domingo, 15 de dezembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XVII: Leipziger Gose

Até agora, nesta série de matérias sobre cervejas selvagens, temos falado praticamente (para não dizer exclusivamente) sobre a Bélgica, o paraíso dos amantes de sour ales. Mas não foi só lá que existiu uma tradição de cervejas selvagens. Um dia no passado, toda cerveja era fermentada espontaneamente e era mais ou menos azeda – ou seja, toda cerveja era “selvagem”, de um modo ou de outro. Foi na Idade Média que começou o hábito sistemático de recolher a espuma que se formava no topo das cervejas em processo de fermentação, e que consistia basicamente de leveduras do gênero Saccharomyces. Essa espuma era então adicionada ao mosto recém-produzido para acelerar a fermentação, dando origem à prática de inocular fermento e criando aquilo que hoje se denomina ales (cervejas de fermentação no alto). As cervejas de fermentação espontânea de outrora foram sendo gradualmente substituídas pelas novas ales. Mas será que só na Bélgica elas chegaram aos nossos dias?

Como quase todas as invenções da humanidade, as ales 
devem ter surgido de uma ideia de jerico. Ou você 
realmente pensaria em jogar essa espuma nojenta 
na sua cerveja recém-brassada?
Fonte: www.franken-bierland.de
É verdade que a Bélgica tem uma tradição histórica de sour ales mais forte que qualquer outra parte do mundo, tendo perpetuado e desenvolvido estilos como as lambics, Flanders red ales e oud bruin­ ­- já falamos de todas estas aqui. Mas, mesmo na ultraconservadora Alemanha, berço das lagers e da lei de pureza da Baviera de 1516, certos estilos selvagens sobreviveram até a modernidade como remanescentes excêntricos de um tempo passado. Uma dessas excentricidades é um raro estilo conhecido como Gose, composto por cervejas de trigo caracterizadas pela alta acidez e pela adição de sal marinho e sementes de coentro. As Gose são tão excêntricas que nem sequer possuem um verbete próprio no bastante completo Oxford Companion to Beer, muito embora sejam reconhecidas pelo guia de estilos da Brewers Association.

Uma breve história do estilo

As Gose não são um estilo isolado. Elas são um dos ramos de uma grande família de cervejas de trigo ácidas outrora produzidas no norte da Europa, numa faixa que se estendia dos Países Baixos até a região de Berlim. Na Bélgica, lambics e witbiers são alguns dos desenvolvimentos mais modernos desse grande grupo. Na Alemanha, além da Gose, ainda existem até hoje as Berliner Weisse, cervejas de trigo do norte do país, que se diferenciam das clássicas Weissbiere da Baviera pela alta acidez lática. Antigamente, um estilo especialmente disseminado eram as Breyhan ou Broyhan, cervejas de trigo ácidas originárias da região de Hannover (no século XVI), e que podiam ser encaradas como variações da Altbier produzidas com trigo. É provável que a Gose tenha surgido como uma variação da Broyhan.

Antigo rótulo de uma Broyhan de Hannover.
Fonte: www.philly.com
O nome “Gose” (que se pronuncia de forma notavelmente semelhante a “gueuze”), a fermentação lática, o uso do trigo na receita, tudo isso nos faz pensar imediatamente em um parentesco direto entre a Gose de Leipzig e as lambics engarrafadas conhecidas como gueuze. Contudo, uma derivação etimológica direta é improvável. O nome Gose provavelmente advém do riacho de Gose, na cidade de Goslar, onde o estilo se desenvolveu provavelmente ainda durante a Idade Média. As Gose se tornaram populares na cidade de Leipzig e, em 1800, eram consideradas como uma espécie de “estilo oficial” da cidade, de forma que começaram a ser produzidas lá mesmo.

As Gose nunca foram cervejas exatamente populares, nem mesmo em Leipzig. Eram complicadas para se produzir e vender, já que precisavam ser consumidas com muita rapidez antes de estragarem, e atingiam preços mais altos. Uma garrafa de Gose podia facilmente estragar e virar vinagre em apenas 3 semanas. O século XX trouxe o golpe de misericórdia: depois de uma interrupção temporária da produção da Gose durante a II Guerra Mundial, seu público declinou irreversivelmente. O último lote foi produzido em 1966. Todos os produtores fecharam as portas ou foram comprados por grupos maiores, desinteressados na produção de uma especialidade regional tão complicada. Para piorar, perderam-se todas as anotações contendo os métodos tradicionais de produção da Gose.

