado decepcionados ao não encontrarem o meu veredito a respeito da “melhor bière brut”. Talvez alguns até mesmo estivessem apenas esperando por isso. Mas não é assim que deve ser – se chegamos a conclusões certas demais, é porque abdicamos de seguir o caminho por tempo o suficiente para termos uma visão mais abrangente. O mundo cervejeiro é um horizonte aberto de possibilidades, cheio de pontos de partida mas sem pontos de chegada. Meu interesse é contribuir para que ele continue assim. 

Um brinde ao ano-novo, e por um 2012 com menos certezas, ostentação e hierarquias, e com mais diversidade, surpresa e descobertas!

Perdeu as partes anteriores desta matéria sobre as bières brut? Confira!

Leituras adicionais

Se quiser se aprofundar em alguns dos assuntos tratados nesta matéria sobre as bières brut, recomendo vivamente as leituras indicadas abaixo. Os artigos científicos citados podem ser acessados online, mas alguns requerem filiação a redes de periódicos científicos e pagamento de anuidades. Boa parte dessas redes pode ser acessada gratuitamente a partir dos terminais de grandes universidades públicas para se obterem cópias digitais desses artigos.

ALEXANDRE, Hervé; GUILLOUX-BENATIER, Michèle. Yeast autolysis in sparkling wine - a review. Australian Journal of Grape and Wine Research, Adelaide, Austrália: Australian Society of Viticulture and Oenology, v. 12, n. 2, p. 119-127, jul. 2006. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1755-0238.2006.tb00051.x/pdf.

Acesso em: 01 dez. 2011.

DHARMADHIKARI, Murli. Yeast autolysis. Disponível


Acesso em: 03 dez. 2011.

JACKSON, Michael. Great beers of Belgium. 6ª edição rev. e ampl. Boulder, Colorado: Brewer’s Association, 2008.


LEROY, M. J. et alii. Yeast autolysis during champagne aging. American Journal of Enology and Viticulture, Davis, CA: American Society for Enology and Viticulture, v. 41, n. 1, mar. 1990. Disponível em: http://ajevonline.org/content/41/1/21.full.pdf+html. Acesso em: 03 dez. 2011.

LIGER-BELAIR, Gérard. The Physics and Chemistry behind the bubbling properties of champagne and sparkling wines: a state-of-the-art review. Journal of Agricultural and Food Chemistry, Davis, CA: University of California, n. 53, v.

8, p. 2788-2802, mar. 2005. Disponível em: http://pubs.acs.org/doi/pdf/10.1021/jf048259e.

Acesso em: 01 dez. 2011.



sábado, 24 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte VII: Quinteto virtuoso


Estou ciente de que este era o momento que algumas pessoas estavam aguardando desta matéria sobre as bières brut. Sabemos que essas cervejas não são exatamente baratas, e nem todo mundo pode se dar ao luxo de simplesmente sair provando todas para decidir qual bate mais com o seu paladar. Tendo isso em vista, uma avaliação dos 5 rótulos disponíveis no mercado nacional certamente é útil. Os leitores que estiverem querendo provar uma cerveja do estilo e não sabem por qual começar podem ter alguma luz; e aqueles que já provaram todas podem concordar ou discordar do comparativo, ou quem sabe retornar a este ou aquele rótulo com um novo olhar depois de tudo o que discutimos por aqui. Ainda assim, sinto que tudo o que discutimos até aqui nos ajuda a extrair dessas cervejas uma experiência mais completa e instigante; e espero que os bravos leitores que nos acompanharam até aqui compartilhem essa opinião.

Espere aí, eu disse 5 rótulos? Sim, cinco. Não está faltando algum? Vamos aos esclarecimentos: os rótulos que selecionei para compor o painel comparativo são: Deus Brut des Flandres, Wäls Brut, Malheur Bière Brut, Eisenbahn Lust e Eisenbahn Lust Prestige. Deixei de fora a Malheur Dark Brut, já que o estilo-base a partir do qual ela é produzida (Belgian dark strong ale) lhe dá características que divergem completamente do perfil que delineamos na última parte. Alguns também se indagarão a respeito da Infinium Ale (produzida em parceria da Samuel Adams com a Weihenstephaner); contudo, esta cerveja, apesar de sua “aura” de champagne, não passa pelo método champenoise.

Como ocorreu a degustação? Infelizmente, não tive a oportunidade ($$) de realizar uma degustação simultânea comparativa dos cinco rótulos. Sinto desapontar os mais românticos, mas os historiadores não estão ganhando tão bem, assim. Dessa forma, o comparativo foi feito a partir de minhas notas de degustação das ocasiões em que degustei cada um desses rótulos. Seria extremamente interessante refazer o comparativo com as cinco garrafas na mesa, mas a ocasião deverá esperar até que eu ganhe na mega-sena ou seja adotado por um mecenas generoso – o que ocorrer primeiro.

Mas chega de conversa fiada e vamos a elas!


Deus Brut des Flandres

Aparência: coloração amarela clara, acinzentada, transparente, com espuma abundante que se diminui rapidamente e deixa uma camada perene.

Aromas: excelente harmonia e equilíbrio de aromas frutados, condimentados e florais. Predomina um aroma adocicado de manjericão fresco, acompanhado de frutado expressivo (com remissões de uvas verdes, lima-da-Pérsia, laranja, guaraná, tutti-frutti). Álcoois revelam perfume floral de rosas, sugerido gim e Cointreau. Toques condimentados trazem cravo e algo apimentado (fenólico ou de lúpulo?). Há uma sutil "sensação de lambic" (amêndoas?). Possivelmente a que apresenta maior complexidade aromática.
Paladar: o trio doce-picante-amargo se desenvolve em sequência na boca e mostra bom equilíbrio, com acidez bem presente e um toque salgado considerável. Menos ácida que outras do estilo.
Sensação na boca: corpo leve e incrivelmente limpo, com sensação frisante delicada e “crocante”. Baixa mineralização dá a sensação de “engolir nuvens”.

A cerveja que originou o estilo apresenta alta complexidade de aromas e harmonia modelar entre seus perfis frutado, floral/alcoólico e condimentado. Um toque herbal bem expressivo e bem integrado aos ésteres frutados sugere manjericão e me agrada muito. O lúpulo é pouco expressivo. Com sensação extremamente limpa e leve, deixa um perfume persistente na boca. Tem paladar delicado e feminino, em especial devido ao fato de ser uma das mais adocicadas do estilo. A longa maturação (todo o processo produtivo leva mais de um ano) lhe dá boa complexidade de álcoois aromáticos em harmonia. Para mim, segue sendo um modelo de harmonia, além de uma das mais surpreendentes cervejas que já bebi.

