quarta-feira, 15 de maio de 2013

Cervejas selvagens - Parte III: Como e onde se produzem lambics?


Assim que começamos a pesquisar sobre estilos cervejeiros, aprendemos que as cervejas podem se dividir conforme o tipo de fermentação que sofrem: as ales fermentam com leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae, que trabalham melhor a temperaturas mais altas e tendem a se concentrar no topo do líquido. Já as lagers fermentam com leveduras Saccharomyces pastorianus ou carlbergensis, que preferem temperaturas baixas e se depositam no fundo do líquido. E aí também aprendemos que, além de ales e lagers, também existem as tais “lambics”, que fermentam espontaneamente, sem adição deliberada de leveduras.

Não, não é parecido com aquele pão nojento que você 
deixou “maturando” no armário por 3 meses.
Fonte: copeiros.wordpress.com
Essa descrição inicial, normalmente a primeira a que um curioso tem acesso, dá a impressão de que as lambics seriam cervejas “fáceis” de se produzir: é só fazer um mosto com malte e lúpulo e deixá-lo fermentar sozinho, não é isso? Definitivamente, não é isso. Jeff Sparrow, cervejeiro caseiro medalhista do Great American Beer Festival e autor de Wild brews: Beer beyond the influence of brewer’s yeast, conta que, depois de descobrir o mundo das lambics em 1993, decidiu tentar produzir uma versão caseira com alguns amigos. Eles simplesmente deixaram o mosto ao ar livre durante uma noite em um quintal no Havaí. O mosto fermentou, mas, para sua surpresa, a cerveja resultante tinha mais gosto de merda do que de lambic. Ele aprendeu, da pior maneira, que as lambics talvez sejam os estilos mais difíceis de se produzir com competência. Afinal de contas, o que faz uma boa lambic?

Uma questão de definição

Há uma lenda que diz que só se pode chamar de lambic uma cerveja produzida na região de Bruxelas e da Pajottenland, no vale do rio Senne, já que o nome “lambic” seria uma denominação de origem protegida, semelhante à de muitos vinhos, e que o estilo dependeria intimamente do terroir específico da região. O guia de estilos da Brewers Association pontua claramente que “versões desta cerveja produzidas fora da área de Bruxelas não podem ser verdadeiramente chamadas de lambics. Essas cervejas são denominadas ‘lambics de estilo belga’ e podem ser feitas à semelhança de muitas das cervejas de origem autêntica.”

Do ponto de vista da lei, contudo, não é exatamente assim. Existe, sim, uma definição legal para que uma cerveja possa ser rotulada como “lambic” na União Europeia, definida em 1998 por solicitação da Confederação de Cervejarias Belgas. Ocorre que essa definição não especifica uma região de origem, tanto é que temos duas lambics belgas autênticas fora da região de Bruxelas e do vale do rio Senne (a Jacobins e a St. Louis). O texto legal, um tanto vago, aponta algumas características sensoriais e químicas do produto e especifica alguns métodos de produção. Vale a pena lermos uma tradução do texto da lei, conforme extraído do livro Wild brews:

Cervejas que cumpram os seguintes requisitos podem ser chamadas de lambic e gueuze e podem usar o símbolo da União Europeia de “garantia de produto tradicional especial”: uma cerveja ácida, com um perfil aromático típico de maturação, cujo componente microbiológico essencial é constituído das espécies Brettanomyces bruxellensis e/ou Brettanomyces lambicus.
- gravidade original mínima: 12.7º Plato (1.051 S.G.)
- pH máximo de 3.8
- coloração não superior a 25 EBC (12.5 SRM)
- amargor não superior a 20 IBUs
A gueuze ou gueuze-lambic resulta de uma mistura de lambics em que a parte mais velha maturou em barris de madeira por pelo menos três anos. Uma fruit lambic possui não menos que 10% e não mais que 30% de frutas em sua composição (25% de cerejas) ou o equivalente em suco ou concentrado, proporcionalmente ao volume final do produto produzido dessa maneira.
As cervejas que possuam, em adição aos requisitos acima discriminados, as seguintes características podem ser denominadas “oude” ou “vieille” (e são consideradas os exemplos mais tradicionais do estilo): cerveja que resulta de um blend de lambics que tenham envelhecido em barris de madeira, sendo a idade média de pelo menos um ano e tendo a parte mais velha pelo menos três anos de idade. A mistura deve sofrer refermentação e condicionamento com leveduras. Contém um máximo de 0.5 ppm de acetato de isoamila (depois de seis meses de maturação na garrafa) e um mínimo de 50 ppm de acetato de etila, uma acidez volátil mínima de 10 miliequivalentes de NaOH (hidróxido de sódio) por litro, e uma acidez total mínima de 75 miliequivalentes de NaOH por litro.

