quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Pegando pó: Wäls Quadruppel, o duelo


Quem acompanha o mercado nacional de cervejas sabe que, se considerarmos a quantidade e a qualidade dos rótulos disponíveis atualmente, faz surpreendentemente pouco tempo que começamos a ter receitas mais ousadas e marcantes no Brasil. Isso é especialmente verdadeiro no caso de cervejas aptas para guarda. Salvo algumas honrosas exceções, apenas recentemente começamos a ver no mercado nacional cervejas com promessa de boa evolução na adega. Muitas delas começam agora a render seus primeiros frutos.

Wäls Quadruppel
Fonte: crimideia.com.br
E que deliciosos frutos! Eu me lembro perfeitamente de quando a Wäls lançou sua Quadruppel. O nome era ainda o de uma pequena cervejaria mineira que acabara de chegar ao conturbado mercado paulistano. Ainda estava longe de ser laureada como a melhor cervejaria da América do Sul (o que ocorreu no South Beer Cup, campeonato sul-americano de cerveja, de 2012), mas devo dizer que as virtudes já estavam todas lá. Havia uma certa apreensão no ar devido ao então recente falecimento do grande “mentor” cervejeiro da Wäls, o mestre Tácilo Coutinho. As receitas da cervejaria tinham acabado de ficar nas mãos de um jovem cervejeiro cheio de garra e vontade: José Felipe Carneiro.

A Wäls Quadruppel, do meu ponto de vista, comprovou de uma vez por todas a competência do José Felipe para os que ainda estavam céticos. Não bastava ser uma receita em estilo inédito no Brasil; tampouco bastava ser uma das cervejas com maior teor alcoólico do mercado nacional (acima de seus potentes 11%, havia apenas a filha-única Baden Baden Tripel e a Eisenbahn Lust). Isso já a tornaria um desafio suficiente para a cervejaria. Mas, além disso tudo, a receita da Wäls Quadruppel ainda tinha um toque exclusivo e experimental: sua maturação era feita com chips de carvalho que haviam sido previamente embebidos em legítima cachaça mineira. Identidade nacional em um produto de tradição belga.

Isso foi nos fins de 2009. O lançamento oficial ocorreu em novembro. Foi amor ao primeiro copo: eu já era fã do estilo, e fui conquistado pelo toque de cachaça da receita (perceptível no aroma e no sabor) – aliado, claro, à excelência técnica da Wäls. A empolgação só não foi maior porque o seu lançamento coincidiu com uma polêmica alteração no envase das cervejas da Wäls, que visava a evitar problemas de contaminação mas que encareceu sensivelmente o produto. Mas isso, se me fez moderar o consumo, não diminuiu minha admiração pela cerveja. Até hoje é meu rótulo preferido da Wäls, e sem dúvida uma das cervejas nacionais que mais aprecio.

Na época em que a Wäls Quadruppel foi lançada, 
esta luxuosa edição especial, a Baden Baden Tripel, 
era a cerveja mais alcoólica produzida no Brasil. 
Infelizmente, não guardei nenhum registro 
de quando a degustei.
Fonte: paraquevocerveja.blogspot.com
Estamos falando de uma receita produzida há menos de 3 anos, mas com potencial de guarda superior a isso. Isso significa que, se ainda há garrafas do primeiro lote por aí, teoricamente elas ainda devem ter mais espaço para evolução. Na época, eu ainda não tinha essa coisa de envelhecer cervejas. Claro, tinha uma ou outra garrafa especial guardadinha, mas nunca tinha me decidido a montar uma adega cervejeira de forma mais sistemática. A primeira Wäls Quadruppel que decidi envelhecer acabou na minha adega por acaso. Em abril de 2010, eu comprei uma garrafa das grandes para presentear um amigo em seu aniversário e, por um desses desencontros da vida, ele se mudou para outro estado antes que eu pudesse lhe entregar o presente. Ainda a deixei guardada pensando em entregar-lhe um dia – o prazo de validade se estendia a 2012! –, mas, depois de um tempo, ela se tornou minha quase que por usucapião. Para fazer jus ao seu fim inicialmente solene, decidi que ainda iria esperar um bocado antes de abri-la.