Veja aqui a avaliação completa.


Wäls Brut


Fonte: http://espacovinil.blogspot.com
Aparência: dourada radiosa e transparente, com creme menos abundante, mas persistente, e carbonatação visivelmente mais suave.
Aromas: muita complexidade, com predomínio de aromas frutados e florais. O perfil frutado revela a identidade do fermento usado pela cervejaria em notas de mamão papaya, pêras frescas e polpa de maçã, e o perfil floral combina os álcoois superiores (lembrando essência de rosas) ao aroma floral do lúpulo, sugerindo variedades alemãs tradicionais. O malte, limpo, traz uma doçura de mel. Bem ao fundo, o frescor aromático é temperado por uma leve "sensação de lambic" (amêndoas?), e toques sutis de cravo e pimenta.
Paladar: doçura e amargor se equilibram competentemente e se justapõem durante todo o gole. A percepção de acidez é baixa para o estilo (talvez pela baixa carbonatação), diminuindo a refrescância e a vividez mas trazendo boa limpeza. Apesar de a cerveja não levar um licor de expedição adocicado, a cerveja de base deixa boa dose de açúcares residuais, resultando em final seco mas bem equilibrado.
Sensação na boca: muito leve e seco, elegante e delicado, com forte sensação de limpeza que não agride a garganta. Carbonatação menos acentuada que em outras do estilo.

Caçula no estilo, a Wäls Brut apresenta uma proposta muito interessante, com grande complexidade aromática, paladar mais direto (mas consistente e equilibrado) e sensação bem limpa na boca (a baixa carbonatação, considerando-se o estilo, contribui com isso). Mostra-se bastante seca, mas de forma delicada. Lembra bastante o perfil aromático de uma boa Belgian golden strong ale, mas mais complexa, delicada e limpa. Algumas pessoas não gostam de bières brut porque elas não possuem a rusticidade de uma cerveja, mas esta Wäls consegue a proeza de obter aquela sensação diáfana do estilo sem abdicar de algo dessa pegada mais de “cerveja” (amargor, aroma de lúpulo). Um equilíbrio difícil.

Veja aqui a avaliação completa.


Malheur Bière Brut

Aparência: cor dourada intensa, com opacidade excessiva para o estilo (visível já desde a garrafa e mesmo em temperatura mais alta) e boa espuma.
Aromas: perfil definido de uma Belgian golden strong ale, com frutado predominante, características secundárias de malte e floral e toques condimentados e de envelhecimento. Ésteres remetem a pêras e maçãs, com um toque de tinta fresca, equilibrados por um vívido floral de rosas. O malte é bem presente (mais que em outros rótulos do estilo), com toques de mel e marrom-glacê. Toques apimentados complementam o aroma, bem como uma sutil e interessante sensação de tabaco/tostado, provavelmente oriunda das leveduras em autólise.
Paladar: predomina o amargor seco e persistente, como de uma golden strong ale bem seca, chegando até a raspar um pouco na garganta combinado ao intenso aquecimento alcoólico. A acidez é bem expressiva, e a doçura não chega a equilibrar de forma delicada o conjunto. Produz uma sensação decididamente mais rústica e assertiva.
Sensação na boca: corpo leve e bem seco, com ótima textura acetinada (imagino que fruto da autólise). O aquecimento alcoólico agride um pouco a garganta, e ela não apresenta aquela limpeza ao engolir que é típica do estilo.

Concorrente belga da Deus, a Malheur Bière Brut apresenta características decididamente diferentes dela, apostando em um perfil mais rústico e assertivo, com amargor destacado e sensação alcoólica considerável. A complexidade e o equilíbrio aromático, para mim, mostram-se um pouco inferiores a suas concorrentes. O ponto positivo fica para as características de maturação e envelhecimento, que lhe dão toques bastante interessantes e sugerem um tempo razoável sobre leveduras (o fabricante não indica quanto tempo ela matura). Trata-se de uma bière brut mais viril, masculina, talvez até um pouco grosseira em relação ao estilo, com “pegada” – é uma cerveja que muitas vezes se torna a bière brut preferida daqueles que não gostam do estilo. Não é para meninos. Aproxima-se de uma Belgian golden strong ale, e este talvez seja seu calcanhar-de-Aquiles: apresenta preço pouco atraente para oferecer uma sensação semelhante às strong golden ales, muito mais baratas.

Veja aqui a avaliação completa.


Eisenbahn Lust

Aparência: cor dourada radiosa, com boa transparência inicial, mas turbidez no fundo da garrafa. Espuma volumosa, diminui rapidamente mas deixa uma camadinha perene.

Aromas: inusitada diante do estilo, talvez por conta de ser o rótulo com menor tempo de maturação com as leveduras de espumante. Apresenta intenso perfil lembrando lambics e também espumantes (amêndoas), acompanhado de sólido perfume floral. O frutado traz abacaxi (como na cerveja de base, a Strong Golden Ale da cervejaria), mas é menos expressivo. Percebe-se um leve aroma de lúpulo floral e condimentado. Minha garrafa estava quase no limite da validade, o que pode explicar as características de oxidação remetendo a amêndoas, que mostraram-se bem mais intensas do que o esperado para esta cerveja, que matura por pouco tempo com as leveduras. Possui pouca complexidade para o estilo, mas se destacou pelo perfil inesperado e relativamente intenso lembrando lambics, muito interessante. Pode ter sido uma anomalia da minha amostra?
Paladar: bastante ácido, com uma doçura correta mas não excessiva para equilibrar. Bem atenuada se comparada com a cerveja de base. O amargor aparece suave ao final.
Sensação na boca: corpo leve e delicado, com ótima sensação “crocante” devido à alta carbonatação. Uma suave sensação alcoólica aparece ao final, equilibrada.

Rótulo “de combate” da Eisenbahn, a Lust comum matura por apenas 3 meses e, até por conta disso, apresenta perfil fresco e vívido. Na minha amostra, destacaram-se características lembrando cervejas do tipo lambic (talvez características acentuadas de oxidação com aromas de amêndoas, mas talvez até se possa aventar contaminação por Brettanomyces nesta garrafa), ao lado de forte floral. Forte acidez, a mais alta entre os rótulos degustados, lhe dá vividez e brilho, mas menos elegância e limpidez. No mais, apresentou menor complexidade do que o esperado pelo estilo – a maturação abreviada com leveduras, insuficiente para aprofundar a autólise, pode explicar isso. Apresenta a sensação perfumada, leve e delicada típica do estilo por um preço atraente diante das concorrentes. Desconfio que a forte lembrança de lambic não seja típica do rótulo na intensidade em que a encontrei, de modo que valeria fazer uma nova degustação.