O estilo teria se perdido nos anais da história cervejeira não fosse o entusiasmo revivalista de Lothar Goldhahn, que decidiu voltar a fabricar o estilo depois de revitalizar o Ohne Bedenken, um dos mais tradicionais bares de Leipzig que serviam a Gose nos tempos áureos. Ele conseguiu contatar um antigo funcionário de uma cervejaria produtora de Gose, que ainda tinha consigo anotações a respeito dos métodos de produção. Como não havia estrutura em Leipzig para recriar a receita, ele buscou uma parceria com a Schultheiss, uma produtora de Berliner Weisse localizada em Berlim. O primeiro lote de teste foi produzido em 1985, e a produção comercial iniciou-se no ano seguinte. A Gose havia renascido das cinzas!

A Rittergutsbrauerei Döllnitz, 
tradicional cervejaria do século XIX, 
era a última produtora de Gose de 
Leipzig quando foi fechada 
durante a II Guerra Mundial.
Fonte: www.europeanbeerguide.net
Seguiram-se várias dificuldades enfrentadas por Goldhahn para continuar fabricando sua Gose sob licença, mas a mensagem havia sido dada. Hoje em dia, Leipzig conta com duas cervejarias produzindo regularmente o estilo: a Bayerischer Bahnhof e a Ernst Bauer. Mais importante que isso: a Gose ultrapassou as fronteiras de sua região natal e ganhou o gosto de cervejeiros contemporâneos, sobretudo nos EUA, que reinterpretaram o estilo, transformando-o numa bebida de verão, mais leve, mais refrescante e menos “selvagem” que o estilo original.

Características do estilo

Como ocorreu com todos os estilos cervejeiros, a Gose passou por várias transformações durante os vários séculos de sua história. Registros do século XVIII mostram que, nessa época, as Gose ainda não recebiam adição de fermento, sendo produzidas por um método de fermentação espontânea possivelmente análogo ao das lambics belgas. É provável que a cerveja fosse extremamente ácida e tivesse uma presença considerável de microorganismos nocivos ligados à deterioração de alimentos (como as enterobactérias). Uma enciclopédia de 1773 descreve a Gose como tendo um gosto doce a princípio, e depois como o do vinho (ou seja, ácido), e ressalta suas propriedades laxativas – o que é um possível indício de considerável presença enterobacteriana.

No século XIX, a cerveja já passara a ser inoculada, recebendo inclusive a adição de bactérias láticas para desenvolver seu gosto ácido. Além disso, recebia adições de sal marinho e sementes de coentro – por ser considerada uma especialidade regional, a Gose não segue as diretrizes da lei de pureza da Baviera. O método e momento precisos de inoculação das bactérias eram um dos segredos mais bem-guardados da produção. A cerveja fermentava brevemente em barris e era vendida aos cafés e bares ainda antes de finalizar a fermentação (portanto, sem a longa maturação que caracteriza os estilos selvagens belgas). Daí se explica uma diferença crucial entre a Gose e todas as lambics: enquanto estas desenvolvem um acentuado perfil de Brettanomyces (aromas animais) advindos de longa maturação em madeira, a Gose era finalizada antes que as Brettanomyces pudessem se desenvolver a ponto de influenciar decisivamente a cerveja. Ela mantinha certa doçura residual e não desenvolvia os aromas animais de leveduras selvagens.

A Bayerischer Bahnhof exemplifica o 
formato tradicional da garrafa de Gose.
Fonte: www.do-it-at-leipzig.de
Assim que o barril parava de espumar, a cerveja era envasada em peculiares garrafas de vidro, de gargalo estreito e comprido. O inusitado formato não era fortuito: como as garrafas não eram tampadas, o gás carbônico da fase final da fermentação escapava para o ar e a espuma (composta por leveduras) extravasava pela boca da garrafa. Depois de seca e solidificada no estreito gargalo, a espuma formava uma espécie de “rolha natural”, que retinha apenas uma levíssima carbonatação residual. A cerveja pronta mantinha uma refrescante acidez, reforçada pelo aroma fresco das sementes de coentro, com certa doçura de malte e com uma presença de sal para equilibrá-la.

