quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cervejas selvagens - Parte II: A diversidade dos estilos selvagens


Cervejas selvagens, longe de comporem um único estilo bem definido e delimitado, são antes uma grande família de cervejas que podem, inclusive, compartilhar métodos de produção com as ales – algumas até são blends com ales. Antes de começarmos a falar sobre estilos específicos, portanto, é interessante termos uma visão geral dessa grande família de “bons selvagens”.

Sour or wild?

As cervejas selvagens são talvez as menos bem sistematizadas nos guias de estilos. Isso reflete o pequeno número de produtores e a variabilidade dos métodos de produção, mas, mais do que isso, reflete também o fato de que só recentemente essas cervejas começaram a receber atenção dos norte-americanos que produzem esses guias. Há subestilos tradicionais que não estão categorizados, e existem divergências importantes a respeito de outros estilos mais modernos. A terminologia ainda é pouco padronizada, mas encontramos dois termos que são geralmente usados como sinônimos para descrevê-las: sour ales e wild ales.

O primeiro, sour ales (“ales azedas”), é o mais empregado na mídia especializada e nos guias de estilo, mas aparece com significados diferentes nos guias do BJCP (onde designa uma família abrangente) e da Brewers Association (no qual é usado para indicar um estilo norte-americano específico). O termo chama a atenção para a acidez e o azedume que são típicos de cervejas fermentadas com outros microorganismos além das leveduras do gênero Saccharomyces. O especialista Jeff Sparrow, no entanto, advoga a favor do termo wild brews (“cervejas selvagens”), argumentando que a denominação sour enfatiza em demasia o azedume, quando na verdade a acidez é apenas uma das várias características que devem estar em equilíbrio em uma boa cerveja do estilo. O termo sour ale criou, especialmente no público norte-americano – dado a seus extremismos –, a ideia de que as melhores cervejas desse tipo devem também ser as mais radicalmente azedas, o que contradiz o objetivo buscado pela maior parte dos produtores de cervejas selvagens, que buscam justamente controlar o azedume para não deixar suas cervejas desequilibradas.

Dica: não olhe sua lambic preferida no microscópio.
Fonte: www.odont.uio.no
O termo “selvagem” advém da origem heterodoxa dos microorganismos usados na fabricação dessas cervejas, e se aplica com especial propriedade às lambics. Em vez de serem fermentadas por leveduras cuidadosamente purificadas e selecionados em laboratório, a maioria dessas cervejas contém uma vasta microflora que inclui dezenas de cepas de leveduras e outras espécies de fungos e bactérias. Estudos mostram que uma única lambic pode receber mais de 200 diferentes cepas de microorganismos durante os vários estágios de sua produção. Essa abundante microflora normalmente não é inoculada pelo produtor, mas adentra o mosto progressivamente pelo ar, pelas matérias-primas, pelos equipamentos produtivos, e o cervejeiro tem apenas uma parcela de controle sobre o processo. Daí a ideia de que essa microflora é “selvagem”, não domesticada – o que, como veremos, é apenas parcialmente verdadeiro, mesmo no caso das lambics.

Mais que um estilo, uma família

Os termos sour ales e wild ales são usados para designar, indistintamente, diversos tipos de cervejas selvagens que, juntos, formam uma grande família ou constelação de estilos mais ou menos próximos entre si. Em algumas dessas cervejas, as leveduras do gênero Brettanomyces são as estrelas, enquanto estão completamente ausentes em outras. Nas cervejas da região de Flandres, por exemplo, a maior contribuição é dada pelas bactérias do gênero Lactobacillus, que não têm quase nenhum papel no longo ciclo fermentativo das lambics. Algumas levam frutas, outras não. Muitas têm passagem por madeira, mas não todas. O grau de acidez, de doçura e de secura também varia muito entre elas. É um equívoco grosseiro considerar que todas as cervejas selvagens terão perfis sensoriais semelhantes, mesmo se considerarmos apenas aquelas sem frutas.

Em algum dia no passado, principalmente antes da disseminação do uso do lúpulo por volta do século XV, é provável que tenham existido variações de cervejas francamente selvagens em quase todas as regiões produtoras de cerveja do mundo. Antes que se difundisse o procedimento de colher fermento do topo do mosto para iniciar novas fermentações, dando origem, a rigor, às ales (o que provavelmente ocorreu na Idade Média), todas as cervejas produzidas ao redor do mundo provavelmente se assemelhavam às atuais lambics. A maior parte desses estilos infelizmente se perdeu com a industrialização da produção cervejeira, mas alguns ainda perduram e novos foram resgatados ou criados na recente “revolução artesanal” a partir da década de 1990.