Veja aqui a avaliação completa.


Eisenbahn Lust Prestige

Aparência: dourada média, bem transparente, com perlage evidente e espuma pouco persistente

Aromas: possui perfil aromático maduro e consistente, bem integrado, em que frutados e florais frescos predominam sobre características mais “fechadas” de envelhecimento. Equilibram-se notas expressivas de abacaxis frescos (com tutti-frutti ao fundo) e rosas. Um lúpulo floral e condimentado aparece sutilmente. O envelhecimento estendido contribui com aromas maduros mais destacados do que nos outros rótulos degustados, lembrando amêndoas cruas, toque mineral e amanteigado e uma remissão a mel ou xarope ao fundo. O malte se faz presente lembrando pão doce. Uma presença de compostos sulfúricos (dimetil sulfeto e dimetil trissulfeto, lembrando legumes refogados no alho) lhe tirou um pouco do brilho e pureza.
Paladar: consistente e bem-resolvido, com amargor levemente predominante mas muito bem equilibrado pela acidez precisa e pela doçura. Todas essas sensações se misturam de forma harmônica na boca.
Sensação na boca: corpo leve e seco, com alta sensação frisante

Uma versão mais madura e consistente da Eisenbahn Lust, com aromas de envelhecimento que se destacam em relação às demais representantes do estilo, equilibrando o vívido frescor frutado-floral e conferindo-lhe muita elegância. Poderia apresentar mais complexidade e mais pureza de aromas – já peguei algumas garrafas com defeitos sulfúricos e de autólise intensos o bastante para prejudicar decisivamente a degustação, o que é complicado numa cerveja nessa faixa de preço. Em relação à versão “normal” da Lust, mostra-se menos ácida e mais seca, com frutado mais fresco e presente. Um rótulo delicado e sofisticado, muito distante da receita que lhe serve de base.

Veja aqui a avaliação completa.


Na próxima – e derradeira! – parte desta matéria sobre as bières brut, farei alguns comentários comparativos a respeito dos cinco rótulos degustados, confrontando suas qualidades, perfis e vocações. Não perca!

Perdeu as partes anteriores deste artigo? Veja aqui:
Parte VI: O perfil sensorial

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte VI: O perfil sensorial

Chegamos então à grande questão: diante disso tudo, o que podemos esperar, sensorialmente, das bières brut? Comecemos vendo o que o processo produtivo pode nos adiantar sobre seu perfil sensorial, e depois tentemos fazer uma descrição sistematizada do estilo.

Expectativas iniciais

As bières brut não estão cadastradas em nenhum dos dois grandes guias de estilos usados por produtores e sommeliers de cerveja (o do BJCP e o da Brewer’s Association). No BJCP, elas seriam classificadas no estilo 16E (Belgian specialty ale) ou simplesmente no 18D (Belgian golden strong ale). Em parte, a pouca tradição do estilo e o número inexpressivo de rótulos justificam a ausência do estilo nos guias. Apenas o portal norte-americano Beer Advocate apresenta uma categoria à parte para o estilo, denominada “bière de champagne / bière brut”; contudo, a denominação engloba cervejas com outros perfiis sensoriais, com teor alcoólico variado, e até algumas que sequer passam pelo método champenoise! De qualquer modo, avaliando-se pelos rótulos que vemos no mercado nacional, e pelas características do processo produtivo, é possível delinear um perfil do estilo nascente, e é o que tentarei fazer aqui.

Em primeiro lugar, o estilo de base fornece a maior parte das características sensoriais que podemos esperar das bières brut. Nos exemplares típicos do estilo, a receita de base é uma tripel ou uma Belgian golden strong ale, cervejas que se caracterizam pelo alto teor alcoólico, pela relativa secura (mais acentuada nas golden strong ales) e pela enorme complexidade de aromas secundários, em especial os ésteres, os álcoois superiores e os fenóis, resultando em características frutadas, florais e de especiarias.

O método champenoise responde por algumas outras características comuns ao estilo. A fermentação na garrafa produz uma alta carbonatação e uma forte sensação frisante, comparável à dos espumantes, que contribui para tornar o corpo mais leve. A levedura de espumantes pode contribuir com uma nova camada de complexidade aromática. A longa maturação em leveduras acentua ainda mais o perfil de características frutadas e florais, além de atenuar o amargor e o aroma do lúpulo. Por fim, o fato de a cerveja ser comercializada sem as leveduras na garrafa é muito relevante: em primeiro lugar, isso a torna totalmente brilhante e transparente, aumentando sua atratividade na taça. Além disso, a sensação na boca se torna mais leve, e a sensação ao engolir é limpa e refrescante. Desaparece aquela sutil terrosidade ou rugosidade na textura das cervejas belgas e, como resultado, o gosto permanece na boca mais límpido e cristalino.

A longa maturação responde ainda por algumas características que aproximam as bières brut de cervejas envelhecidas. Em algumas degustações de bières brut, pude identificar um aroma que também se encontra também em muitas lambics (cervejas de fermentação espontânea que chegam a ser maturadas por anos antes de serem comercializadas). Há dois tipos de aromas bem típicos das lambics: os aromas animais ligados à ação das leveduras "selvagens" do gênero Brettanomyces e os aromas de oxidação. A primeira possibilidade é pouco provável no caso das bières brut (que, a princípio, não recebem leveduras selvagens), mas a segunda condiz com a longa maturação pela qual ambos os estilos passam. Trata-se de um composto químico derivado de reações de oxidação e formado durante a maturação, o benzaldeído, que tem um aroma de amêndoas cruas (não as torradas), entre o terroso e o mineral. Acredito que essa característica deva responder pela sutil "sensação de lambic" que eu percebi em algumas bières brut, mas a questão ainda segue um pouco nebulosa para mim.

Davi e Golias. 
Sério que você quer comparar?
O resultado disso tudo: uma cerveja leve, delicada, muito complexa e aromática, com alta acidez e refrescância na boca, paladar razoavelmente seco, sabor leve, sensação muito limpa, uma gostosa picância do álcool e dos fenóis e delicados traços de envelhecimento. Aí é que entra o perigo: muitos amantes de cervejas se acostumaram a ter preferência por estilos pesados, marcantes, opulentos, avassaladores – monstros maltados ou lupulados como Belgian dark strong ales, Russian imperial stouts, Imperial IPAs, barleywines... E as bières brut são o contrário disso tudo. São delicadas, são graciosas, são elegantes. Não são espalhafatosas e nem extremamente marcantes. São cervejas feitas para você se sentir nas nuvens, e não para te arrastarem numa torrente de sensações intensas.