A bela cervejaria Van Honsebrouck, apesar de estar e
m Flandres Ocidental, bem longe de Bruxelas, 
ostenta com orgulho o termo “lambic” 
nos rótulos de sua linha St. Louis.
Fonte: timdudley.net
Em suma: há um perfil químico-sensorial e um método de produção característicos das lambics. Teremos a oportunidade de discutir ambos em detalhes. O texto especifica principalmente a necessidade de maturação em madeira, o protagonismo das leveduras do gênero Brettanomyces e uma acidez característica, mas não fala de região produtora. A denominação “oude” ou “vieille lambic” (“lambic antiga”) ainda descreve de forma mais pormenorizada um determinado perfil aromático, o método de engarrafamento com refermentação na garrafa e níveis mínimos de acidez total. Se quisermos simplificar, podemos dizer que uma lambic, em sua definição legal, é uma cerveja relativamente clara, ácida, com maturação em madeira e protagonismo das leveduras do gênero Brettanomyces. Mas isso não é o bastante para distinguir as lambics de outras cervejas selvagens claras: à parte a menção à maturação em madeira, o texto não descreve como se produz uma lambic – sendo este o fator essencial que as diferencia de outros estilos aparentados. Examinemos então a questão com mais detalhes.

Fermentação “espontânea”

Historicamente, a característica mais distintiva da produção de lambics, se a compararmos com as cervejas selvagens de Flandres, é a ausência de inoculação deliberada de fermento. O guia da Brewers Association define as lambics como “cervejas naturalmente e espontaneamente fermentadas”. O guia do BJCP também as define historicamente como “cervejas azedas [sour ales] espontaneamente fermentadas”, muito embora, por ser um guia usado para julgar produções caseiras, admita a possibilidade de inoculação da microflora com o intuito de reproduzir a composição microbiológica de uma lambic tradicional. Qualquer que seja o caso, o que define o estilo, nos dois casos, é a ideia de “fermentação espontânea”. Mas o que isso quer dizer, exatamente?

Já vimos que não basta deixar o mosto pegando sereno uma noite inteira para ter uma lambic. Há quem diga, com um tom levemente misterioso, que só se podem produzir essas cervejas no vale do rio Senne, porque só essa região do mundo possuiria o terroir adequado - não propriamente as condições climáticas e geológicas, mas sim as cepas de leveduras selvagens capazes de realizar a fermentação espontânea do mosto. Bobagem. A fermentação de uma lambic é realizada por microorganismos que ocorrem naturalmente ao redor do mundo todo, incluindo as famigeradas leveduras do gênero Brettanomyces. Veja, não é à toa que elas têm esse nome: esse gênero de fungos foi isolado e batizado em 1904 por Hjelte Claussen, cientista dinamarquês a serviço da cervejaria Carlsberg, a partir de amostras colhidas em cervejarias da Grã-Bretanha (daí o nome Bretta)! Portanto, essa fermentação poderia (e pode) ocorrer em qualquer lugar do mundo.

Quer dizer, mais ou menos. Ela pode ocorrer em qualquer parte do mundo, dadas certas condições especiais que nem sempre são fáceis de reproduzir em regiões industrializadas. Para que uma lambic fermente adequadamente, é preciso que ela receba leveduras pelo ar (e, em último caso, por meio dos equipamentos produtivos e matérias-primas). Isso significa que o local onde ela é produzida deve ser próximo a fontes de leveduras naturais, tanto do gênero Saccharomyces quanto do gênero Brettanomyces. Essas leveduras são abundantes nas cascas de frutas e em algumas flores, de modo que se reproduzem com facilidade em áreas próximas a bosques e, especialmente, pomares. Elas são tão comuns nas cascas das frutas que um mosto de uvas já tem a quantidade necessária de leveduras para fermentar e se transformar em vinho naturalmente. O vale do rio Senne se caracterizava, no passado, pelos seus amplos pomares, principalmente de cerejas, que constituíam um ambiente ideal para a propagação aérea das leveduras necessárias à fabricação de lambics. Um mosto deixado ao ar livre durante uma noite inteira em um lugar assim poderia receber a quantidade adequada de leveduras para resultar em uma lambic.

