sábado, 17 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte III: Remoção e expelição


Vimos na parte II deste artigo que as primeiras etapas da produção de um champagne não diferem radicalmente da produção de cervejas com refermentação na garrafa – típicas da escola belga. Chegamos até a supor uma transferência de tecnologia e know-how dos cervejeiros eclesiásticos para os produtores de vinhos espumantes. Mas então, afinal, nada diferencia os champagnes das cervejas belgas, exceto pelo mosto (nos primeiros, feito de uvas, nas segundas, de grãos e lúpulo)? O “método champenoise” é idêntico ao processo de produção de cervejas? Se fosse assim, o que diferencia as bières brut dos demais estilos cervejeiros belgas?

O controle sobre a refermentação

Garrafa de champagne ainda com as leveduras no 
interior – antes do século XIX, era assim que elas 
eram comercializadas. Como uma cerveja.
Fonte: Wikimedia Commons
Na maior das cervejas da escola belga, o processo de produção termina depois da segunda fermentação, dentro da garrafa. Em alguns rótulos, o fabricante ainda matura as garrafas por mais alguns poucos meses. E depois as comercializa sem intervir novamente. As leveduras responsáveis pela segunda fermentação continuam dentro da garrafa, e é assim que nós bebemos a maior parte das cervejas belgas: com leveduras. Dependendo do tempo que se passa entre a comercialização e a degustação (ou seja, dependendo do tempo de maturação dentro da garrafa), começam a ocorrer processos químico-biológicos, incluindo a autólise de leveduras.

Vimos que a autólise é responsável primeiro por características positivas, e típicas das cervejas belgas, como aromas frutados e florais. Contudo, à medida que o tempo passa, o aprofundamento da autólise começa a adicionar elementos negativos. A maior parte dos estilos belgas de maior teor alcoólico é capaz de enfrentar muito bem as primeiras fases desse processo, mas apenas as mais robustas – as chamadas “cervejas de guarda” – continuam ganhando atributos positivos à medida que o processo avança. Não seria interessante, portanto, interromper o processo quando a maturação atinge o seu auge? Ademais, quando servimos a cerveja, a levedura servida junto com o líquido pode adicionar uma sensação meio terrosa, um travo na garganta que nem sempre é agradável.

Retrato da viúva Cliquot. Não é 
exatamente como você esperava?
Fonte: Wikimedia Commons
É aí que entram as etapas posteriores do método champenoise. Ao contrário das cervejas, os champagnes não são comercializados com a borra de levedura dentro da garrafa. Ela se forma naturalmente durante a refermentação, claro, mas é retirada antes da comercialização. Vimos que, na produção de espumantes, a autólise começa a se intensificar a partir do 9º mês após a fermentação secundária. Um certo tempo depois disso, ocorrem as duas fases finais do método champenoise, criadas no início do século XIX pelo mestre de cave da célebre viúva Cliquot Ponsardin, proprietária de uma das maiores vinículas produtoras de espumante na região de Champagne. Em francês, a palavra correspondente a viúva é veuve, daí o nome de um dos mais célebres rótulos de champagne: Veuve Cliquot Ponsardin. Esses dois procedimentos são chamados “remoção” (remuage) e “expelição” (dégorgement, cuja tradição mais literal seria “regurgitação”).

A remoção e a expelição têm como função remover as leveduras de dentro da garrafa, com o duplo objetivo de interromper o processo de autólise e eliminar a sensação terrosa deixada pela borra ao se consumir o vinho. O resultado é uma bebida com sensação mais delicada na boca e com características sensoriais mais passíveis de controle pelo produtor. É como se ele dissesse às leveduras: “OK, vocês fizeram um ótimo trabalho, agora o vinho está exatamente do jeito que eu quero e vocês precisarão sair.” Os champagnes são divididos em duas categorias, de acordo com a legislação específica de Champagne: champagne e champagne millésimé. No primeiro caso, a remoção e a expelição ocorrem 12 meses após o final da fermentação secundária. No caso dos champagnes millésimés, correspondentes aos rótulos de luxo dos produtores, o processo é feito apenas 3 anos depois da refermentação. Consequentemente, o preço final aumenta consideravelmente. Ou seja, nos champagnes mais prestigiados, o líquido passa por mais de dois anos de autólise, ganhando novas características. Claro que o champagne comum tem mais características do vinho original, fresco, enquanto o champagne millésimé apresenta características de autólise mais acentuadas.

A remoção

E como se faz a extração da levedura para finalizar o produto? Só existe uma saída de uma garrafa de vidro, certo? Pelo gargalo. E é exatamente por aí que a levedura deverá ser extraída, com o mínimo possível de perda de carbonatação e pressão e com o mínimo contato possível com o ar (para evitar oxidação). A princípio, parece que o processo requereria um equipamento high-tech e sofisticado, mas na verdade a execução pode ser bastante manual e artesanal e poderia até ser feita em casa, por produtores caseiros de cerveja artesanal. Tenho um conhecido que faz o processo em casa, mas não com cerveja, e sim com hidromel (fermentado a base de mel). Nunca provei nem tive notícia de alguém que tenha produzido bière brut em casa com sucesso, mas nada impede que isso ocorra, em teoria. Não duvido que haja homebrewers produzindo versões caseiras do estilo por este Brasilzão cervejeiro.

