Cervejas selvagens, longe de comporem um único estilo bem
definido e delimitado, são antes uma grande família de cervejas que podem,
inclusive, compartilhar métodos de produção com as ales – algumas até são blends
com ales. Antes de começarmos a falar sobre estilos específicos, portanto, é
interessante termos uma visão geral dessa grande família de “bons selvagens”.
Sour or wild?
As cervejas selvagens são talvez as menos bem sistematizadas
nos guias de estilos. Isso reflete o pequeno número de produtores e a
variabilidade dos métodos de produção, mas, mais do que isso, reflete também o
fato de que só recentemente essas cervejas começaram a receber atenção dos
norte-americanos que produzem esses guias. Há subestilos tradicionais que não estão categorizados, e existem divergências importantes a respeito de
outros estilos mais modernos. A terminologia ainda é pouco padronizada, mas
encontramos dois termos que são geralmente usados como sinônimos para
descrevê-las: sour ales e wild ales.
O primeiro, sour ales
(“ales azedas”), é o mais empregado na mídia especializada e nos guias de
estilo, mas aparece com significados diferentes nos guias do BJCP (onde designa
uma família abrangente) e da Brewers Association (no qual é usado para indicar
um estilo norte-americano específico). O termo chama a atenção para a acidez e
o azedume que são típicos de cervejas fermentadas com outros microorganismos
além das leveduras do gênero Saccharomyces.
O especialista Jeff Sparrow, no entanto, advoga a favor do termo wild brews (“cervejas selvagens”),
argumentando que a denominação sour
enfatiza em demasia o azedume, quando na verdade a acidez é apenas uma das
várias características que devem estar em equilíbrio em uma boa cerveja do
estilo. O termo sour ale criou,
especialmente no público norte-americano – dado a seus extremismos –, a ideia
de que as melhores cervejas desse tipo devem também ser as mais radicalmente
azedas, o que contradiz o objetivo buscado pela maior parte dos produtores de
cervejas selvagens, que buscam justamente controlar o azedume para não deixar
suas cervejas desequilibradas.
Dica: não olhe sua lambic preferida no microscópio.
Fonte:
www.odont.uio.no |
O termo “selvagem” advém da origem heterodoxa dos
microorganismos usados na fabricação dessas cervejas, e se aplica com especial
propriedade às lambics. Em vez de serem fermentadas por leveduras
cuidadosamente purificadas e selecionados em laboratório, a maioria dessas
cervejas contém uma vasta microflora que inclui dezenas de cepas de leveduras e
outras espécies de fungos e bactérias. Estudos mostram que uma única lambic
pode receber mais de 200 diferentes cepas de microorganismos durante os vários
estágios de sua produção. Essa abundante microflora normalmente não é inoculada
pelo produtor, mas adentra o mosto progressivamente pelo ar, pelas
matérias-primas, pelos equipamentos produtivos, e o cervejeiro tem apenas uma
parcela de controle sobre o processo. Daí a ideia de que essa microflora é
“selvagem”, não domesticada – o que, como veremos, é apenas parcialmente
verdadeiro, mesmo no caso das lambics.
Mais que um estilo,
uma família
Os termos sour ales
e wild ales são usados para designar,
indistintamente, diversos tipos de cervejas selvagens que, juntos, formam uma
grande família ou constelação de estilos mais ou menos próximos entre si. Em
algumas dessas cervejas, as leveduras do gênero Brettanomyces são as estrelas, enquanto estão completamente ausentes
em outras. Nas cervejas da região de Flandres, por exemplo, a maior
contribuição é dada pelas bactérias do gênero Lactobacillus, que não têm quase nenhum papel no longo ciclo
fermentativo das lambics. Algumas levam frutas, outras não. Muitas têm passagem por madeira, mas não todas. O grau de acidez,
de doçura e de secura também varia muito entre elas. É um equívoco grosseiro
considerar que todas as cervejas selvagens terão perfis sensoriais semelhantes,
mesmo se considerarmos apenas aquelas sem frutas.
Em algum dia no passado, principalmente antes da
disseminação do uso do lúpulo por volta do século XV, é provável que tenham
existido variações de cervejas francamente selvagens em quase todas as regiões
produtoras de cerveja do mundo. Antes que se difundisse o procedimento de
colher fermento do topo do mosto para iniciar novas fermentações, dando origem,
a rigor, às ales (o que provavelmente
ocorreu na Idade Média), todas as cervejas produzidas ao redor do mundo
provavelmente se assemelhavam às atuais lambics. A maior parte desses estilos
infelizmente se perdeu com a industrialização da produção cervejeira, mas
alguns ainda perduram e novos foram resgatados ou criados na recente “revolução
artesanal” a partir da década de 1990.