Mas isso está longe de ocorrer numa grande cidade ou numa área rural de agricultura intensiva e moderna. Mesmo na região de Bruxelas, hoje em dia não se pode confiar apenas no ar da região circundante para fazer o serviço. No entanto, à medida que uma cervejaria produz lambics ao longo de anos e décadas, os equipamentos e o próprio edifício onde ela está instalada vão sendo progressivamente ocupados por verdadeiras colônias de microorganismos. Cerâmica, madeira, tijolos e outros materiais porosos são especialmente favoráveis à instalação de leveduras. Isso significa que uma cervejaria que produza lambics adquire boa parte de suas leveduras e bactérias (possivelmente a parte mais importante) não tanto do ar externo, mas sim da própria microflora do edifício e dos equipamentos. Seu terroir está no próprio edifício.

Paredes antigas, telhamento de madeira exposto, 
vapor do mosto quente: essa cena comum em 
produtoras de lambic fornece o ambiente ideal 
para a instalação de uma microflora. 
Na foto, as instalações da Girardin.
Fonte: Jef Van den Steen. Gueze & Kriek
Quer dizer que apenas cervejarias de longa tradição, com edifício e equipamentos antigos e devidamente colonizados por fungos, conseguiriam produzir boa lambic? Isso certamente conta pontos a favor, mas a ausência dessas condições não é uma sentença de morte para um novo aspirante a produtor de lambic. Cervejarias podem ser preparadas para propiciarem um ambiente favorável à fermentação de lambics. Uma técnica comum consiste em adquirir lambics de produtores estabelecidos e encharcar as paredes, o teto e os equipamentos da cervejaria, em especial no local onde o mosto irá resfriar e receber os microorganismos pelo ar. Repetir esse procedimento algumas vezes irá possibilitar a instalação definitiva da microflora – e, uma vez que as Brettanomyces estejam instaladas, é virtualmente impossível removê-las. Os barris onde a cerveja irá maturar também podem receber lambics de outros produtores para “prepará-los” para realizar a fermentação contínua do mosto.

Mas existe um delicado equilíbrio que deve ser observado e rigorosamente mantido entre todas essas espécies de microorganismos. Isso é especialmente verdadeiro no caso dos barris. Existem certos tipos de fungos e bactérias (em especial as bactérias acéticas e alguns tipos de mofo) que se desenvolvem naturalmente nos barris ao longo do tempo à medida que ocorre a exposição ao oxigênio, mas que podem arruinar uma boa lambic se estiverem em quantidade excessiva. Assim sendo, é preciso higienizar cuidadosamente todos os barris a cada uso, removendo as bactérias e fungos indesejáveis e deixando lá apenas os mais favoráveis.

Você já deve ter percebido, a essa altura, que é um pouco injusto chamar a fermentação das lambics de “espontânea”, assim como parece estranho chamar essas leveduras de “selvagens”. Essas palavras dão a impressão de que tudo isso ocorre naturalmente, sem esforços, quando, na verdade, o equilíbrio preciso da microflora é fruto de um longuíssimo processo de seleção artificial e de “domesticação” de certas cepas de microorganismos em detrimentos de outras. O aperfeiçoamento desse equilíbrio durante séculos provavelmente foi responsável por consolidar a fama internacional das cervejas belgas de fermentação espontânea e permitir que elas sobrevivessem à industrialização da produção cervejeira. Há uma tecnologia secular envolvida na fabricação de boas lambics, que resulta da interação harmoniosa e controlada entre homens e microorganismos, por meio de processos não industriais – mas nem por isso carentes de sofisticação, inteligência e tecnologia.

Nem tudo pode ser controlado, sem dúvida (e isso justificaria a denominação de “selvagens” que essas cervejas recebem em contraste com as ales e lagers modernas), mas uma boa parte dessa fermentação supostamente “espontânea” pode e deve ser cuidadosamente dirigida e orientada pelo produtor. Portanto, talvez seja mais correto falarmos não em “fermentação espontânea”, mas simplesmente em “fermentação não inoculada”. Senão, o resultado final estará mais próximo da infame cerveja havaiana incautamente produzida por Jeff Sparrow do que de uma boa lambic belga.

Nas próximas partes, falaremos mais sobre esses curiosos e instigantes microorganismos que ocorrem na fermentação de lambics, e descreveremos em detalhes os métodos tradicionais de produção. Não perca!

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cervejas selvagens - Parte II: A diversidade dos estilos selvagens


Cervejas selvagens, longe de comporem um único estilo bem definido e delimitado, são antes uma grande família de cervejas que podem, inclusive, compartilhar métodos de produção com as ales – algumas até são blends com ales. Antes de começarmos a falar sobre estilos específicos, portanto, é interessante termos uma visão geral dessa grande família de “bons selvagens”.