Para tentarmos uma sistematização dessas características, esbocei uma definição do estilo como a que encontraríamos em um guia como o BJCP:

Bière brut

Aroma: muito complexo, com presença significativa de ésteres frutados, remetendo a pêras, frutas cítricas, maçãs, abacaxi etc. Fenóis apimentados ou de especiarias em nível moderado. Presença moderada a sólida de um floral perfumado, remetendo a essência de rosas. Podem ser perceptíveis traços suaves a moderados de oxidação, envelhecimento e autólise, como um aroma amendoado ou toques minerais e de tabaco. Lúpulo de aroma remete a variedades nobres, mas é pouco intenso. Sem ardor ou aroma solvente, e baixo aroma de álcool. O caráter de malte é sutil.
Aparência: coloração amarela clara a dourada média, sem turbidez, com brilho e transparência intensos. Espuma de grande volume e persistência mediana, deve deixar marcas na taça.
Sabor: complexidade de sabores frutados, de álcoois superiores (florais) e fenólicos com perfil de malte secundário. Ésteres remetem a pêras, abacaxi, frutas cítricas, maçãs. Presença moderada de picância fenólica. O perfil de malte deve apresentar uma doçura suave e limpa, remetendo a mel ou pão doce. Álcoois devem ser notáveis, mas de caráter adocicado e perfumado, com aquecimento suave na garganta, sem agredir. Características de oxidação e autólise podem estar presentes, mas não devem se destacar sobre as demais. Doçura deve ser suave, assim como o amargor, com uma expressiva acidez realçada pela alta carbonatação causando uma sensação refrescante. O final é seco, mas não muito amargo.
Sensação na boca: corpo relativamente leve, bastante seco considerando-se o teor alcoólico e a gravidade original, com forte sensação de limpeza no final do gole. Não deve haver sensação terrosa e nem rugosidade, embora uma textura sutilmente cremosa ou acetinada seja desejável.
Impressão geral: uma ale forte de estilo belga com intensa complexidade aromática, corpo leve e seco e com sensação limpa e vívida.
História: surgida no início do século XXI a partir do emprego de técnicas de produção de espumantes da região de Champagne.
Comentários: lembra uma Belgian golden strong ale, mas com amargor menos acentuado, maior complexidade aromática e corpo mais leve e seco. A sensação limpa e fresca é causada pela forte atenuação, pela ausência de leveduras, pela acidez e pela alta carbonatação, e deve dar uma impressão de vividez e elegância, realçando as características picantes e de especiarias. Produzidas de acordo com o método tradicional de produção de vinhos espumantes.

Discorda da descrição acima para o estilo? Deixe um comentário!

Nas próximas partes desta matéria, farei uma avaliação dos cinco rótulos do estilo disponíveis em nosso mercado brasileiro, seguida de alguns comentários comparativos. Acompanhe!


Perdeu as partes anteriores deste artigo? Confira aqui:

Bières brut - Parte V: O mercado brasileiro


É curioso que um estilo com raízes francesas e belgas tão fortes, unindo os métodos tradicionais de produzir cerveja e espumantes nesses dois países, tenha uma presença tão marcante no Brasil, país sem tanta tradição vinícola e cervejeira remontando ao passado. Algumas pessoas acreditam – e me parece plausível – que a elitização e a busca por consumidores de alta renda tenham sido uma forma da indústria cervejeira nacional de procurar inserção de mercado em uma conjuntura econômica de alta taxação, que impede a redução de preços, e de expansão dos mercados de luxo. As bières brut, com suas remissões a champagne e glamour, eram uma escolha certeira para atingir na mosca esse público. Não parece eloquente que o paralelo explícito com os champagnes (por meio do uso do termo “método champenoise”) tenha ocorrido justamente com os rótulos da Terra dos Papagaios, e não tanto com os belgas?

Um novo destino: o Brasil

Maturação e remoção da Eisenbahn Lust 
na vinícola San Michele.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda
No Brasil, o estilo foi introduzido pela cervejaria Eisenbahn com sua linha denominada Lust (em alemão, “prazer” ou ”vontade”). A cervejaria de Santa Catarina foi a primeira a invocar a denominação “método champenoise”, em destaque no rótulo, para denominar o estilo e catapultá-lo direto para o mercado de luxo. A Eisenbahn Lust usa a mesma receita da Eisenbahn Strong Golden Ale, mas a cerveja é enviada para a vinícola San Michele (em Rodeio/SC) para a maturação em cave, a remoção e a expelição.

Assim como as grandes vinícolas normalmente produzem dois rótulos diferentes de champagne (o champagne comum e o champagne millesimé), a Eisenbahn lançou uma versão “comum” da Lust, que passa por três meses de maturação, e a versão de luxo denominada Lust Prestige, que passa por um ano de maturação (mais ou menos o mesmo que a Deus, e que a maior parte dos champagnes comuns). Como vimos, a autólise começa a se intensificar a partir do 9º mês de maturação; podemos concluir com alguma segurança, portanto, que a Eisenbahn Lust tem poucas características de autólise, ao contrário da versão Prestige. A produção de dois rótulos diferentes fez com que a Eisenbahn conseguisse oferecer um produto a preços mais competitivos para “penetração” no mercado (a Eisenbahn Lust é a bière brut mais barata – ou melhor, menos cara – do mercado nacional) sem abdicar de um rótulo de luxo produzido com mais cuidado.

José Felipe Carneiro mostra, orgulhoso, 
a primeira safra da Wäls Brut 
passando pela remoção.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda
Como se não bastasse, em 2011 foi lançado um segundo rótulo do estilo produzido no Brasil, desta vez por uma cervejaria especializada na produção de estilos belgas: a Wäls, de Minas Gerais. A ideia surgiu de um desafio feito a José Felipe Carneiro, responsável pela produção de cervejas da Wäls, pelo seu irmão Tiago (também proprietário da cervejaria): ele seria capaz de produzir uma cerveja como a Eisenbahn Lust Prestige? Muito estudo e algumas tentativas depois, surgia a Wäls Brut. A cerveja apela para a mesma denominação champenoise já usada pela Eisenbahn. Sua produção usa como base um blend preparado com 70% da tripel da marca e 30% de uma receita exclusiva, e ela passa por maturação na garrafa durante 9 meses – tempo necessário para começar a se intensificar a autólise das leveduras. Assim como a Malheur, a Wäls optou por realizar todas as etapas do processo em sua própria fábrica – mas, ao contrário da cervejaria belga, faz tudo manualmente. Em 2011, a cervejaria iniciou reformas para ampliar as caves de produção da Wäls Brut, indicando um maior investimento neste que já é seu rótulo de mais alto padrão. Entre suas concorrentes diretas, a cerveja se diferencia especialmente pelo licor de expedição, que, em vez de ser um líquido mais adocicado, é a própria cerveja resultante da refermentação com leveduras de espumantes, resultando num produto final levemente mais seco. Talvez devamos considerar que, se as demais bières brut podem ser classificadas como “brut”, a Wäls Brut seria uma “extra brut” ou "brut nature" (um pouco mais seca).

