sábado, 1 de agosto de 2015

Pássaros do Cone Sul, ou "A arte de beber bem e barato"

Tenho aproveitado minha atual situação de desemprego para exercer e aprimorar a arte de beber bem gastando pouco. Nem sempre é fácil, é verdade. Mas quase sempre é muito gratificante, em parte porque faz você se dar conta de quanto dinheiro estava gastando antes de forma relativamente “supérflua” – ou mesmo completamente em vão, nos piores casos. O consumo mexe com a sua cabeça: quanto mais você consome, mais acredita que precisa consumir, e mais sua dignidade e seu bem-estar começam a depender do quanto você gasta. O velho barbado Marx chamava isso de fetiche, mas isso é assunto para outra conversa. Diminuir seu padrão de consumo, às vezes, é um salutar revés nesse ciclo quase vicioso do consumo.

E tenho a impressão de que não é só para mim...
A diminuição do meu poder de compra me fez rever muitos dos meus hábitos de consumo etílico (junto com um monte de outros hábitos, é verdade). Nem penso mais em provar regularmente cervejas de R$ 20 a long neck, optando, sempre que possível, por garrafas grandes na faixa dos R$ 15-20 e complementando o consumo das artesanais pelas acessíveis standard lagers “de sempre” do mercado. Elas têm seu valor, sobretudo quando a grana está curta. E a verdade é uma só, doa a quem doer: uma Brahma fresca e bem acondicionada, como às vezes tenho a felicidade de encontrar em alguns bares, pode ser até mais saborosa do que uma artesanal xexelenta e oxidada que custa o quíntuplo. Mas isso, também, é assunto para outra ocasião. E é claro que abandonei o passageiro hábito que tentei cultivar, em meados do ano passado, de beber diariamente a quantidade recomendada pela Organização Mundial de Saúde.

Além disso, tenho trocado com frequência a cerveja pelo vinho, depois que descobri, para meu espanto, que é mais barato beber vinho do que cerveja no Brasil – como já argumentei aqui no blog. E substituí as antes frequentes garrafas de R$ 40-60 por vinhos mais baratos, na faixa dos R$ 20-30. E é aí que tenho encontrado o grande desafio: beber vinhos agradáveis, limpos e bem-feitos apesar de simples, nessa faixa de preços. Muito bebedor de cerveja, quando descobre que tenho uma queda pelo fermentado de Baco, me pede indicações de bons vinhos abaixo dos R$ 40. Nem sempre é fácil, admito. A maior parte dos vinhos nessa faixa, sobretudo os de supermercados (onde vamos à procura de vinho barato), tem defeitos mais ou menos sérios, ou então é enjoativa. Para piorar, no nosso mercado, vinho barato é sinônimo de vinho chileno e argentino, e nem sempre o perfil deles – às vezes amadeirados e adocicados em excesso, com pouca acidez – bate muito com o meu santo. O que fazer, então?

O Chile não tem palmeiras, mas lá canta o sabiá

Para encontrar vinhos bons e baratos, é preciso dar a cara a tapa. E beber algumas porcarias, antes de achar coisas mais interessantes. Um desses achados recentes que fiz foi a linha de vinhos Aves del Sur, produzida pela vinícola chilena Carta Vieja e importada no Brasil pelo Pão de Açúcar. O Pão de Açúcar investiu muito em vinhos e, hoje, é o maior vendedor varejista de vinhos do país. O supermercado conta até com uma linha própria, a “Club des Sommeliers”, composta por vinhos produzidos sob encomenda por vinícolas nacionais e estrangeiras e engarrafados com o rótulo da rede. É a estratégia da rede para distribuir o que, na prática, são vinhos importados diretamente pelo Pão de Açúcar. Ocorre que, a despeito do preço bastante competitivo e da seleção do fera Carlos Cabral, os rótulos do Club des Sommeliers nunca me atraíram. Tive más experiências com algumas opções da linha, e acho que os vinhos tendem a ser comerciais em excesso, um pouco “padronizados” para atingir um mercado mais amplo. Muitas vezes, isso resulta em vinhos amenos, sem muita personalidade, doces em excesso, pouco tânicos e pouco ácidos.

A linha básica, com seus simpáticos passarinhos.
Fonte: ru-vino.livejournal.com
Qual não foi minha surpresa quando encontrei a linha “Aves del Sur”, com importação exclusiva do Pão de Açúcar mas sem o rótulo do Club des Sommeliers. Resolvi arriscar o Merlot da linha mais barata. E tive uma ótima surpresa. A partir daí, provei a linha básica inteira (só não consegui ainda provar o rosé, mas está na minha lista) e até me aventurei em uma garrafa da linha Reserva que estava em promoção. Não me decepcionei seriamente com nenhum dos seis vinhos que bebi – a consistência do padrão de qualidade da linha é bastante alta. Virei fã dos passarinhos. Além de os vinhos serem bons, os rótulos são muito bonitos. Cada vinho é batizado com o nome de um pássaro chileno, e o rótulo traz uma bela ilustração da ave.