Gose tradicionais são raríssimas hoje em dia. Produzem-se duas em Leipzig, e as inventivas cervejarias norte-americanas trataram de fazer sua reinterpretação, transformando-as numa espécie de “sour ale light”, menos ácida e menos impactante do que as cervejas selvagens de inspiração belga. Algumas versões apostam mais no sal e nas sementes de coentro, com a acidez ocupando um papel secundário, apenas para reforçar a refrescância. O mercado brasileiro passou a receber dois rótulos do estilo no ano de 2013 – curiosamente, nenhum dos quais é alemão ou norte-americano. Um deles é produto nacional: trata-se da Gose produzida pela cervejaria Abadessa, do RS, em parceria com o cervejeiro alemão Günther Thömmes. Ela teve distribuição restrita aqui em São Paulo e, infelizmente, eu não tive a chance de prová-la.

O segundo rótulo que temos no Brasil é holandês: a De Molen Mühle & Bahnhof Barrel Aged, produzida em parceria com Matthias Richter, mestre-cervejeiro da cervejaria Bayerischer Bahnhof, especializada em Gose. O nome, bem à moda da De Molen, une os símbolos das duas cervejarias: o moinho (Mühle, em alemão), e a estação ferroviária (Bahnhof). Se uma Gose tradicional já é bastante rara, esta é única: ela se apresenta como uma “imperial gose”, o que equivale a dizer que é uma interpretação com mais álcool do estilo, atingindo 9.2% ABV. A mera leitura do rótulo já nos permite inferir outras particularidades de seu método de produção, em relação às Gose tradicionais. Em primeiro lugar, ela recebe a adição direta de ácido lático, em vez de uma cultura de bactérias láticas. Portanto, deve ser fermentada normalmente e depois acidificada de forma artificial. Além disso, é maturada em barris de madeira, não sei durante quanto tempo – certamente não o bastante para desenvolver um perfil de Brettanomyces, mas o suficiente para absorver aromas e sabores oriundos da madeira.


Aparência: a garrafa verte um líquido cristalino de belíssima cor de mel queimado, semelhante a conhaque. Não há creme, apenas uma leve carbonatação que forma uma fugaz névoa frisante, semelhante à de um vinho verde.
Aromas: diferente de tudo o que eu já tinha provado antes. Bastante acidez volátil no nariz, e um aroma que mistura traços de malte doce (caramelo, castanhas, mel), frutas maduras (com destaque para uvas passas brancas, damasco seco e algo de banana e tutti-frutti) e toques amadeirados muito sólidos, lembrando amêndoas doces, baunilha e madeira. Há uma evidente licorosidade lembrando rum e um inusitado aroma lembrando cloro. As sementes de coentro aparecem discretas. Percebe-se claramente a oxidação com um aroma químico que remete a plástico, não de todo agradável. Pela sua licorosidade e doçura, lembra uma espécie de mistura entre um vinho do Porto branco e uma Belgian dark strong ale.
Paladar: acidez e doçura são acentuadas, com forte salgado e praticamente sem amargor. Há uma intensa acidez inicial que dá espaço à doçura do malte e depois termina num final intensamente ácido e salgado, perene, um pouco “quente”, “duro” e incômodo – possivelmente devido à acidificação artificial da cerveja.
Sensação na boca: o corpo é bastante intenso, ao mesmo tempo bem licoroso e cremoso, e intensificado pela adição de sal na receita, sem nenhuma carbonatação. O aquecimento é bem perceptível, com ares de licor.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Cerveja absolutamente peculiar. Daquelas que, mesmo depois de já ter tomado mais de mil cervejas distintas, você pode abrir com a certeza de que vai beber uma coisa diferente de tudo o que já conhece. A forte acidez lática convive com uma doçura e um perfil licoroso de dark strong ales e que lembra vinhos fortificados. A não ser pela acidez, não se parece quase em nada com uma lambic, pois a doçura é acentuada e não se notam os traços animais típicos das Brettanomyces, que dão lugar a aromas de frutas passas claras. Provavelmente não reflete o caráter de uma Gose alemã tradicional, mas é um daqueles experimentos que estendem (ainda mais) os limites daquilo que nós podemos entender por cerveja. Uma pena que o preço pelo qual chegou ao Brasil (em torno de R$ 80-90 a long neck) não ajude em nada.

Cervejas selvagens já não são exatamente os estilos mais comuns do mundo. E as Gose são ainda mais raras e excêntricas dentro de uma família já meio “alternativa”. Apesar disso, a De Molen nos mostra que elas não apenas podem ter lugar no cenário moderno, como podem ainda servir de base para novos e deliciosos desenvolvimentos!

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XVI: Com frutas, sim; mas lambic, não!