É só isso? Quase, por mais improvável que possa parecer. Há poucas cervejas produzidas no estilo ao redor do mundo. Além das quatro marcas já citadas (disponíveis no mercado nacional), o site norte-americano Beer Advocate indica outros rótulos sob a denominação de estilo “bière de champagne / bière brut”, mas nem todos com o teor alcoólico ou o perfil do estilo consagrado pela Deus. Entre as que mais parecem se adequar ao perfil das marcas belgas, podemos citar a canadense Dominus Vobiscum Brut, da microcervejaria Charlevoix, e a italiana L’Equilibrista, da cervejaria Birra del Borgo. De qualquer forma, considerando-se o berço belga do estilo, o Brasil, com as particularidades do seu mercado de luxo de cervejas, tem se destacado mundialmente na produção do estilo, com o mesmo número de marcas que na Bélgica!

E os preços?

Esta é a clássica questão, invariavelmente levantada quando o assunto são as bières brut. Por que elas custam tão mais caro que os demais estilos (salvo talvez algumas lambics importadas e alguns rótulos excepcionais pela sua raridade ou seu teor alcoólico elevado)? Parte substancial da resposta, é óbvio, encontra-se no método champenoise, principalmente na longa maturação em garrafa e nas trabalhosas etapas da remoção e expelição, quando realizadas manualmente (garrafa por garrafa).

Pode ir esquecendo a sua bière brut no final do ano...
Fonte: www.canstockphoto.com.br
Mas isso justifica tanta diferença? Não possuo uma cervejaria e nunca ousei produzir as danadas, então é um pouco difícil dar uma resposta definitiva para isso. É preciso lembrar que, para além do tempo e do trabalho gastos com o processo produtivo, as bières brut requerem infraestrutura específica apenas para sua produção (ou o aluguel de uma infraestrutura alheia, como é o caso da Bosteels e da Eisenbahn). E, é claro, existe o direcionamento desses rótulos para ocasiões especiais e para um público de maior poder aquisitivo (trata-se dos produtos de luxo de suas cervejarias), estimulando uma precificação em faixa superior. A Wäls Brut, por exemplo, é comercializada em uma caixa de luxo artesanal cujo custo é de R$ 18. É claro que isso gera um impacto no preço final. José Felipe Carneiro, responsável pela produção das cervejas da Wäls, já afirmou que a caixa faz parte da experiência do produto – porque, infelizmente, não se trata apenas da cerveja, mas também da aura de sofisticação e glamour que o consumidor espera dela. Será que podemos culpar exclusivamente o produtor se é isso que o consumidor espera do produto? Mais uma vez, são as bières brut as maiores prejudicadas pelo prestígio associado ao estilo.

Por mais difícil que seja ponderar todos esses fatores para avaliar o preço final das cervejas do estilo, não custa fazermos, de novo, a comparação com os vinhos: as vinícolas nacionais da Serra Gaúcha conseguem colocar no mercado bons espumantes produzidos pelo método champenoise na faixa dos R$ 30-40. Veja, estamos falando de vinhos, que são mais caros para se produzir do que cervejas, a princípio (já que 90% do volume de matéria-prima da cerveja é água). O espumante Valduga Arte, por exemplo, passa por 12 meses de maturação com leveduras (o mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige) e sai por menos de R$ 35. Como eu afirmei, é difícil fazer especulações e ainda mais difícil comparar o volume de produção de uma vinícola como a Valduga e uma microcervejaria como a Wäls, mas me parece que não se pode creditar o alto preço das bières brut exclusivamente ao processo de produção.

Na próxima parte deste artigo, finalmente comentaremos um pouco sobre as características sensoriais do estilo. Trocando em miúdos: depois de saber tudo isso, afinal de contas, como uma bière brut se apresenta na minha boca? Não perca!

Perdeu as partes anteriores deste artigo? Confira aqui:

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte IV: De volta para as cervejas


Das cervejas belgas de abadia para os vinhos espumantes, e agora dos vinhos de volta para as cervejas. Nas partes anteriores deste artigo, traçamos as linhas gerais de uma deliciosa rota de intercâmbios tecnológicos e sensoriais na produção de bebidas fermentadas nas regiões da Bélgica e França – vimos como certas técnicas típicas da produção de cervejas na Bélgica foram apropriadas, reelaboradas e aprofundadas pela indústria vinícola entre os séculos XVIII e XIX. O século XXI viu esse fluxo se inverter na direção oposta, fechando o ciclo: foi a renascente indústria cervejeira belga que, impulsionada pelo recente crescimento do interesse global pelos estilos belgas, voltou a instituir esse diálogo, apropriando-se de volta dos desenvolvimentos do método champenoise. O resultado, todos sabemos, foi a criação de um novo e empolgante estilo cervejeiro: as bières brut, das quais temos falado desde a primeira parte desta matéria. Chegou a hora de fazermos um panorama histórico da criação do estilo e de sua chegada às terras tupiniquins.

Pierre Celis: a criatividade belga

A primeira bière brut produzida industrialmente, a Deus Brut des Flandres (da cervejaria Bosteels) só foi comercializada em 2002 – menos de 10 anos atrás. Trata-se, portanto, de um estilo extremamente jovem, em franco desenvolvimento. A informação pode surpreender alguns entusiastas de cervejas, acostumados a pensar na escola cervejeira belga como uma tradição antiga, com raízes nos mosteiros da época medieval. É comum ouvir uma contraposição entre as escolas “tradicionais” (belga, britânica e germânica) e a “nova” escola americana, como se apenas esta última tivesse trazido inovações recentes à paleta dos estilos cervejeiros. Esse é um lugar-comum que vale desconstruir desde já: assim como outras tradições cervejeiras, a escola belga, ao invés de ter ficado fossilizada no passado, continua se desenvolvendo de forma dinâmica e criativa, inovando sem abdicar das contribuições do passado. Poucos dos modernos estilos belgas, como os conhecemos hoje, já eram produzidos exatamente da mesma maneira antes do século XIX. Alguns dos mais emblemáticos, inclusive são criações recentes: vale lembrar que as tripel claras, hoje consideradas tão típicas, não tinham essa coloração e nem esse perfil sensorial antes da metade do século XX. Mas isso é assunto para outros posts.