Sour or wild?

As cervejas selvagens são talvez as menos bem sistematizadas nos guias de estilos. Isso reflete o pequeno número de produtores e a variabilidade dos métodos de produção, mas, mais do que isso, reflete também o fato de que só recentemente essas cervejas começaram a receber atenção dos norte-americanos que produzem esses guias. Há subestilos tradicionais que não estão categorizados, e existem divergências importantes a respeito de outros estilos mais modernos. A terminologia ainda é pouco padronizada, mas encontramos dois termos que são geralmente usados como sinônimos para descrevê-las: sour ales e wild ales.

O primeiro, sour ales (“ales azedas”), é o mais empregado na mídia especializada e nos guias de estilo, mas aparece com significados diferentes nos guias do BJCP (onde designa uma família abrangente) e da Brewers Association (no qual é usado para indicar um estilo norte-americano específico). O termo chama a atenção para a acidez e o azedume que são típicos de cervejas fermentadas com outros microorganismos além das leveduras do gênero Saccharomyces. O especialista Jeff Sparrow, no entanto, advoga a favor do termo wild brews (“cervejas selvagens”), argumentando que a denominação sour enfatiza em demasia o azedume, quando na verdade a acidez é apenas uma das várias características que devem estar em equilíbrio em uma boa cerveja do estilo. O termo sour ale criou, especialmente no público norte-americano – dado a seus extremismos –, a ideia de que as melhores cervejas desse tipo devem também ser as mais radicalmente azedas, o que contradiz o objetivo buscado pela maior parte dos produtores de cervejas selvagens, que buscam justamente controlar o azedume para não deixar suas cervejas desequilibradas.

Dica: não olhe sua lambic preferida no microscópio.
Fonte: www.odont.uio.no
O termo “selvagem” advém da origem heterodoxa dos microorganismos usados na fabricação dessas cervejas, e se aplica com especial propriedade às lambics. Em vez de serem fermentadas por leveduras cuidadosamente purificadas e selecionados em laboratório, a maioria dessas cervejas contém uma vasta microflora que inclui dezenas de cepas de leveduras e outras espécies de fungos e bactérias. Estudos mostram que uma única lambic pode receber mais de 200 diferentes cepas de microorganismos durante os vários estágios de sua produção. Essa abundante microflora normalmente não é inoculada pelo produtor, mas adentra o mosto progressivamente pelo ar, pelas matérias-primas, pelos equipamentos produtivos, e o cervejeiro tem apenas uma parcela de controle sobre o processo. Daí a ideia de que essa microflora é “selvagem”, não domesticada – o que, como veremos, é apenas parcialmente verdadeiro, mesmo no caso das lambics.

Mais que um estilo, uma família

Os termos sour ales e wild ales são usados para designar, indistintamente, diversos tipos de cervejas selvagens que, juntos, formam uma grande família ou constelação de estilos mais ou menos próximos entre si. Em algumas dessas cervejas, as leveduras do gênero Brettanomyces são as estrelas, enquanto estão completamente ausentes em outras. Nas cervejas da região de Flandres, por exemplo, a maior contribuição é dada pelas bactérias do gênero Lactobacillus, que não têm quase nenhum papel no longo ciclo fermentativo das lambics. Algumas levam frutas, outras não. Muitas têm passagem por madeira, mas não todas. O grau de acidez, de doçura e de secura também varia muito entre elas. É um equívoco grosseiro considerar que todas as cervejas selvagens terão perfis sensoriais semelhantes, mesmo se considerarmos apenas aquelas sem frutas.

Em algum dia no passado, principalmente antes da disseminação do uso do lúpulo por volta do século XV, é provável que tenham existido variações de cervejas francamente selvagens em quase todas as regiões produtoras de cerveja do mundo. Antes que se difundisse o procedimento de colher fermento do topo do mosto para iniciar novas fermentações, dando origem, a rigor, às ales (o que provavelmente ocorreu na Idade Média), todas as cervejas produzidas ao redor do mundo provavelmente se assemelhavam às atuais lambics. A maior parte desses estilos infelizmente se perdeu com a industrialização da produção cervejeira, mas alguns ainda perduram e novos foram resgatados ou criados na recente “revolução artesanal” a partir da década de 1990.