Comecei pela linha básica (“Varietal”), que, segundo a enigmática expressão do produtor, passa por estágio em madeira “sólo cuando es necesario”. São vinhos leves, fáceis de beber, amigáveis e com ótima tipicidade considerando sua faixa de preços, ali em torno do R$ 23. O primeiro que provei, e o que mais gostei da linha básica, foi o Aves del Sur Golondrina Merlot 2014. A “golondrina” é nossa conhecida andorinha, pássaro migratório cujo reaparecimento está associado ao fim do inverno e à chegada da primavera. Daí a escolha da uva Merlot, que resulta em vinhos um pouco mais macios e menos austeros e assertivos do que outras tintas chilenas mais cultivadas. Comecei pelo Merlot porque acho, no caso de vinhos baratos, que a uva geralmente resulta em bebidas com menos defeitos e arestas do que outras variedades mais “parrudas”. O Golondrina Merlot 2014 apresenta complexidade acima do esperado nessa faixa de preços: há um frutado puxando para as frutas passas, como ameixas secas, complementado por expressivos toques de chocolate ao leite, alguma baunilha, mogno, leve defumação, traindo a passagem por carvalho. Na boca é correto, com pouca acidez (o que ressalta os tons tostados e achocolatados de forma agradável), macio sem ser enjoativo, com corpo medianamente intenso e taninos pouco expressivos. Uma ótima compra pelo conjunto.

Como sabemos, uma andorinha só não faz verão; então, fui procurar os outros vinhos da marca. Os dois outros tintos da linha básica me agradaram um pouco menos. O Aves del Sur Carpintero Cabernet Sauvignon 2014 traz no rótulo o simpático pica-pau como a indicar a força e a expressividade da variedade. O vinho de fato é mais assertivo que o Merlot, com acidez mais expressiva e taninos mais presentes, dando aquela sensação de adstringência na boca. Contudo, a complexidade aromática é um pouco menor: cassis, um tiquinho achocolatado, uma doçura de baunilha bem evidente, um toque mais herbal e fresco lembrando pimentões (mas não tanto quanto em outros Cabernet Sauvignon chilenos). No conjunto, achei-o menos interessante, mas ainda bem competente e acima de média para os Cabernets dessa faixa. Já o Aves del Sur Perdiz Carmenère 2014 tem como “mascote” a perdiz, uma ave terrestre, como a indicar o caráter mais terroso e herbal da Carmenère. De fato, o aroma predominante é o típico pimentão-verde dos Carmenères chilenos – alguns gostam pela “pegada” aromática mais intensa, mas eu já não sou muito fã. Há nuances frutadas (frutas vermelhas) e defumadas, mas nada muito expressivo. Na boca é menos ácido que o Cabernet, mas ainda com taninos bem perceptíveis. Foi o que menos me agradou de toda a linha, dentro todos os que provei –, mas há que se considerar que nunca fui muito fã dos Carmenères chilenos.

Se liga na rola, Malafaia!
Fonte: www.escrivinhos.com
Entre os brancos, algumas ótimas surpresas, com vinhos muito frescos, aromáticos e com ótima tipicidade, bons para quem quer conhecer as variedades de uvas sem gastar muito dinheiro. O Aves del Sur Tórtola Chardonnay 2014 traz a imagem da singela “tórtola”, nossa conhecida “rolinha” – aquela que o Silas Malafaia deveria ir procurar. O vinho é fresco e traz a tipicidade da Chardonnay: acidez mediana, suave para um branco, alguma doçura residual para alegrar o paladar, mas sem exageros, e uma paleta aromática convidativa de frutas amarelas maduras, lembrando mousse de maracujá (com aquela leve untuosidade amanteigada de muitos Chardonnays), muitos pêssegos maduros e até um toque de tangerina, com sólido acento floral. O álcool aparece mais do que deveria e há um amargor final um pouco incômodo, mas o conjunto é acima da média para o preço. Acompanhou perfeitamente um fondue de queijo. Por fim, o Aves del Sur Frutero Sauvignon Blanc 2014 é muito expressivo e aromático. A Sauvignon Blanc é conhecida pelos aromas frutados lembrando maracujá, mas, nessa faixa de preços, é difícil encontrar um vinho com tanto maracujá. Ao servir, parece que você abriu a fruta. Há ainda flores brancas e certo frescor de grama cortada. Muito bom no nariz. Na boca, é bem seco, com corpo leve, acidez relevante e um final novamente um pouco amargo e alcoólico, de um jeito incômodo, que diminui um pouco sua drinkability. Refrescante e muito encantador pelo aroma frutado. Ótima pedida para conhecer a uva.

Por fim, provei também o Aves del Sur Reserva Gavilán Syrah 2012. O rótulo traz estampado o gavião, ave nobre que indica o maior grau de elaboração da linha Reserva, que matura por 10 meses em barris de carvalho francês e mais 8 meses na garrafa. O vinho é cheio de personalidade. Notam-se imediatamente os aromas de especiarias da Syrah, sobretudo pimenta-do-Reino em forte intensidade. Outros aromas secundários escoltam o apimentado: ameixas passas, uma defumação bem evidente, certo toque de aceto balsâmico, alguma baunilha e chocolate ao leite. A mistura de acético, defumação e pimenta faz lembrar pimenta chipotle. Na boca é macio, com doçura levemente presente, uma certa acidez, um toque salgado e poucos taninos. Corpo levemente licoroso. É complexo, cheio de nuances aromáticas e de paladar, mas não perde a tipicidade da Syrah. Pelo preço promocional de R$ 29 em que o encontrei, foi uma excelente compra, mas vale bem os cerca de R$ 35 do preço normal.


Taí: uma linha de vinhos de distribuição ampla, preço bem acessível e boa qualidade. Como bônus, muitos rótulos de ótima tipicidade, ideais para quem quer conhecer as respectivas variedades de uvas. Eles têm alguns dos vícios de muitos vinhos chilenos: acidez relativamente baixa, uma certa doçura em alguns exemplares. Mas o toque da madeira é bem colocado, sem o excesso de outros sul-americanos. Virei consumidor habitual e estou exercendo, com prazer, a arte de beber barato.