Lambic. Para qualquer apreciador de cervejas com alguma
experiência em degustação, a mera menção ao termo já é capaz de evocar
sentimentos de mistério e duplicidade. As mais “selvagens” das cervejas modernas
desafiam nosso paladar com sua acidez firme e seus aromas exóticos e podem
gerar reações extremas e antitéticas. Uma mesma lambic pode causar uma careta
de espanto irredutível em um bebedor enquanto arranca comovidos suspiros de
satisfação de outro. Quais seriam os motivos dessa nossa terrível ambiguidade
diante da selvageria?
A natureza dos românticos
Remontaremos talvez um pouco mais longe do que estamos
acostumados, do ponto de vista temático, para iluminar melhor a questão. Numa
noite de setembro de 1780, o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe
enclausurou-se em uma pequena cabana na floresta da Turíngia e, segundo reza a
lenda, deu à luz uma das incontestes obras-primas da poesia alemã, o Canto noturno do andarilho. Claro que a
leitura de qualquer poema na língua original é uma experiência única, mas a
tradução de Haroldo de Campos capta bem o ritmo do verso alemão:
Viajante sobre o mar de névoa –
Caspar Friedrich
(1818)
Fonte:
whatafy.com |
Sobre os picos
paz
Nos cimos
quase
nenhum sopro
Calam-se as aves nos
ramos.
Logo, vamos,
virá o repouso.
Goethe glorificava a natureza como um lugar onde o eu-lírico
do poeta iria buscar a calma e a plenitude, um lugar em que se viveria uma tal
experiência de comunhão com o mundo que não haveria mais nada a dizer, apenas o
silêncio: o poema original se encerra com as palavras “balde ruhest du auch”,
ou seja, “logo te calarás também”. A serenidade plena, ou o “repouso”, na
tradução de Haroldo de Campos. Em 1818, o artista plástico alemão Caspar
Frierich pintou uma tela que, para mim, é uma ilustração perfeita do poema de
Goethe: o Viajante sobre o mar de névoa,
que você vê na imagem ao lado. Mas, afinal de contas, de que natureza esses artistas,
ambos ligados ao romantismo alemão, estavam falando? Não se trata de uma
natureza próxima, ao alcance da mão, controlada, como nos parques ajardinados
com seus bancos de madeira e sua grama aparada e regular. Essa natureza dos
românticos estava além do poder de compreensão e dominação do homem: era a
natureza selvagem em sua glória sublime: a solidão da floresta da Turíngia, a
vastidão verde sob o manto acobertador das névoas – uma natureza diante da qual
resta apenas a atitude contemplativa do silêncio.
O caos das cidades industriais
Essa sensação seria praticamente inacessível para o cidadão
comum das grandes metrópoles europeias do século XIX, palcos da imensa
transformação da vida social causada pela industrialização e pela urbanização
galopantes. A cidade moderna oferecia aos seus habitantes uma experiência
frenética, barulhenta, fragmentada, caótica, que era exatamente o contrário da
serena plenitude da natureza de Goethe e Friedrich. Um dos mais eloquentes
testemunhos do desespero vivido pelos homens na cidade industrial vem de outro
poeta, desta vez o francês Charles Baudelaire, que em 1860 publicou o poema A uma passante (a tradução é de Ivan
Junqueira):
O ilustrador francês Gustave Doré registrou,
em sua
visita a Londres, o caos típico de
uma metrópole industrial do século XIX.
Fonte:
abclasses.wordpress.com |
A rua em torno era um
frenético alarido.
Toda de luto, alta e
sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com
sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a
barra do vestido.
Pernas de estátua,
era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque,
afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido
onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e
o prazer que assassina.
Que luz... e a noite
após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem
nascer outra vez,
Não mais hei de te ver
senão na eternidade?
Longe daqui! tarde
demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui,
de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado,
ó tu que bem o viste!
Baudelaire empregou aqui uma forma consagrada da poesia
ocidental, o arquiclássico soneto, tradicionalmente usado para cantar as
glórias do amor desde o século XV. Contudo, a modernidade transfigurou essa
experiência poética clássica. O eu-lírico do poema vê a mulher anônima em meio
à multidão urbana e sente amor por essa desconhecida por um momento fugaz, mas
logo perdem-se tanto a mulher quanto o sentimento em meio ao “frenético alarido”
da rua. O sentimento de A uma passante
é clara: a cidade moderna nos oferece um vislumbre do amor e da felicidade e
logo nos arranca a possibilidade de sua realização, deixando-nos incompletos e
desejosos em meio à multidão anônima.