A Bélgica é o país que mais preservou suas tradições seculares de cervejas selvagens, talvez pelo altíssimo grau de sofisticação tecnológica e de qualidade desses produtos, como teremos a oportunidade de ver nas próximas partes desta matéria. A indústria cervejeira de Bruxelas, capital do país, e da região de Pajottenland, a oeste da capital, produz os vários subestilos de lambics (lambics puras, gueuzes, fruit lambics, faro). Mais ao norte, a região de Flandres é o lar de dois diferentes estilos. A porção ocidental de Flandres, próxima ao canal da Mancha, produz as tradicionais Flanders red ales, enquanto as oud bruin são tradicionalmente produzidas na porção leste de Flandres, no vale do rio Schelde. Esses três estilos são claramente distinguíveis entre si, muito embora existam rótulos que misturem suas características. Há ainda os que gostam de classificar as saisons e as bières de garde, produzidas dos dois lados da fronteira entre a Bélgica e a França, como aparentadas às cervejas selvagens, embora elas já tenham características de ales muito mais definidas e seus traços selvagens sejam opcionais. A Bélgica ainda é, definitivamente, o paraíso dos amantes de cervejas selvagens.

As regiões produtoras de cervejas selvagens e estilos aparentados na Bélgica.
Baseado em: www.europa-mapas.com

Mas também existem cervejas selvagens fora da Bélgica – algumas tradicionais, outras derivadas de experimentos modernos. Mesmo na conservadora Alemanha cervejeira da lei de pureza da Baviera, existem as quase extintas Gose da região de Leipzig e as Berliner Weisse, as cervejas de trigo de Berlim que sofrem fermentação lática. Na Holanda, a cervejaria Gulpener produzia, até 2005, uma cerveja chamada Mestreechs Aajt que era um revival de um antigo estilo que entrou em declínio após a Segundo Guerra Mundial, semelhante às Flanders red ales. Do lado de lá do canal da Mancha, no sul da Inglaterra, existia no passado uma tradição de produzir porters a partir de um blend de cervejas escuras frescas com cervejas fortes envelhecidas, com características selvagens. Hoje em dia, algumas old ales blendadas ainda mantêm vivo esse estilo, apesar de terem uma pegada “selvagem” muito sutil.

E existem as wild e sour ales produzidas pela revolução artesanal norte-americana a partir da década de 1990. Hoje em dia, os experimentos com cervejas selvagens estão em alta nos Estados Unidos e nos polos da revolução artesanal. O dado interessante é que muitos desses experimentos têm empregado cepas de bactérias láticas e acéticas e de leveduras do gênero Brettanomyces isoladas em laboratório, num processo de “laboratorização” das cervejas selvagens. Acredito que, dentro de alguns anos, seja perfeitamente possível reproduzir com maior ou menor grau de fidelidade todos os gêneros de cervejas selvagens com inoculação de fermento e bactérias – ou seja, aproximando as wild ales dos métodos de produção de ales tradicionais, mas empregando outros tipos de microorganismos. Se chegarmos a esse ponto, talvez a produção dessas cervejas perca sua “selvageria” e se torne quase tão “domesticada” quanto qualquer outra. Está só começando a interação entre a selvageria e uma nova “indústria artesanal”!

Infelizmente, apenas uma ínfima parcela de toda essa riqueza selvagem pode ser encontrada no mercado brasileiro, que ainda não acordou para os encantos dessas cervejas. De todos os estilos mencionados, apenas as Flanders red ales estão bem representadas no Brasil, com 6 marcas contabilizando um total de 12 rótulos. Temos boa diversidade de saisons e old ales, mas elas têm muito pouco de selvagens. As lambics que temos aqui são, em sua maioria, versões “modernizadas”, adoçadas e atenuadas de seus estilos originais. Nem uma única Gose ou Berliner Weisse. Uma única marca de oud bruin, apenas com rótulos com frutas. Das “modernas”, de inspiração norte-americana, uma ou outra refermentada com Brettanomyces mas, salvo engano, nenhuma realmente sour. Duas sour ales belgas que não se enquadram em estilos tradicionais. Pouquíssimos experimentos brasileiros. Vivemos em um deserto de selvageria, mas há sinais de mudança no horizonte: a curiosidade dos brasileiros para os encantos selvagens está despertando. Quem sabe, ao final desta matéria sobre as cervejas selvagens, o panorama não tenha mudado? Espero poder contribuir com isso aqui neste blog! 

Na próxima parte desta matéria, começaremos a falar especificamente sobre as lambics belgas, começando por uma descrição dos seus complexos métodos de produção. Você nunca mais vai olhar para as lambics como cervejas “toscas” e “espontâneas”!