Pierre Celis examina a precipitação do 
fermento nas garrafas de sua Grottenbier, 
maturando no pupitre ao fundo.
Fonte: Michael Jackson. Great Beers 
of Belgium

De qualquer forma, a história das bières brut remonta ao final do século XX, com um personagem que foi uma das mais importantes figuras envolvidas na revitalização mundial das cervejas belgas, mas que poucos associam às bières brut: Pierre Celis. Algumas informações para quem não está familiarizado com o nome: fundador da cervejaria Hoegaarden, Celis reiniciou a fabricação de um estilo tradicional então extinto: as cervejas belgas de trigo denominadas witbier. Quando a Hoegaarden foi adquirida pela Interbrew, proprietária da marca Stella Artois (hoje parte da gigante AB-InBev), Pierre Celis foi aos Estados Unidos e, em 1992, abriu a cervejaria Celis Brewery no Texas, popularizando as witbier na América. Pierre Celis tornou-se famoso pelas suas excelentes cervejas, mas não pelo sucesso comercial de sua administração: a Celis Brewery foi vendida ao grupo Miller em 1995 e fechou entre 2000 e 2001.


A idade e os reveses comerciais não tiraram de Celis o empreendedorismo e nem a vontade de inovar. De volta à Bélgica após as dificuldades nos EUA, ele retomou um antigo projeto: produzir uma cerveja empregando o método tradicional de produção de champagne. Celis já havia adquirido caves para isso desde a década de 1980, mas seu envolvimento com a Hoegaarden e com a Celis Brewery o impedira de levar o empreendimento adiante. Com o fechamento da Celis, contudo, ele adquiriu um imenso conjunto de caves subterrâneas na vila de Kanne (município de Riemst), na Bélgica, onde começou a maturar suas cervejas usando o procedimento de “remoção” (remuage) empregado nos champagnes, gradualmente virando as garrafas de ponta-cabeça e girando-as sobre seu próprio eixo. De acordo com o método champenoise, a próxima etapa seria o congelamento do gargalo para a expelição do fermento (dégorgement).

Com o tempo, porém, Celis desistiu de fazer a expelição: seu interesse já não era mais remover o fermento, mas apenas estudar os efeitos dos giros na garrafa e da maturação em caves, com temperatura natural constante (em torno de 12ºC). Essas cervejas, produzidas pela cervejaria St. Bernardus, são comercializadas com o nome de Grottenbier, e podem ser encontradas ocasionalmente no Brasil (importadas pela Belgian Beer Paradise). Isso nos mostra que, para além das bières brut, o método champenoise ainda pode fornecer inspiração para uma série de inovações interessantes na produção cervejeira.

Deus Brut des Flandres: a consolidação de um novo estilo

Etapas de produção da Deus Brut des Flandres: 
1. brassagem; 2. fermentação primária; 3. refermentação 
e maturação  na garrafa; 4. remoção; e 5. expelição. 
As etapas 3-5 ocorrem na região de Champagne.
Fonte: http://www.bestbelgianspecialbeers.be

Celis optou por se apropriar de apenas uma parte do método champenoise, mas uma outra cervejaria inspirou-se em seu exemplo e levou o processo até o final. Em 2002, a cervejaria Bosteels (a mesma que produz a Kwak e a Tripel Karmeliet) lançou a primeira representante do novo estilo: a Deus Brut des Flandres. Deus tem uma alta gravidade original (alto teor de açúcares no início da produção), mas é bastante bem atenuada para ficar com um paladar mais seco e um corpo mais leve, característico do estilo. A cevada é malteada levemente para manter a coloração bem clara mesmo com a alta quantidade de malte empregada na fabricação, e pouco lúpulo é usado. A fermentação primária é feita na cervejaria Bosteels; depois disso, ela recebe uma dosagem de açúcar e uma cepa de leveduras de espumante para a fermentação secundária. Esta, contudo, não é realizada na fábrica: a cerveja de base é transportada em caminhões-tanque para Rheims, capital da região de Champagne, onde é engarrafada e sofre fermentação secundária durante 3-4 semanas. Depois disso, ela é maturada na garrafa por mais de um ano, período em que processos como os de autólise do champagne começam a ocorrer com a cerveja. Por fim, ela passa por remoção e expelição, processo que dura em torno de 3 a 4 semanas. Apenas então é comercializada.


Deus foi apresentada como uma contraparte do champagne no mundo cervejeiro, apropriando-se das técnicas de produção do espumante. Apesar disso, o proprietário da Bosteels, Antoine Bosteels, não deixou de fazer a ressalva: “Não se trata de um substituto do champagne. É uma bebida para pessoas que apreciam grandes vinhos, grandes cervejas, grandes whiskeys...” Sábias palavras: já tivemos a oportunidade de discutir os males de confundir essas cervejas com champagnes. Mas não importa: o paralelo estava estabelecido.

Rótulo da Eisenbahn Lust, com a “herética” expressão 
“método champenoise” estampada abaixo do nome.
Fonte: www.balcaodebar.com.br

No Brasil, o termo “método champenoise” usado para indicar o estilo reforçou ainda mais a comparação. Contudo, é interessante observar que, entre os espumantes de uva, o termo “método champenoise” só pode ser empregado para vinhos produzidos na região de Champagne (muito embora eu o tenha visto hoje mesmo, na prateleira do supermercado, no rótulo do espumante da Miolo...). Para todos os outros espumantes, produzidos em outros lugares pelo mesmo método, a denominação usual é “método tradicional”. Levando isso em conta, a única bière brut que poderia legitimamente invocar o “método champenoise” em seu marketing seria a Deus Brut des Flandres, pois ela passa pelo processo na cidade de Rheims, capital da região de Champagne. Se quisermos ser puristas, talvez fosse mais adequado empregar o termo “método vinícola tradicional” para todas as demais representantes do gênero. Nenhuma das duas marcas belgas emprega a expressão “método champenoise”: a Bosteels refere-se ao método de produção como “uma técnica secular” e cita os termos “remuage” e “dégorgement”, enquanto a Malheur indica o “método original”. A Eisenbahn, no Brasil, foi a primeira marca a empregar o termo “método champenoise” em seu marketing. Mas, até onde eu saiba, não existe legislação que regule o uso do termo especificamente na produção cervejeira.