Pois bem, a ocasião se apresentou recentemente. Para melhor apreciar sua evolução, comprei uma garrafa jovem da Wäls Quadruppel e a comparei com a envelhecida. A minha garrafa tinha data de validade para setembro de 2012. A Wäls costuma estabelecer um prazo de três anos de validade para suas cervejas mais alcoólicas, o que significa que ela deve ter sido envasada em setembro de 2009. Só me dei conta disso agora, enquanto escrevia, mas não é impossível que a garrafa tenha sido uma remanescente do primeiro lote, produzido justamente nesse mês. A degustação ocorreu em maio de 2012; portanto, a garrafa tinha pouco mais de 2 anos de meio de guarda. Tempo o bastante para demonstrar alterações significativas? Possivelmente. Além disso, eu sabia que a receita tinha passado por algumas alterações desde então, e seria uma oportunidade legal para identificar não apenas as mudanças do envelhecimento, mas também possivelmente os traços da receita antiga.

Comecemos falando sobre a “Lolita” da nossa degustação, a Wäls Quadruppel nova. O grande protagonista, o malte, ostenta uma forte doçura caramelada que se mistura a uma sólida sensação frutada, com mamão papaya e laranja (ela leva raspas de laranja na receita) em evidência, e a um refinado perfume floral de lúpulo (ela passa por dry-hopping). Especiarias, com sensações de gengibre e cravo, dão-lhe uma pegada mais “quente”. Os chips de carvalho deixam pouco sabor de madeira, para mim, mas contribuem com fortes sensações de cachaça: inebriantes aromas da bebida e de melado de cana ajudam a lhe dar ainda mais peso e impacto. O doce predomina, como manda o estilo, e deixa o corpo grosso e levemente viscoso, mas o amargor de fundo vai acompanhando o tempo todo para dar-lhe equilíbrio. Se considerarmos o alto teor alcoólico, a sensação de aquecimento é gentil e bem-vinda. (clique aqui para ver a avaliação completa)

Na sequência, a garrafa envelhecida mostrou ótimo desempenho:

Na época, a Wäls usava rolhas de cortiça 
natural em suas garrafas. Dava um 
tremendo trabalho para tirar!
Fonte: costibebidas.com.br

Aparência: a coloração mostrou-se amarronzada-atijolada, um pouco mais escura que na versão jovem, bem opaca, com sedimentos já aparentes. O creme formou-se e manteve-se perfeitamente.
Aroma: uma explosão de complexidade ainda maior que na cerveja jovem. Os traços de oxidação já se fazem presentes, sem exagero, para complementar o malte e as frutas. As sensações de cachaça pareceram tornar-se ainda mais profundas e intensas com o tempo, lembrando até mesmo rum. O que ficou mais tênue foram as sensações mais frescas, florais, cítricas e de especiarias – mas eu também tenho a impressão de que a cerveja era um pouco menos “temperada” na época. Predominam aromas de caramelo, açúcar mascavo, ameixas secas, vinho do Porto e cachaça. Em segundo plano, algo de mamão, um toque de chocolate trufado que não achei na receita jovem, leve gengibre, um toque de perfume e um sutil e agradável aroma mentolado, provavelmente produzido durante a autólise. A oxidação começa a se fazer sentir: além do vinho do Porto, notei traços amadeirados, de plástico e terrosos sutis.
Paladar: tanto a doçura quanto o amargor pareceram ter se atenuado ligeiramente ao longo desses 2 anos e meio. No balanço geral, ela pende para a doçura até mais do que o exemplar jovem.
Sensação na boca: o aquecimento alcoólico permanece suave para o alto teor alcoólico, mas o corpo, ainda bem denso, ganhou uma sensação de licorosidade que acentua ainda mais a sua semelhança com outras bebidas mais alcoólicas (cachaça, rum, vinho do Porto) e parece complementar de forma perfeita os toques de destilado da cerveja.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Que ótima evolução da já incrível Wäls Quadruppel! A maturidade trouxe-lhe mais austeridade: ela perdeu os toques cítricos e lupulados e ganhou tons trufados, terrosos, licorosos, tornando-se mais envolvente e sedutora, mas talvez menos equilibrada. O grande ganho, a meu ver, foi ver ainda mais assertivo o toque licoroso e a pegada de “destilado” que essa cerveja tem por conta da cachaça. A oxidação estava no ponto certo: seus traços negativos começavam a se insinuar, mas ainda não se manifestavam de forma desagradável (tenho de admitir que a garrafa nem sempre foi acondicionada nas melhores condições ao longo desses 2,5 anos). O gráfico abaixo sumariza as principais diferenças:



Imagino que você deve estar com uma pergunta na cabeça: “e aí, a envelhecida é melhor do que a jovem?” Pergunta traiçoeira. A Wäls Quadruppel é uma excelente cerveja assim que sai da fábrica. Posso dizer que, com 2 anos de meio de garrafa, ela perdeu alguns de seus encantos e ganhou outros tantos. Acho que me entusiasmei mais, sim, com a garrafa envelhecida, mas também por ser uma experiência menos comum. De qualquer forma, não tiro os méritos da jovem, e convido-o a tirar suas próprias conclusões: que tal passar no seu supermercado ou empório favorito, comprar umas duas garrafinhas de Wäls Quadruppel e abrir daqui a dois anos? Aí você me diz se prefere o frescor da “Lolita” ou os encantos maduros da “balzaquiana”.

Infelizmente, essa era a única garrafa da Wäls Quadruppel que eu tinha guardada desde aquela época. Hoje em dia, terei de esperar mais um bom tempo para ser agraciado novamente com essa experiência. Claro que, como a receita mudou um pouco desde então, até lá a coisa já vai ser um pouco diferente. Mas não é esse mistério o que justamente constituiu o fascínio de envelhecer cervejas?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Pegando pó: Biertruppe Vintage Nº 1, dois anos depois


Sim, esta postagem é um apelo! E se você não sabe o porquê, certamente vai entender até o final deste texto.

Era uma vez um afinadíssimo quarteto de cervejeiros caseiros brasileiros, composto por Alexandre Bazzo (proprietário da cervejaria Bamberg), Leonardo Botto (premiado produtor caseiro de cervejas), André Clemente (designer gráfico e produtor caseiro) e Edu Passarelli (ex-sócio do bar Melograno e atual sócio da filial paulista do Aconchego Carioca, ainda a ser inaugurada). Nos idos de 2008, o quatro criaram a Biertruppe, grupo que colaborava esporadicamente na produção de excelentes receitas caseiras que se tornaram lendas no mercado nacional, como a Saint Nicholas, Belgian blond ale comemorativa de natal, e a Tcheca, uma bem-acabada e perfumada pilsner de estilo tcheco, produzida quando nosso mercado nacional ainda carecia de bons rótulos do estilo (o que, felizmente, já não ocorre mais hoje). Apesar de ser um grupo de cervejeiros caseiros, a Biertruppe conseguiu obter boa projeção para suas receitas por produzir em escala industrial, utilizando o equipamento da microcervejaria Bamberg – para a felicidade dos fãs da boa cerveja!

A Biertruppe Vintage Nº 1 maturando em barricas 
de carvalho. Observe a data de envase.
Fonte: biertruppe.blogspot.com
Talvez a mais lendária dentre as cervejas produzidas pela Biertruppe tenha sido a Biertruppe Vintage Nº 1. Tratava-se de uma barley wine inglesa bem tradicional, composta por meio de um blend de duas partes produzidas a partir da mesma brasagem, sendo que metade maturou durante 100 dias em duas barricas de carvalho especialmente adquiridas para a produção desta cerveja. Essas barricas eram usadas antes por uma vinícola do Rio Grande do Sul para a produção de vinho tinto e brandy, e hoje são utilizadas pela cervejaria Bamberg para produzir a peculiar Bamberg St. Michael – barricas de madeira às vezes possuem histórias tão interessantes quanto as cervejas que elas guardam!

A Biertruppe Vintage Nº 1 enfrentou diversos problemas com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o famigerado MAPA, e acabou não obtendo registro para comercialização regular. Por esse motivo, foi distribuída apenas de forma restrita, para poucos felizardos. Apesar de já estar tecnicamente pronta desde agosto de 2009, foi apenas em junho de 2010 que foi possível pôr as mãos (e a boca) nessa maravilha. Uma parte da cerveja original continuou por mais dois anos em uma das barricas de carvalho, e apenas recentemente foi engarrafada – desta vez, com distribuição não-comercial ainda mais restrita e exclusiva!