O fascínio da
selvageria
A sensibilidade romântica emerge claramente do confronto
entre os poemas de Goethe e Baudelaire, opostos e complementares. Na natureza encontramos
a serenidade plena; na cidade, o desespero. Esse sentimento certamente nos é
muito familiar. Até hoje estamos acostumados a pensar que a metrópole é o lugar
onde trabalhamos, nos desgastamos e nos estressamos, enquanto a natureza ou o
campo é onde vamos buscar calma, sossego e uma vida mais “espontânea”, longe
das amarras e restrições artificiais e arbitrárias da nossa vida cotidiana,
protegidos da violência das cidades. O corolário dessa sensibilidade já havia
sido formulado claramente pela ideia do “bom selvagem” do filósofo Jean-Jacques
Rousseau, um hipotético homem “puro”, vivendo na inocência do estado de
natureza, não corrompido pelos vícios da civilização. O homem é naturalmente bom;
a sociedade o corrompe.
As imagens da natureza exuberante veiculadas pela
indústria do ecoturismo confirmam e exploram
essa sensibilidade da natureza
como refúgio e pureza.
Fonte:
www.pantanalecoturismo.tur.br |
Essa sensação, que pode até parecer “natural” de tão
entranhada que está na nossa cultura, na verdade é um produto histórico da
revolução industrial, na passagem do século XVIII para o XIX. A urbanização nas
sociedades capitalistas criou uma sociedade caracterizada pela intensa
desigualdade social, pelo rompimento dos laços tradicionais de solidariedade e
pela alienação das pessoas, cada vez mais consideradas apenas do ponto de vista
de suas posses materiais. É justamente nesse contexto de intensa transformação
que os românticos começam a expressar um novo sentimento, até então
inexistente, de “nostalgia” pelos valores da sociedade rural e de “admiração”
da selvageria, em oposição à corrupção percebida como característica da
sociedade urbana industrial.
As mais selvagens das
cervejas
E o que as lambics têm a ver com toda essa história? Por
acaso elas seriam bebidas “românticas” apreciadas por poetas como Goethe e
Baudelaire ou por filósofos como Rousseau? É pouco provável. É uma fortuita
coincidência (ou não...) que as lambics e outros estilos correlatos sejam
agrupados coletivamente sob a denominação de “cervejas selvagens” (wild beers ou wild ales), por motivos que ainda teremos oportunidade de discutir
longamente. Digo que isso é fortuito porque a denominação dessas cervejas como
“selvagens” coincide notavelmente com a noção romântica da “selvageria” como
algo positivo que foi perdido na modernidade industrial. E isso explica a
reação ambígua que temos com essas cervejas. Vejamos.
A denominação “cervejas selvagens” aplica-se a um pequeno
grupo de estilos, a maior parte dos quais de origem belga, que continuam sendo
produzidos segundo métodos que poderíamos chamar de “arcaicos”. Praticamente
todos os produtores de cerveja do mundo, das maiores gigantes multinacionais às
mais modestas cervejarias artesanais, selecionam e controlam rigorosamente os
microorganismos que irão realizar o milagre da fermentação em suas cervejas.
Processos automatizados, seleção e cultivo laboratoriais de cepas de leveduras,
fermentação e maturação em ambientes controlados e esterilizados,
pasteurização, tudo isso foram procedimentos tipicamente industriais
introduzidos na produção de cerveja nos séculos XIX e XX para controlar os
resultados da fermentação.
Os poucos produtores de cervejas ditas “selvagens”, por outro
lado, abdicam alegremente de todos esses artifícios industriais. Eles confiam
nos métodos artesanais e tradicionais de controle microbiológico e deixam
partes fundamentais do processo de fermentação à ação “natural” de
microorganismos que ocorrem naturalmente no ar, nos equipamentos produtivos e
na matéria-prima. Quando praticamente todos os fabricantes industriais arrancam
os cabelos ao menor sinal de contaminação microbiológica, esses cervejeiros
“selvagens” acolhem com hospitalidade e instituem uma convivência relativamente
pacífica com uma enorme gama de seres microscópicos que assolam os pesadelos
dos outros produtores.
