Vimos na parte II deste artigo que as primeiras etapas da
produção de um champagne não diferem
radicalmente da produção de cervejas com refermentação na garrafa – típicas da
escola belga. Chegamos até a supor uma transferência de tecnologia e know-how dos cervejeiros eclesiásticos
para os produtores de vinhos espumantes. Mas então, afinal, nada diferencia os champagnes das cervejas belgas, exceto
pelo mosto (nos primeiros, feito de uvas, nas segundas, de grãos e lúpulo)? O
“método champenoise” é idêntico ao
processo de produção de cervejas? Se fosse assim, o que diferencia as bières brut dos demais estilos
cervejeiros belgas?
O controle sobre a
refermentação
Garrafa de champagne ainda
com as leveduras no
interior – antes do século XIX, era assim que elas
eram
comercializadas. Como uma cerveja.
Fonte: Wikimedia Commons |
Na maior das cervejas da escola belga, o
processo de produção termina depois da segunda fermentação, dentro da garrafa.
Em alguns rótulos, o fabricante ainda matura as garrafas por mais alguns poucos
meses. E depois as comercializa sem intervir novamente. As leveduras
responsáveis pela segunda fermentação continuam dentro da garrafa, e é assim
que nós bebemos a maior parte das cervejas belgas: com leveduras. Dependendo do
tempo que se passa entre a comercialização e a degustação (ou seja, dependendo
do tempo de maturação dentro da garrafa), começam a ocorrer processos
químico-biológicos, incluindo a autólise de leveduras.
Vimos que a autólise é responsável primeiro por
características positivas, e típicas das cervejas belgas, como aromas frutados
e florais. Contudo, à medida que o tempo passa, o aprofundamento da autólise
começa a adicionar elementos negativos. A maior parte dos estilos belgas de
maior teor alcoólico é capaz de enfrentar muito bem as primeiras fases desse
processo, mas apenas as mais robustas – as chamadas “cervejas de guarda” –
continuam ganhando atributos positivos à medida que o processo avança. Não
seria interessante, portanto, interromper o processo quando a maturação atinge
o seu auge? Ademais, quando servimos a cerveja, a levedura servida junto com o
líquido pode adicionar uma sensação meio terrosa, um travo na garganta que nem
sempre é agradável.
Retrato da viúva Cliquot. Não é
exatamente como você esperava?
Fonte: Wikimedia Commons |
É aí que entram as etapas posteriores do
método champenoise. Ao contrário das
cervejas, os champagnes não são
comercializados com a borra de levedura dentro da garrafa. Ela se forma
naturalmente durante a refermentação, claro, mas é retirada antes da
comercialização. Vimos que, na produção de espumantes, a autólise começa a se
intensificar a partir do 9º mês após a fermentação secundária. Um certo tempo
depois disso, ocorrem as duas fases finais do método champenoise, criadas no início do século XIX pelo mestre de cave da
célebre viúva Cliquot Ponsardin, proprietária de uma das maiores vinículas
produtoras de espumante na região de Champagne. Em francês, a palavra correspondente
a viúva é veuve, daí o nome de um dos
mais célebres rótulos de champagne:
Veuve Cliquot Ponsardin. Esses dois procedimentos são chamados “remoção” (remuage) e “expelição” (dégorgement, cuja tradição mais literal
seria “regurgitação”).
A remoção e a expelição têm como função remover as leveduras
de dentro da garrafa, com o duplo objetivo de interromper o processo de
autólise e eliminar a sensação terrosa deixada pela borra ao se consumir o
vinho. O resultado é uma bebida com sensação mais delicada na boca e com
características sensoriais mais passíveis de controle pelo produtor. É como se
ele dissesse às leveduras: “OK, vocês fizeram um ótimo trabalho, agora o vinho
está exatamente do jeito que eu quero e vocês precisarão sair.” Os champagnes são divididos em duas
categorias, de acordo com a legislação específica de Champagne: champagne e champagne millésimé. No primeiro caso, a remoção e a expelição
ocorrem 12 meses após o final da fermentação secundária. No caso dos champagnes millésimés, correspondentes
aos rótulos de luxo dos produtores, o processo é feito apenas 3 anos depois da
refermentação. Consequentemente, o preço final aumenta consideravelmente. Ou
seja, nos champagnes mais
prestigiados, o líquido passa por mais de dois anos de autólise, ganhando novas
características. Claro que o champagne comum
tem mais características do vinho original, fresco, enquanto o champagne millésimé apresenta
características de autólise mais acentuadas.