Não tive o privilégio de provar essa segunda versão, mas pude me deliciar com a primeira em 2010. Na época, encantado com a receita, tomei a precaução de comprar algumas garrafas extras para deixá-las envelhecendo em minha adega cervejeira. Uma dessas garrafas foi aberta recentemente, em maio deste ano – quase 2 anos depois de sua distribuição e, portanto, quase 3 anos após ela estar tecnicamente pronta. Seguem minhas impressões desta inacreditável cerveja:

Fonte: blogs.estadao.com.br
(Blog do B.O.B.)
Biertruppe Vintage Nº 1
Estilo: English barley wine
Teor alcoólico: 9.0%
Aparência: um belo marrom atijolado, ainda com transparência mediana, e creme inexistente (como é tradicional no estilo), mas com uma névoa persistente sobre o líquido.
Aroma: um espetáculo de complexidade, difícil até de descrever. Um elegante aroma de oxidação, lembrando madeira e couro, volatiza-se com facilidade e é sentido desde que se abre a garrafa. A este ponto do envelhecimento, o malte ainda aparece como protagonista, com uma imensa paleta que traz caramelo impactante, nozes, panettone, chocolate e algo tostado que pode ser uma mistura de maltes e da tosta dos barris. Figo verde e frutas cristalizadas integram-se a notas de oxidação lembrando vinho do Porto e ameixas secas, ainda pouco destacadas. O lúpulo ainda é perceptível, com perfil bem inglês, terroso e apimentado. Toques minerais (um quê caprílico?), de mofo e mel terminam de enobrecer seu perfil de envelhecimento. Uma festa de aromas e sabores, tudo se misturando de forma muito harmônica.
Paladar: ela começa fortemente doce e caramelada na boca, com alguma acidez licorosa, e logo depois manifesta-se um pesado amargor, que persiste por mais tempo. Equilibrada, ainda não teve tempo de perder o amargor original da receita.
Sensação na boca: para uma receita de 9% de álcool, a sensação de aquecimento é bem comportada. O corpo é bem denso, e a textura mostra-se licorosa e grossa. A carbonatação praticamente não existe, e a adstringência dos barris de madeira foi competentemente atenuada pelo blend.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Uma cerveja absolutamente classuda! Imenso perfil maltado, com boa profundidade e complexidade, bem equilibrado pelo lúpulo, pelo frutado e por traços de maturação e oxidação que, se já eram presentes desde o lançamento, tornaram-se ainda mais intensos, mas sem sobrepujar o conjunto. Consegue combinar impacto, complexidade e potência sem derrapar para extremismos nem ser agressiva em nenhum momento. A meu ver, uma verdadeira obra-prima.

Infelizmente, não existem mais exemplares frescos dessa receita com os quais eu pudesse comparar a garrafa envelhecida, então tive de recorrer às minhas notas de degustação, tomadas em 2010. A cerveja “jovem” (se é que podemos chamar de jovem uma cerveja que maturou por mais de 1 ano antes de ser distribuída), mostrava mais frescor, com frutas um pouco mais evidentes e um toque cítrico da lupulagem que lhe dava excelente brilho. A garrafa envelhecida perdeu um pouco desse frescor, mas o compensou com mais complexidade, notas de oxidação mais macias e presentes (madeira, couro, vinho do Porto) e um perfil terroso, mineral e de mofo mais acentuado. Autólise começa a ser identificada, mas ainda de forma bem suave, com muito espaço para se desenvolver. O gráfico abaixo ilustra essas transformações:


É interessante registrar um fenômeno que observei. Antes de abrir essa garrafa em 2012, eu tinha aberto uma por volta da metade de 2011 – um ano após sua distribuição, portanto. O curioso é que seu desempenho, naquela ocasião, não havia sido tão bom quanto na época do lançamento. Isso porque ela já perdera o frescor de um ano antes e ainda não tivera tempo de emergir com um perfil envelhecido mais macio. Ela não tinha mais os toques cítricos e frutados de um ano antes, ficara com o sabor um pouco mais “chapado” e ainda não tinha readquirido a maciez de maltes que identifiquei na última degustação. Trata-se de um claro exemplo daquilo que já discutimos antes: algumas cervejas de guarda podem enfrentar um breve período em que sua evolução mostra-se aparentemente negativa, e depois voltam a evoluir de forma positiva novamente. Portanto, se não gostou da sua cerveja de guarda depois de um ano, dê a ela uma segunda chance algum tempo depois!