Já falei anteriormente que, se você correr para o empório mais próximo e pedir uma indicação de fruit lambic, pode acabar saindo com uma fruit beer xoxa, teoricamente feita “para o paladar feminino” (por homens que subestimam profundamente suas mulheres) e que não tem nada de selvagem – como uma Floris ou uma Mongozo. OK, talvez isso seja um exagero – se você for atendido por alguém um pouco mais qualificado, não será vítima de um erro tão grosseiro. Mas mesmo profissionais com conhecimento sobre cervejas (já vi ocorrer com gente gabaritada...) podem cometer um outro equívoco semelhante: chamar de fruit lambic qualquer cerveja selvagem ou sour ale com frutas.

“Sour ales? Pois não! Estão todas naquele 
cantinho sujo que ninguém olha lá atrás!” 
Mas nem por isso são todas iguais entre si...
Fonte: paraquevocerveja.blogspot.com
Mas não é tudo a mesma coisa? De jeito nenhum! No misterioso e encantador universo das cervejas selvagens da Bélgica, não são apenas os produtores de lambics que adicionam frutas às suas receitas. Também as cervejarias de Flandres, produtoras de Flanders red e brown ales, usam frutas para criar variações de suas cervejas. E as diferenças entre essas cervejas com frutas de Flandres e as lambics com frutas não podem ser subestimadas! A degustação de dois rótulos de Flandres – que felizmente temos no Brasil de forma bem acessível, naquela faixa ainda suportável dos R$ 20-25 pela garrafa pequena – nos dará a oportunidade de explorar melhor a questão.

Malte x Bretta

Vamos retomar algumas informações importantes que já abordamos aqui nesta série de matérias, de forma a ilustrar melhor essas diferenças. Como já vimos, uma das características das lambics maduras é a superatenuação, causada pelo longo trabalho fermentativo das leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, que consumem virtualmente todos os açúcares (tanto do malte quanto da fruta) e deixam a cerveja sequinha, sequinha, com corpo de modelo de lingerie. Se uma lambic de frutas é adocicada, é porque recebeu adoçantes artificiais e/ou açúcar depois de ser pasteurizada. O produto tradicional nunca é doce.

As Flanders red/brown ales já tem um perfil diferente. Em primeiro lugar, os maltes tostados da receita conferem sabores caramelados e achocolatados inexistentes nas lambics. Em segundo lugar, Flanders red e brown ales resultam de uma mistura entre cervejas envelhecidas, mais secas, e cervejas jovens, ainda cheias de doçura de malte. Como resultado, tanto a doçura quanto o sabor do malte podem ser sentidos de forma muito mais clara numa cerveja de Flandres, em comparação com uma lambic. Sabe aquela doçura que, nas lambics comerciais, é adicionada artificialmente (e normalmente desequilibra a cerveja)? Pois é, numa selvagem de Flandres, ela é o resultado natural do blend e mostra-se mais harmônica e agradável. Flanders red e brown ales com frutas, portanto, são mais doces do que fruit lambics tradicionais. Essa doçura equilibra a acidez e faz com que elas “assustem” menos o paladar dos consumidores desabituados com cervejas selvagens.

Também os aromas frutados mostram-se distintos nos dois casos. As lambics têm aromas frutados mais frescos do que a maioria das ales belgas – no lugar das tradicionais bananas, ameixas, maçãs vermelhas ou cerejas, entram as uvas verdes, limão, maracujá, abacaxis frescos. Até por serem mais delicados e sutis, esses aromas normalmente acabam encobertos pelo peso da fruta adicionada nas lambics com frutas. Já as Flanders red e brown ales ainda têm uma forte presença dos aromas frutados “clássicos” das ales fortes belgas, o que dá outra cara ao produto final. As cervejas de Flandres, apesar da pegada selvagem, ainda têm um pouco da cara das ales fortes belga “de abadia”.

Vejamos na prática como isso funciona, a partir de duas cervejas selvagens de Flandres feitas com adição de cerejas: a Verhaeghe Echt Kriekenbier (uma Flanders red ale, da porção ocidental de Flandres) e a Liefmans Cuvée Brut (uma Flanders brown ale, da parte oriental). Ficará claro como elas não são a mesma coisa que uma kriek lambic.