A Bélgica é o país que mais preservou suas tradições
seculares de cervejas selvagens, talvez pelo altíssimo grau de sofisticação
tecnológica e de qualidade desses produtos, como teremos a oportunidade de ver
nas próximas partes desta matéria. A indústria cervejeira de Bruxelas, capital
do país, e da região de Pajottenland, a oeste da capital, produz os vários
subestilos de lambics (lambics puras, gueuzes, fruit lambics, faro). Mais ao
norte, a região de Flandres é o lar de dois diferentes estilos. A porção
ocidental de Flandres, próxima ao canal da Mancha, produz as tradicionais Flanders red ales, enquanto as oud bruin são tradicionalmente
produzidas na porção leste de Flandres, no vale do rio Schelde. Esses três
estilos são claramente distinguíveis entre si, muito embora existam rótulos que
misturem suas características. Há ainda os que gostam de classificar as saisons e as bières de garde, produzidas dos dois lados da fronteira entre a
Bélgica e a França, como aparentadas às cervejas selvagens, embora elas já
tenham características de ales muito mais definidas e seus traços selvagens
sejam opcionais. A Bélgica ainda é, definitivamente, o paraíso dos amantes de
cervejas selvagens.
As regiões produtoras de cervejas selvagens e
estilos aparentados na Bélgica.
Baseado em: www.europa-mapas.com |
Mas também existem cervejas selvagens fora da Bélgica –
algumas tradicionais, outras derivadas de experimentos modernos. Mesmo na
conservadora Alemanha cervejeira da lei de pureza da Baviera, existem as quase
extintas Gose da região de Leipzig e as Berliner
Weisse, as cervejas de trigo de Berlim que sofrem fermentação lática. Na
Holanda, a cervejaria Gulpener produzia, até 2005, uma cerveja chamada
Mestreechs Aajt que era um revival de
um antigo estilo que entrou em declínio após a Segundo Guerra Mundial, semelhante
às Flanders red ales. Do lado de lá do canal da Mancha, no sul da Inglaterra,
existia no passado uma tradição de produzir porters a partir de um blend de
cervejas escuras frescas com cervejas fortes envelhecidas, com características
selvagens. Hoje em dia, algumas old ales blendadas ainda mantêm vivo esse
estilo, apesar de terem uma pegada “selvagem” muito sutil.
E existem as wild
e sour ales produzidas pela revolução artesanal norte-americana a partir
da década de 1990. Hoje em dia, os experimentos com cervejas selvagens estão em
alta nos Estados Unidos e nos polos da revolução artesanal. O dado interessante
é que muitos desses experimentos têm empregado cepas de bactérias láticas e
acéticas e de leveduras do gênero Brettanomyces
isoladas em laboratório, num processo de “laboratorização” das cervejas
selvagens. Acredito que, dentro de alguns anos, seja perfeitamente possível
reproduzir com maior ou menor grau de fidelidade todos os gêneros de cervejas
selvagens com inoculação de fermento e bactérias – ou seja, aproximando as wild ales dos métodos de produção de ales
tradicionais, mas empregando outros tipos de microorganismos. Se chegarmos a
esse ponto, talvez a produção dessas cervejas perca sua “selvageria” e se torne
quase tão “domesticada” quanto qualquer outra. Está só começando a interação
entre a selvageria e uma nova “indústria artesanal”!
Infelizmente, apenas uma ínfima parcela de toda essa riqueza
selvagem pode ser encontrada no mercado brasileiro, que ainda não acordou para os
encantos dessas cervejas. De todos os estilos mencionados, apenas as Flanders red ales estão bem
representadas no Brasil, com 6 marcas contabilizando um total de 12 rótulos.
Temos boa diversidade de saisons e old ales, mas elas têm muito pouco de
selvagens. As lambics que temos aqui são, em sua maioria, versões “modernizadas”,
adoçadas e atenuadas de seus estilos originais. Nem uma única Gose ou Berliner Weisse. Uma única marca de oud bruin, apenas com rótulos com frutas. Das “modernas”, de
inspiração norte-americana, uma ou outra refermentada com Brettanomyces mas, salvo engano, nenhuma realmente sour. Duas sour ales belgas que não se enquadram em estilos tradicionais. Pouquíssimos experimentos
brasileiros. Vivemos em um deserto de selvageria, mas há sinais de mudança no
horizonte: a curiosidade dos brasileiros para os encantos selvagens está
despertando. Quem sabe, ao final desta matéria sobre as cervejas selvagens, o panorama não tenha mudado? Espero poder contribuir com isso aqui neste blog!
Na próxima parte desta matéria, começaremos a falar
especificamente sobre as lambics belgas, começando por uma descrição dos seus
complexos métodos de produção. Você nunca mais vai olhar para as lambics como
cervejas “toscas” e “espontâneas”!
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