De qualquer modo, apesar dos dois (ou três) anos de guarda, a Biertruppe Vintage Nº 1 ainda mostra, claramente, muito espaço para evolução. O amargor ainda é muito presente, o malte ainda mostra-se como protagonista e a oxidação, embora já bem perceptível, não ofuscou a receita original. Ainda bem que eu tenho mais algumas garrafas no escurinho da adega!

Por que eu comecei afirmando que esta matéria era um apelo? Não estou exagerando ao afirmar que a Biertruppe Vintage Nº 1 foi uma das mais cervejas mais especiais e espetaculares já produzidas em solo brasileiro. Foi uma das pioneiras em experimentos com madeira no Brasil, e o fez de maneira absolutamente impecável e virtuosa. Além disso, até hoje foi a única cerveja produzida industrialmente no Brasil que realmente representou com fidelidade o estilo das melhores barley wine inglesas. Fez inveja às representantes britânicas do estilo.

Depois da Vintage Nº 1, a Biertruppe nunca mais voltou a produzir novas receitas colaborativas. A ideia era que o grupo não repetisse suas receitas antigas, mas sempre inovasse em novas propostas. O relançamento da Tcheca, em 2010, já quebrou essa “regra”, deixando esperanças de que a Vintage também pudesse voltar a dar as caras. O próprio Alexandre Bazzo já deixou a questão em aberto, comentando que “talvez” o grupo pudesse voltar a produzir a Vintage. A verdade é que o “Nº 1” estampado no rótulo como se tivesse sido escrito em giz sobre um quadro negro, para mim, soa como uma promessa: não posso deixar de imaginar quando essa promessa irá se cumprir e se concretizar em uma Biertruppe Vintage Nº 2. E depois, por que não?, uma Nº 3, Nº 4 etc. Pelo menos poderia haver uma negociação para que alguma cervejaria comercial produzisse a receita, talvez até sob outra denominação.

Na verdade, se a Biertruppe voltará a ser produzida ou não, se haverá uma cerveja chamada Biertruppe Vintage Nº 2 ou não, no fundo isso é o menos importante. O fundamental, do meu ponto de vista como consumidor, é que um dia volte a haver, no Brasil, uma barley wine do calibre desta cerveja. Ainda estou esperando para poder voltar a preencher os espaços vazio que a Vintage Nº 1 deixou em minha adega.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Pegando pó - Parte VIII: Envelhecimento a jato


Se você está acompanhando desde o início esta matéria sobre cervejas de guarda, já está mais do que ciente de que maravilhosas surpresas o tempo pode acrescentar a uma boa cerveja com perfil para guarda. O problema, obviamente, é esperar esse tempo todo. Sim, existem alguns bares que oferecem certos rótulos envelhecidos, mas a seleção é restrita, ainda mais no Brasil. Será que não existiria alguma espécie de “atalho” para chegar logo a esse paraíso de sabores e aromas da maturidade cervejeira?

Mais ou menos como O curioso caso de Benjamin 
Button. Sem o rejuvenescimento, é claro.
Fonte: http://cv.uoc.edu
Felizmente para os apressadinhos, existe! Algumas cervejarias fazem o serviço de deixar suas cervejas envelhecerem para que cheguem a nós, consumidores, já com essas tão desejadas características. Perfeito para saciar aquela vontade súbita de uma cerveja madura, e perfeito também para quem quer primeiramente saber o que esperar de uma cerveja envelhecida antes de decidir se vai investir na montagem de uma adega.

Na verdade, as cervejarias possuem certos recursos para explorar as possibilidades do envelhecimento que são inacessíveis para nós, meros apreciadores. Maturar cervejas longamente em barris de madeira, experimentar com misturas de cervejas de diferentes graus de envelhecimento, intervir no processo de autólise, obter formas de oxidação induzida antes do engarrafamento – tudo isso é possível para uma cervejaria com vontade de experimentar com a maturação estendida de seus produtos.

O envelhecimento pode até fazer parte de uma tradição consolidada. Assim como não existe vinho do Porto sem oxidação do vinho, existem alguns estilos cervejeiros tradicionais que dependem intimamente dos processos de autólise e oxidação para obterem suas características sensoriais típicas. Em outros casos, essas características podem advir de inovações de caráter experimental. Vejamos, pois, algumas cervejas em que você poderá descobrir os fascínios do envelhecimento sem ter de esperar.