A remoção
E como se faz a extração da levedura para finalizar o
produto? Só existe uma saída de uma garrafa de vidro, certo? Pelo gargalo. E é
exatamente por aí que a levedura deverá ser extraída, com o mínimo possível de
perda de carbonatação e pressão e com o mínimo contato possível com o ar (para
evitar oxidação). A princípio, parece que o processo requereria um equipamento high-tech e sofisticado, mas na verdade
a execução pode ser bastante manual e artesanal e poderia até ser feita em
casa, por produtores caseiros de cerveja artesanal. Tenho um conhecido que faz
o processo em casa, mas não com cerveja, e sim com hidromel (fermentado a base
de mel). Nunca provei nem tive notícia de alguém que tenha produzido bière brut em casa com sucesso, mas nada
impede que isso ocorra, em teoria. Não duvido que haja homebrewers produzindo versões caseiras do estilo por este
Brasilzão cervejeiro.
Remoção manual em uma vinícola da região de Champagne. Fonte: Vinho Fortaleza |
A expelição
A expelição (dégorgement)
é o momento crítico de todo o processo, e pode ser feita de duas maneiras. De
qualquer uma das formas, é imperioso que seja realizada a baixas temperaturas,
para evitar a perda excessiva do gás carbônico dissolvido no líquido (ninguém
quer champagne nem bière brut choca, certo?). A primeira
maneira é mais divertida, mas exige uma boa destreza manual: a garrafa é aberta
de ponta-cabeça e, com um rápido movimento das mãos, ela é virada para cima.
Toda a levedura escapa e o espumante “limpo” fica na garrafa. Splash! Apenas alguns produtores
tradicionais de champagne ainda fazem
o processo dessa maneira. A segunda maneira, usada pelas cervejarias que
produzem bières brut, deve fazer um
pouco menos de sujeira. O líquido dentro do gargalo (e apenas a parte do
gargalo) é congelado, geralmente por meio da imersão do gargalo (lembre-se: a
garrafa ainda está de ponta-cabeça) numa solução frigorífica (uma fórmula simples pode ser obtida misturando-se água, gelo, sal e
álcool). Assim que a borra de levedura congela (mas não o restante do líquido),
a garrafa é aberta e a parte congelada é expelida para fora pela própria
pressão interna da garrafa.
Uma escolha crucial:
o licor de expedição
No momento seguinte, a garrafa é fechada com uma nova rolha,
que é afixada com a gaiola de metal típica dos champagnes (e das cervejas belgas!) para evitar que a pressão
interna da garrafa estoure a rolha. Quem nunca tomou um susto ao ouvir estourar
sozinha a rolha de uma garrafa de cerveja belga depois que a gaiola foi
removida e ela foi “esquecida” por um minuto em cima da mesa? Nesse momento de
arrolhar novamente a garrafa, o produtor deve fazer uma escolha crucial. Ora,
durante a fermentação secundária e o longo tempo de maturação, as leveduras
tiveram a oportunidade de consumir quase todos os açúcares do vinho. O
resultado é uma bebida extremamente seca, de “cuspir algodão”, como se dizia
antigamente. Quando a levedura é extraída, essa secura (cuja percepção pode se
tornar agressiva quando combinada a à alta acidez da bebida) quase sempre é
corrigida pelo produtor: antes de fechar novamente a garrafa, ele completa o
volume (lembre-se que uma parte do líquido foi expelida) com um líquido
denominado “licor de expedição” – geralmente uma versão adoçada do vinho usado
como base para o champagne. O grau de
doçura desse líquido determinará se o espumante será mais ou menos seco, numa
escala na qual, do mais seco ao mais doce e suave, encontramos denominações
comerciais como brut nature, extra brut, brut, sec, demi-sec ou doux.
O champagne está
finalmente pronto para comercialização. O resultado é aquele que já conhecemos:
uma bebida seca, refrescante e de abrir o apetite, com uma aguda sensação de
picar a língua devido à carbonatação (essa sensação geralmente é chamada de
“agulha” do espumante) e com aromas frutados, florais e remetendo a pão, massa
e fermento, adicionados pelas leveduras durante o processo de autólise. Salut!
Na próxima parte desta matéria sobre as bières brut, veremos como o processo foi adaptado para a produção
de cervejas. Nas partes finais, discutirei as características sensoriais típicas do estilo,
diferenciando-o do estilo cervejeiro que lhe serve de “base” (as Belgian golden strong ales) e apresentarei um comparativo dos rótulos disponíveis do Brasil. Não
perca!
Perdeu as partes anteriores? Clique aqui:
Parte I: Um novo estilo ou um novo status?
Parte II: Carbonatação e autólise na produção de champagnes
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Parte I: Um novo estilo ou um novo status?
Parte II: Carbonatação e autólise na produção de champagnes
Sensacional!!
ResponderExcluirBela escrita, parabéns!