E não é só no processo produtivo que as cervejas selvagens
parecem arcaicas: essa sensação se transmite igualmente ao degustador. Um dia
no passado (menos distante do que imaginamos), todas as cervejas do mundo
tiveram a contribuição de microorganismos hoje considerados indesejáveis pela
sua tendência de produzirem grandes quantidades de ácidos. Toda cerveja tendia
a ser, ou ficar, mais ou menos azeda. Hoje, com novas tecnologias e processos
de controle industrial, essa característica pôde ser quase eliminada da maioria
dos estilos cervejeiros conhecidos – mas não das cervejas selvagens, que
abraçam inclementemente a acidez. Ocorre que nosso paladar associa quase automaticamente
o sabor azedo a alimentos contaminados, com os quais perdemos quase toda
familiaridade nessa época de produtos alimentícios industrializados,
pasteurizados, congelados e com toneladas de conservantes químicos. Mesmo os
alimentos que passam por fermentações altamente ácidas, como os iogurtes,
costumam ser pesadamente adoçados antes de serem vendidos. Para nós, habitantes
urbanos e consumidores de produtos de supermercado, o azedo parece uma incômoda
lembrança da natureza perecível dos alimentos que compramos.
O doce talvez tenha sido o gosto predominante
na
indústria alimentícia do século XX.
Fonte:
www.shifteast.com |
É comum vermos em alguns degustadores de lambics de primeira
viagem uma careta, seguida da declaração de que “esta cerveja está estragada!”.
Esse é o resultado de séculos de comida industrializada sobre o nosso paladar:
perdemos quase totalmente a sensibilidade para o azedo. Lévi-Strauss, em seus
estudos mitológicos, propôs a ideia de que o gosto azedo é a sensação que
expressa, no domínio culinário, o poder transformador da natureza (pois os
alimentos, crus ou cozidos, azedam naturalmente com o tempo). Nosso
distanciamento da natureza na sociedade industrial também nos distanciou
lamentavelmente da possibilidade de apreciar o mistério indomável do azedo.
Cervejas como as lambics e outros estilos correlatos são um
revigorante golpe de “selvageria” em nosso paladar saturado pela pasteurização
industrial. Daí o espanto que causam, mas também se origina aí o fascínio que
suscitam. Cervejas selvagens podem chocar num primeiro momento, mas muitas
pessoas depois acabam “fisgadas” a ponto de desenvolverem uma obsessão por elas
– falo por experiência própria. O azedume sem concessões desses “bons
selvagens” nos intriga e nos desafia a rever nossos padrões de paladar. Como
crianças descobrindo um novo mundo, procuramos e aprendemos a identificar novos
equilíbrios, novas sensações e harmonias que pareciam estar “adormecidas” sob o
peso de séculos. Elas nos reconciliam com a natureza e com o selvagem dentro de
nós mesmos.
Nas próximas partes dessa matéria, teremos a oportunidade de
destrinchar os aspectos históricos, tecnológicos e sensoriais que fazem das
cervejas selvagens talvez os menos bem compreendidos estilos cervejeiros, mesmo
por aqueles que estão acostumados à diversidade cervejeira. Falaremos sobre
métodos de produção, sobre alguns rótulos clássicos e modernos e sobre as
diferenças, nem sempre óbvias num primeiro gole, entre os diversos estilos
ditos “selvagens”. Acompanhe!
Marcussi,
ResponderExcluirQue aula! Estou aguardando ansiosamente a continuação.
Daqui a alguns dias é só contratar um editor e lançar o livro do Cru e o Maltado!
Fique feliz que tenha gostado. Aguarde, porque esse é só o comecinho da nossa conversa sobre cervejas selvagens. Vem muito mais nas próximas partes!
ExcluirAlexandre,
ResponderExcluirconfesso que gosto mais de ler sobre o ambiente histórico/filosófico e das analogias ao invés das cervejas em si. Mesmo assim, no meio de suas "sagas" já me sinto um entendedor, devido a riqueza de detalhes, a clareza nas explicações e os excelentes exemplos.
Muito bom o blog cara, parabéns!
Valeu, Pines!
ExcluirPois é, eu acho que os escritos sobre cerveja, com poucas e honrosas exceções, se focam excessivamente nos aspectos técnicos ou sensoriais das cervejas. O Cru e o Maltado surgiu com a intenção de reatar esses domínios (fundamentais, sem dúvida) ao campo imensamente mais rico e intrigante da cultura, mas sem cair naquelas enfadonhas cronologias sobre a história das cervejarias. Tento buscar um equilíbrio entre esses três aspectos da coisa (técnico, sensorial e simbólico), mas nem sempre com muito sucesso! :-D Enfim, continue sintonizado,e qualquer dia a gente se vê de novo para tomar umas pessoalmente!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Parabéns Alexandre. Excelente texto.
ResponderExcluirParabéns, adorei o texto. Sou cozinheiro e entendo muito bem esta ditadura de paladar. Impera o açucar, o sal e a gordura. O desfrute do natural não se dá.
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