Ode à madeira

Os imponentes tonéis de madeira, denominados foeders 
em flamengo, usados pela cervejaria Rodenbach.
Fonte: belgianbeerspecialist.blogspot.com
Houve um tempo, antes da introdução dos tanques de aço nas grandes cervejarias industriais, em que a maior parte das cervejas era maturada em tonéis de madeira. Hoje em dia, essa técnica tradicional tem sido resgatada por microcervejarias para a fabricação de receitas inovadoras e fascinantes. Mas o que a madeira tem a ver com envelhecimento de cervejas? Tudo.

A madeira potencializa os efeitos do envelhecimento de três principais maneiras. Em primeiro lugar, ela é um material mais poroso do que o aço inoxidável usado para a maturação da maioria das cervejas comerciais. Isso significa que a penetração de oxigênio no líquido é maior, o que potencializa os processos de oxidação mesmo sem expor a cerveja ao ar. Além disso, essa porosidade resulta em pequenas ranhuras na madeira, habitadas por microorganismos como bactéricas e leveduras selvagens. Com o tempo, a complexidade de uma cerveja vai sendo incrementada com a sutil contribuição desses organismos.

Por fim, a madeira em si adiciona novos sabores e aromas à cerveja. As madeiras possuem compostos químicos que, com o tempo, são transmitidos à cerveja, resultando em aromas e sabores amadeirados que complementam a oxidação. Além disso, existe uma substância chamada lignina, presente em boa concentração em várias madeiras, que reage com o álcool e se transforma em vanilina. É isso mesmo que você está pensando: aroma de baunilha. Por fim, é preciso considerar que os barris usados na produção de bebidas recebem diversos tratamentos para acelerar a troca de aromas e substâncias com a bebida. Um dos métodos mais comuns consiste em queimar a parte interna do barril, o que pode resultar em aromas e sabores tostados sendo transmitidos à bebida.

Cervejas que têm boa estrutura de guarda e que maturam longamente em barris de madeira, portanto, ganham muito em complexidade, seja pelos aromas típicos da madeira, seja pela oxidação, seja pela contribuição de outros microorganismos ao processo. Um exemplo eloquente que podemos citar no mercado brasileiro é a linha Ola Dubh Special Reserve, da cervejaria escocesa Harviestoun. Todos os produtos da linha são cervejas escuras de 8% de álcool que maturam em barris de carvalho usados anteriormente para a produção do uísque Highland Park. O que varia é o número de anos que o uísque ficou dentro do barril antes da produção da cerveja. Toda a linha Ola Dubh Special Reserve apresenta excelente complexidade de aromas, misturando traços de maltes torrados, frutas, oxidação, madeira e a presença do uísque.

Fonte:
bardojota.blogspot.com
Dentre as cervejas que tomei da linha, a Ola Dubh Special Reserve 18 me pareceu exibir talvez com maior clareza traços de oxidação lembrando couro, madeira e palha. Essa característica se mistura de forma acolhedora e harmoniosa a aromas de malte torrado, caramelo, leve frutado lembrando bolo de frutas e um lúpulo apimentado e terroso, bem inglês – além, é claro, das sensações de madeira, uísque e defumado advindas do barril. Tudo muito bem equilibrado, mas o degustador atento poderá reconhecer um pouco do charme do envelhecimento enriquecendo esse mosaico de sabores e aromas. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Old ales: envelhecimento por tradição

As cervejas Ola Dubh Special Reserve são categorizada dentro de um estilo bastante abrangente conhecido como old ales, que têm especial interesse para nós. Trata-se de um estilo cervejeiro de origem britânica que admite uma ampla gama de variações, haja vista a variação de teor alcoólico – os principais guias de estilos admitem um teor alcoólico entre 6% e 9%. O que unifica a maior parte dessas cervejas é que elas passam por um processo de maturação com leveduras e de envelhecimento que pode chegar a durar anos em alguns casos. Isso lhes dá uma maior complexidade aromática, sobretudo no perfil frutado, de álcoois superiores e, em alguns casos, de oxidação.