Aparência: belíssima e profunda coloração, entre o rubi e o roxo, brilhante e com bom creme. Muito convidativa na taça.
Aromas: surpreendentemente assertivos e complexos, com a fruta (cereja) convivendo equilibradamente com o malte adocicado (caramelo e açúcar queimado), uma rusticidade de fermentação espontânea (terroso, vinagre balsâmico, acetona, suaves traços animais), uvas roxas e uma impressionante e encantadora presença de amêndoas cruas e canela.
Paladar: ela entra intensamente ácida na boca, mas logo se abre uma doçura de malte, finalizando com doçura levemente predominante sobre a acidez.
Sensação na boca: o corpo é mediano e os taninos são perceptíveis. O líquido tem uma textura levemente terrosa na boca (mas não seca), como a Flanders red ale da cervejaria.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Echt Kriekenbier é produzida a partir de um blend em que entram Flanders red ales de diferentes idades (partes jovens, com um e com dois anos de envelhecimento em carvalho), maturadas com adição de cerejas frescas da região de Sint-Truiden. Impressiona pela forma como a fruta, muito bem adicionada ao conjunto, consegue aparecer de forma clara sem ofuscar a rusticidade assertiva da cerveja de base, com aquele toque balsâmico e químico que sentimos, por exemplo, na Duchesse de Bourgogne. Talvez por serem usadas apenas cerejas frescas e inteiras na receita, elas também adicionam uma encantadora complexidade aromática mineral e de especiarias. Excelente exemplo de uma Flanders red ale com cerejas, em que a fruta, a rusticidade e o malte caminham de mãos dadas.

Fonte: www.belgianfamilybrewers.be

Aparência: coloração vermelha viva e escura, com nuances rosadas, de boa transparência e bom creme rosado.
Aromas: tem boa complexidade de aromas terciários e de maturação, mas o foco mesmo é o dueto afinado entre as cerejas (vívidas, lembrando também morango maduro) e o malte, acastanhado e amadeirado. Baunilha, amêndoas cruas e toques animais indicam a longa maturação, e toques florais e herbais (pinheiro) a complementam.
Paladar: ela entra doce na boca, mas depois mostra uma forte acidez mais seca. A doçura retorna após engolir, deixando um amigável final adocicado.
Sensação na boca: o corpo é leve para mediano, e ela é bastante seca, muito mais do que a oud bruin da cervejaria, com adstringência mediana de taninos.

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A Liefmans Cuvée Brut é uma cerveja com cerejas que usa como base a oud bruin produzida pela Liefmans. Antigamente, esta cerveja usava a corpulenta Goudenband, mas seu teor alcoólico acabava ficando alto demais após a fermentação das frutas, de modo que o álcool da cerveja-base foi diminuído. Ela resulta de um blend entre tanques da oud bruin com cerejas (13 kg de frutos e 200 ml de suco a cada 100 litros de cerveja), maturados longamente durante 18 a 36 meses, o que faz com que seja bem mais seca que a Goudenband, por exemplo, ressaltando sua apetitosa acidez lática. Como a cerveja-base é uma oud bruin, os traços selvagens são um pouco menos marcantes no aroma, deixando em primeiro plano o malte e a fruta (cujo aroma é ressaltado pelo uso de suco, além da fruta inteira). É interessante notar que, apesar de não haver maturação em madeira, senti delicados traços animais de Brettanomyces (atípicos nas oud bruin puras), provavelmente trazidas pelas cascas das cerejas. A cervejaria ainda produz uma versão mais comercial, adocicada e com sucos de outras frutas vermelhas.

Trata-se de duas cervejas bem diferentes entre si, ambas ótimas a seu modo. Enquanto a Echt Kriekenbier se mostra mais marcante, pesada e exótica em seus aromas selvagens, a Liefmans Cuvée Brut tem mais delicadeza, alegria e um aroma mais limpo, em que a fruta brilha mais ao lado do malte. Mas o que me interessa aqui não é destrinchar as diferenças entre as duas, mas sim ressaltar de que forma ambas, conjuntamente, se afastam das clássicas lambics de frutas. A despeito de suas diferenças, ambas possuem uma doçura natural e espontânea, ausente nas lambics, para amenizar o impacto da acidez, e trazem mais aromas e sabores lembrando ales belgas, como caramelo, frutas maduras, apimentado etc. Além dessas semelhanças naturais com outras cervejas belgas, elas ainda possuem a presença familiar e reconfortante das cerejas.


Por todos esses motivos, parecem menos “esquisitas” aos olhos de um bebedor que não esteja familiarizado com cervejas selvagens, e constituem um ótimo ponto de partida para a longa jornada para dentro do “dark side” – ops, digo, para os injustiçados encantos da selvageria cervejeira. Lembre-se delas da próxima vez que alguém questioná-lo, com honesta perplexidade, como é que você pode realmente gostar dessas cervejas azedas!