Remoção manual em uma vinícola da região de Champagne.
Fonte: Vinho Fortaleza
Como se faz o processo, afinal de contas? Num primeiro momento, a “remoção” (remuage), o produtor desloca a maior quantidade possível de leveduras para o gargalo. No método mais artesanal, as garrafas são depositadas com o gargalo para baixo em um pupitre, um cavalete como o da imagem ao lado, que se abre progressivamente ao longo de vários dias, fazendo com que as garrafas sejam lenta e progressivamente viradas para baixo.  Além disso, elas são constantemente giradas sobre seu próprio eixo (o ângulo e o sentido desse giro depende do programa de remoção escolhido pelo fabricante e pode variar a cada dia) para facilitar a deposição de todas as leveduras pela força centrífuga. Um único removedor chega a cuidar de 40.000 garrafas, girando-as todos os dias! Em algumas vinícolas, o processo é automatizado. Ao final dessa etapa (que chega a durar 2 meses se feita manualmente, ou uma semana se realizada de forma mecanizada), a garrafa se encontra de ponta-cabeça, e toda a levedura está depositada no gargalo. O próximo passo é a “expelição”.

A expelição

A expelição (dégorgement) é o momento crítico de todo o processo, e pode ser feita de duas maneiras. De qualquer uma das formas, é imperioso que seja realizada a baixas temperaturas, para evitar a perda excessiva do gás carbônico dissolvido no líquido (ninguém quer champagne nem bière brut choca, certo?). A primeira maneira é mais divertida, mas exige uma boa destreza manual: a garrafa é aberta de ponta-cabeça e, com um rápido movimento das mãos, ela é virada para cima. Toda a levedura escapa e o espumante “limpo” fica na garrafa. Splash! Apenas alguns produtores tradicionais de champagne ainda fazem o processo dessa maneira. A segunda maneira, usada pelas cervejarias que produzem bières brut, deve fazer um pouco menos de sujeira. O líquido dentro do gargalo (e apenas a parte do gargalo) é congelado, geralmente por meio da imersão do gargalo (lembre-se: a garrafa ainda está de ponta-cabeça) numa solução frigorífica (uma fórmula simples pode ser obtida misturando-se água, gelo, sal e álcool). Assim que a borra de levedura congela (mas não o restante do líquido), a garrafa é aberta e a parte congelada é expelida para fora pela própria pressão interna da garrafa.

Uma escolha crucial: o licor de expedição

No momento seguinte, a garrafa é fechada com uma nova rolha, que é afixada com a gaiola de metal típica dos champagnes (e das cervejas belgas!) para evitar que a pressão interna da garrafa estoure a rolha. Quem nunca tomou um susto ao ouvir estourar sozinha a rolha de uma garrafa de cerveja belga depois que a gaiola foi removida e ela foi “esquecida” por um minuto em cima da mesa? Nesse momento de arrolhar novamente a garrafa, o produtor deve fazer uma escolha crucial. Ora, durante a fermentação secundária e o longo tempo de maturação, as leveduras tiveram a oportunidade de consumir quase todos os açúcares do vinho. O resultado é uma bebida extremamente seca, de “cuspir algodão”, como se dizia antigamente. Quando a levedura é extraída, essa secura (cuja percepção pode se tornar agressiva quando combinada a à alta acidez da bebida) quase sempre é corrigida pelo produtor: antes de fechar novamente a garrafa, ele completa o volume (lembre-se que uma parte do líquido foi expelida) com um líquido denominado “licor de expedição” – geralmente uma versão adoçada do vinho usado como base para o champagne. O grau de doçura desse líquido determinará se o espumante será mais ou menos seco, numa escala na qual, do mais seco ao mais doce e suave, encontramos denominações comerciais como brut nature, extra brut, brut, sec, demi-sec ou doux.

O champagne está finalmente pronto para comercialização. O resultado é aquele que já conhecemos: uma bebida seca, refrescante e de abrir o apetite, com uma aguda sensação de picar a língua devido à carbonatação (essa sensação geralmente é chamada de “agulha” do espumante) e com aromas frutados, florais e remetendo a pão, massa e fermento, adicionados pelas leveduras durante o processo de autólise. Salut!

Na próxima parte desta matéria sobre as bières brut, veremos como o processo foi adaptado para a produção de cervejas.  Nas partes finais, discutirei as características sensoriais típicas do estilo, diferenciando-o do estilo cervejeiro que lhe serve de “base” (as Belgian golden strong ales) e apresentarei um comparativo dos rótulos disponíveis do Brasil. Não perca!

Perdeu as partes anteriores? Clique aqui:
Parte I: Um novo estilo ou um novo status?
Parte II: Carbonatação e autólise na produção de champagnes

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