Concorrência amigável: Malheur Bière Brut

Curiosamente, a segunda cervejaria belga a enveredar pelo novo estilo localiza-se em Buggenhout, a mesmíssima vila de 5000 habitantes em que está instalada a fábrica da Bosteels. Trata-se de uma cervejaria inaugurada em 1997 por Emmanuel De Landtsheer: a Malheur, cujo nome, irônico, pode ser traduzido por algo como “infortúnio” ou “infelicidade”. Claro que suas cervejas estão longe de causar infelicidade. Em 2000, a Malheur lançou uma strong golden ale denominada Malheur 10, que serviria de receita de base para a produção de sua bière brut. É comum que as cervejarias que produzem o estilo usem como base a mesma receita de uma tripel ou strong golden ale que já é comercializada pela cervejaria. A exceção é a Bosteels, que não comercializada nenhum rótulo produzido com a mesma receita básica da Deus.

Emmanuel De Landtsheer e o equipamento 
de remoção automática na Malheur.
Fonte: Michael Jackson. Great Beers
of Belgium
A Malheur 10 e a Malheu Bière Brut (o rótulo consolidou o nome do estilo) têm a mesma receita inicial e sofrem igualmente uma fermentação primária de 10 dias e uma secundária de mais 10 dias. A diferença está na refermentação na garrafa (feita com levedura de espumante para a Bière Brut), na maturação estendida e nos processos de remoção e expelição. Não consegui localizar dados precisos sobre o tempo de maturação da Malheur Bière Brut. Diferentemente do que ocorre com a Deus, a Malheur Bière Brut percorre todas as etapas de sua produção dentro da fábrica da Malheur: Emmanuel De Landtsheer viajou às vinícolas de Champagne para estudar os processos de automação do método champenoise e adquiriu um equipamento que realiza a remoção automaticamente: as garrafas são acondicionadas em grandes gaiolas de metal com capacidade para 500 garrafas cada. Essas gaiolas giram automaticamente sobre dois eixos, virando as garrafas de ponta cabeça ao mesmo tempo em que elas são giradas sobre seu próprio eixo. Em sete dias, o equipamento realiza um conjunto de 36 movimentos pré-programados, ao final dos quais toda a levedura é depositada no gargalo da garrafa e a cerveja está pronta para a expelição. Os movimentos são realizados lentamente, cada um durando entre duas e oito horas. O programa de movimentos não é exatamente o mesmo usado para a produção de champagne, tendo sido adaptado especialmente para a Malheur.


Mas De Landtsheer não parecia satisfeito com essas inovações, e aplicou o mesmo método à produção de uma outra cerveja, desta vez escura: a Malheu Dark Brut. Trata-se de uma cerveja que usa como base a receita da Malheur 12 (uma dark strong ale), mas é maturada em barris de carvalho americano, refermentada na garrafa e depois sofre os mesmos processos de remoção e expelição. A Malheur Dark Brut, assim como os experimentos de Pierre Celis com a Grottenbier, provam que as inovações trazidas pela adaptação do método champenoise às cervejas não precisam ficar restritas às bières brut, claras e delicadas, mas podem dar origem a toda uma nova gama de estilos belgas. A estrada está aberta.

Na próxima parte deste artigo, veremos como as bières brut vieram a encontrar uma nova pátria no Brasil, e faremos uma descrição sensorial das características do estilo. Não perca, nas partes final, um comparativo dos rótulos disponíveis no mercado nacional!

Perdeu as partes anteriores? Confira:

sábado, 17 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte III: Remoção e expelição


Vimos na parte II deste artigo que as primeiras etapas da produção de um champagne não diferem radicalmente da produção de cervejas com refermentação na garrafa – típicas da escola belga. Chegamos até a supor uma transferência de tecnologia e know-how dos cervejeiros eclesiásticos para os produtores de vinhos espumantes. Mas então, afinal, nada diferencia os champagnes das cervejas belgas, exceto pelo mosto (nos primeiros, feito de uvas, nas segundas, de grãos e lúpulo)? O “método champenoise” é idêntico ao processo de produção de cervejas? Se fosse assim, o que diferencia as bières brut dos demais estilos cervejeiros belgas?

O controle sobre a refermentação

Garrafa de champagne ainda com as leveduras no 
interior – antes do século XIX, era assim que elas 
eram comercializadas. Como uma cerveja.
Fonte: Wikimedia Commons
Na maior das cervejas da escola belga, o processo de produção termina depois da segunda fermentação, dentro da garrafa. Em alguns rótulos, o fabricante ainda matura as garrafas por mais alguns poucos meses. E depois as comercializa sem intervir novamente. As leveduras responsáveis pela segunda fermentação continuam dentro da garrafa, e é assim que nós bebemos a maior parte das cervejas belgas: com leveduras. Dependendo do tempo que se passa entre a comercialização e a degustação (ou seja, dependendo do tempo de maturação dentro da garrafa), começam a ocorrer processos químico-biológicos, incluindo a autólise de leveduras.

Vimos que a autólise é responsável primeiro por características positivas, e típicas das cervejas belgas, como aromas frutados e florais. Contudo, à medida que o tempo passa, o aprofundamento da autólise começa a adicionar elementos negativos. A maior parte dos estilos belgas de maior teor alcoólico é capaz de enfrentar muito bem as primeiras fases desse processo, mas apenas as mais robustas – as chamadas “cervejas de guarda” – continuam ganhando atributos positivos à medida que o processo avança. Não seria interessante, portanto, interromper o processo quando a maturação atinge o seu auge? Ademais, quando servimos a cerveja, a levedura servida junto com o líquido pode adicionar uma sensação meio terrosa, um travo na garganta que nem sempre é agradável.

Retrato da viúva Cliquot. Não é 
exatamente como você esperava?
Fonte: Wikimedia Commons
É aí que entram as etapas posteriores do método champenoise. Ao contrário das cervejas, os champagnes não são comercializados com a borra de levedura dentro da garrafa. Ela se forma naturalmente durante a refermentação, claro, mas é retirada antes da comercialização. Vimos que, na produção de espumantes, a autólise começa a se intensificar a partir do 9º mês após a fermentação secundária. Um certo tempo depois disso, ocorrem as duas fases finais do método champenoise, criadas no início do século XIX pelo mestre de cave da célebre viúva Cliquot Ponsardin, proprietária de uma das maiores vinículas produtoras de espumante na região de Champagne. Em francês, a palavra correspondente a viúva é veuve, daí o nome de um dos mais célebres rótulos de champagne: Veuve Cliquot Ponsardin. Esses dois procedimentos são chamados “remoção” (remuage) e “expelição” (dégorgement, cuja tradição mais literal seria “regurgitação”).