A Bélgica é o país que mais preservou suas tradições seculares de cervejas selvagens, talvez pelo altíssimo grau de sofisticação tecnológica e de qualidade desses produtos, como teremos a oportunidade de ver nas próximas partes desta matéria. A indústria cervejeira de Bruxelas, capital do país, e da região de Pajottenland, a oeste da capital, produz os vários subestilos de lambics (lambics puras, gueuzes, fruit lambics, faro). Mais ao norte, a região de Flandres é o lar de dois diferentes estilos. A porção ocidental de Flandres, próxima ao canal da Mancha, produz as tradicionais Flanders red ales, enquanto as oud bruin são tradicionalmente produzidas na porção leste de Flandres, no vale do rio Schelde. Esses três estilos são claramente distinguíveis entre si, muito embora existam rótulos que misturem suas características. Há ainda os que gostam de classificar as saisons e as bières de garde, produzidas dos dois lados da fronteira entre a Bélgica e a França, como aparentadas às cervejas selvagens, embora elas já tenham características de ales muito mais definidas e seus traços selvagens sejam opcionais. A Bélgica ainda é, definitivamente, o paraíso dos amantes de cervejas selvagens.

As regiões produtoras de cervejas selvagens e estilos aparentados na Bélgica.
Baseado em: www.europa-mapas.com

Mas também existem cervejas selvagens fora da Bélgica – algumas tradicionais, outras derivadas de experimentos modernos. Mesmo na conservadora Alemanha cervejeira da lei de pureza da Baviera, existem as quase extintas Gose da região de Leipzig e as Berliner Weisse, as cervejas de trigo de Berlim que sofrem fermentação lática. Na Holanda, a cervejaria Gulpener produzia, até 2005, uma cerveja chamada Mestreechs Aajt que era um revival de um antigo estilo que entrou em declínio após a Segundo Guerra Mundial, semelhante às Flanders red ales. Do lado de lá do canal da Mancha, no sul da Inglaterra, existia no passado uma tradição de produzir porters a partir de um blend de cervejas escuras frescas com cervejas fortes envelhecidas, com características selvagens. Hoje em dia, algumas old ales blendadas ainda mantêm vivo esse estilo, apesar de terem uma pegada “selvagem” muito sutil.

E existem as wild e sour ales produzidas pela revolução artesanal norte-americana a partir da década de 1990. Hoje em dia, os experimentos com cervejas selvagens estão em alta nos Estados Unidos e nos polos da revolução artesanal. O dado interessante é que muitos desses experimentos têm empregado cepas de bactérias láticas e acéticas e de leveduras do gênero Brettanomyces isoladas em laboratório, num processo de “laboratorização” das cervejas selvagens. Acredito que, dentro de alguns anos, seja perfeitamente possível reproduzir com maior ou menor grau de fidelidade todos os gêneros de cervejas selvagens com inoculação de fermento e bactérias – ou seja, aproximando as wild ales dos métodos de produção de ales tradicionais, mas empregando outros tipos de microorganismos. Se chegarmos a esse ponto, talvez a produção dessas cervejas perca sua “selvageria” e se torne quase tão “domesticada” quanto qualquer outra. Está só começando a interação entre a selvageria e uma nova “indústria artesanal”!

Infelizmente, apenas uma ínfima parcela de toda essa riqueza selvagem pode ser encontrada no mercado brasileiro, que ainda não acordou para os encantos dessas cervejas. De todos os estilos mencionados, apenas as Flanders red ales estão bem representadas no Brasil, com 6 marcas contabilizando um total de 12 rótulos. Temos boa diversidade de saisons e old ales, mas elas têm muito pouco de selvagens. As lambics que temos aqui são, em sua maioria, versões “modernizadas”, adoçadas e atenuadas de seus estilos originais. Nem uma única Gose ou Berliner Weisse. Uma única marca de oud bruin, apenas com rótulos com frutas. Das “modernas”, de inspiração norte-americana, uma ou outra refermentada com Brettanomyces mas, salvo engano, nenhuma realmente sour. Duas sour ales belgas que não se enquadram em estilos tradicionais. Pouquíssimos experimentos brasileiros. Vivemos em um deserto de selvageria, mas há sinais de mudança no horizonte: a curiosidade dos brasileiros para os encantos selvagens está despertando. Quem sabe, ao final desta matéria sobre as cervejas selvagens, o panorama não tenha mudado? Espero poder contribuir com isso aqui neste blog! 

Na próxima parte desta matéria, começaremos a falar especificamente sobre as lambics belgas, começando por uma descrição dos seus complexos métodos de produção. Você nunca mais vai olhar para as lambics como cervejas “toscas” e “espontâneas”!

Nenhum comentário:

Postar um comentário