A remoção e a expelição têm como função remover as leveduras de dentro da garrafa, com o duplo objetivo de interromper o processo de autólise e eliminar a sensação terrosa deixada pela borra ao se consumir o vinho. O resultado é uma bebida com sensação mais delicada na boca e com características sensoriais mais passíveis de controle pelo produtor. É como se ele dissesse às leveduras: “OK, vocês fizeram um ótimo trabalho, agora o vinho está exatamente do jeito que eu quero e vocês precisarão sair.” Os champagnes são divididos em duas categorias, de acordo com a legislação específica de Champagne: champagne e champagne millésimé. No primeiro caso, a remoção e a expelição ocorrem 12 meses após o final da fermentação secundária. No caso dos champagnes millésimés, correspondentes aos rótulos de luxo dos produtores, o processo é feito apenas 3 anos depois da refermentação. Consequentemente, o preço final aumenta consideravelmente. Ou seja, nos champagnes mais prestigiados, o líquido passa por mais de dois anos de autólise, ganhando novas características. Claro que o champagne comum tem mais características do vinho original, fresco, enquanto o champagne millésimé apresenta características de autólise mais acentuadas.

A remoção

E como se faz a extração da levedura para finalizar o produto? Só existe uma saída de uma garrafa de vidro, certo? Pelo gargalo. E é exatamente por aí que a levedura deverá ser extraída, com o mínimo possível de perda de carbonatação e pressão e com o mínimo contato possível com o ar (para evitar oxidação). A princípio, parece que o processo requereria um equipamento high-tech e sofisticado, mas na verdade a execução pode ser bastante manual e artesanal e poderia até ser feita em casa, por produtores caseiros de cerveja artesanal. Tenho um conhecido que faz o processo em casa, mas não com cerveja, e sim com hidromel (fermentado a base de mel). Nunca provei nem tive notícia de alguém que tenha produzido bière brut em casa com sucesso, mas nada impede que isso ocorra, em teoria. Não duvido que haja homebrewers produzindo versões caseiras do estilo por este Brasilzão cervejeiro.

Remoção manual em uma vinícola da região de Champagne.
Fonte: Vinho Fortaleza
Como se faz o processo, afinal de contas? Num primeiro momento, a “remoção” (remuage), o produtor desloca a maior quantidade possível de leveduras para o gargalo. No método mais artesanal, as garrafas são depositadas com o gargalo para baixo em um pupitre, um cavalete como o da imagem ao lado, que se abre progressivamente ao longo de vários dias, fazendo com que as garrafas sejam lenta e progressivamente viradas para baixo.  Além disso, elas são constantemente giradas sobre seu próprio eixo (o ângulo e o sentido desse giro depende do programa de remoção escolhido pelo fabricante e pode variar a cada dia) para facilitar a deposição de todas as leveduras pela força centrífuga. Um único removedor chega a cuidar de 40.000 garrafas, girando-as todos os dias! Em algumas vinícolas, o processo é automatizado. Ao final dessa etapa (que chega a durar 2 meses se feita manualmente, ou uma semana se realizada de forma mecanizada), a garrafa se encontra de ponta-cabeça, e toda a levedura está depositada no gargalo. O próximo passo é a “expelição”.

A expelição

A expelição (dégorgement) é o momento crítico de todo o processo, e pode ser feita de duas maneiras. De qualquer uma das formas, é imperioso que seja realizada a baixas temperaturas, para evitar a perda excessiva do gás carbônico dissolvido no líquido (ninguém quer champagne nem bière brut choca, certo?). A primeira maneira é mais divertida, mas exige uma boa destreza manual: a garrafa é aberta de ponta-cabeça e, com um rápido movimento das mãos, ela é virada para cima. Toda a levedura escapa e o espumante “limpo” fica na garrafa. Splash! Apenas alguns produtores tradicionais de champagne ainda fazem o processo dessa maneira. A segunda maneira, usada pelas cervejarias que produzem bières brut, deve fazer um pouco menos de sujeira. O líquido dentro do gargalo (e apenas a parte do gargalo) é congelado, geralmente por meio da imersão do gargalo (lembre-se: a garrafa ainda está de ponta-cabeça) numa solução frigorífica (uma fórmula simples pode ser obtida misturando-se água, gelo, sal e álcool). Assim que a borra de levedura congela (mas não o restante do líquido), a garrafa é aberta e a parte congelada é expelida para fora pela própria pressão interna da garrafa.

Uma escolha crucial: o licor de expedição

No momento seguinte, a garrafa é fechada com uma nova rolha, que é afixada com a gaiola de metal típica dos champagnes (e das cervejas belgas!) para evitar que a pressão interna da garrafa estoure a rolha. Quem nunca tomou um susto ao ouvir estourar sozinha a rolha de uma garrafa de cerveja belga depois que a gaiola foi removida e ela foi “esquecida” por um minuto em cima da mesa? Nesse momento de arrolhar novamente a garrafa, o produtor deve fazer uma escolha crucial. Ora, durante a fermentação secundária e o longo tempo de maturação, as leveduras tiveram a oportunidade de consumir quase todos os açúcares do vinho. O resultado é uma bebida extremamente seca, de “cuspir algodão”, como se dizia antigamente. Quando a levedura é extraída, essa secura (cuja percepção pode se tornar agressiva quando combinada a à alta acidez da bebida) quase sempre é corrigida pelo produtor: antes de fechar novamente a garrafa, ele completa o volume (lembre-se que uma parte do líquido foi expelida) com um líquido denominado “licor de expedição” – geralmente uma versão adoçada do vinho usado como base para o champagne. O grau de doçura desse líquido determinará se o espumante será mais ou menos seco, numa escala na qual, do mais seco ao mais doce e suave, encontramos denominações comerciais como brut nature, extra brut, brut, sec, demi-sec ou doux.

O champagne está finalmente pronto para comercialização. O resultado é aquele que já conhecemos: uma bebida seca, refrescante e de abrir o apetite, com uma aguda sensação de picar a língua devido à carbonatação (essa sensação geralmente é chamada de “agulha” do espumante) e com aromas frutados, florais e remetendo a pão, massa e fermento, adicionados pelas leveduras durante o processo de autólise. Salut!

Na próxima parte desta matéria sobre as bières brut, veremos como o processo foi adaptado para a produção de cervejas.  Nas partes finais, discutirei as características sensoriais típicas do estilo, diferenciando-o do estilo cervejeiro que lhe serve de “base” (as Belgian golden strong ales) e apresentarei um comparativo dos rótulos disponíveis do Brasil. Não perca!

Perdeu as partes anteriores? Clique aqui:
Parte I: Um novo estilo ou um novo status?
Parte II: Carbonatação e autólise na produção de champagnes