Algumas old ales são produzidas por blendagem, ou seja, por meio de um processo de mistura de cervejas jovens e envelhecidas. Geralmente, a cervejaria produz uma cerveja robusta, de alto teor alcoólico, com boa estrutura para guarda, e a matura por vários meses. Depois disso, produz uma pale ale ou brown ale fresca, mais leve. O que vai para a garrafa é uma mistura da cerveja fresca com uma porcentagem da poderosa cerveja envelhecida.

Fonte: pritchardmedia.me
No Brasil, um ótimo rótulo que exemplifica esse grupo é a Morland Old Craft Hen, produzida pela cervejaria inglesa Greene King. Com 6.5% de álcool, essa cerveja é um blend de uma ale forte maturada durante meses em barricas de carvalho com uma pale ale jovem e fresca, e o resultado combina do melhor dos dois mundos. Um invejável frescor de maltes e lúpulos, com sugestões de nozes, caramelo, chocolate, pimenta, terroso e floral, combina-se com frutas vermelhas e passas e com traços da maturação em carvalho: baunilha, mel, madeira e até uma sugestão acética, lembrando queijo. Tudo bastante suave, bem equilibrado, com corpo leve, fácil de beber. Ou seja: uma cerveja que combina a complexidade da maturação estendida em madeira com o frescor e a drinkability. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Bières brut: controlando a autólise

Já falamos longamente sobre bières brut neste blog. Aproveito o momento para refrescar o conhecimento de meus leitores fieis e apresentar um pouquinho do estilo aos que porventura tenham conhecido este blog mais recentemente.

O que as bières brut têm a ver com envelhecimento? Uma parte essencial do processo produtivo das cervejas deste estilo nascente é a refermentação na garrafa com leveduras de vinhos espumantes, seguida de uma longa maturação que pode durar até um ano. Durante esse processo, as leveduras começam a entrar em autólise e a cerveja começa a sofrer os efeitos da oxidação. O pulo-do-gato que caracteriza o estilo é justamente o fato de que as fases finais do processo (a remoção e a expelição) permitem que o produtor remova as leveduras da garrafa, interrompendo os processos de autólise de leveduras antes que eles comecem a adicionar características desagradáveis à cerveja.

Fonte:
eisenbahn.com.br

Um exemplo de bière brut em que os traços de envelhecimento são especialmente notáveis é a brasileira Eisenbahn Lust Prestige. Com 11.5% de álcool, a cerveja matura durante um ano na garrafa antes da remoção das leveduras. Esse breve, mas decisivo período de envelhecimento lhe garante intensos aromas de rosas e abacaxis frescos, ao mesmo tempo em que adiciona aromas de mel e traços oxidativos minerais, terrosos e de amêndoas cruas. Um demonstrativo eloquente de que o envelhecimento, se bem controlado, pode contribuir também com cervejas delicadas e frescas. (Clique aqui para ver a avaliação completa; os interessados no estilo podem clicar aqui para ter acesso a um comparativo entre 5 diferentes rótulos)

Gueuzes: a domesticação das leveduras selvagens

Falamos anteriormente que o envelhecimento pode jogar a favor de cervejas produzidas com leveduras selvagens do gênero Brettanomyces. Existe um estilo cervejeiro tipicamente belga que se aproveita generosamente dessa possibilidade: as gueuzes. Um subgrupo dentro das tradicionais lambics, cervejas produzidas por fermentação espontânea na região de Bruxelas, na Bélgica, as gueuzes são o resultado de um blend de lambics jovens e envelhecidas em cave.

Toda lambic tradicional possui uma acidez e adstringência marcantes advindas da ação das leveduras selvagens – além dos exóticos aromas produzidos por esses microorganismos, normalmente descritos como “animais” (couro ou sela de cavalo), e que também lembram vinhos espumantes. Essa forte acidez pode ser um pouco assertiva demais nas lambics jovens, mas tende a se arredondar e se tornar mais elegante com o tempo. Os sofisticados aromas fenólicos produzidos pelas leveduras selvagens também se intensificam com o tempo. Por isso, é comum que os produtores de lambics misturem lambics envelhecidas com lambics jovens. O resultado, depois de uma refermentação na garrafa, são as gueuzes. Como elas possuem uma porcentagem, por vezes expressiva, de cervejas envelhecidas, um dos traços comuns das gueuzes é o aroma mineral e terroso de amêndoas cruas advindo da oxidação (benzaldeído).

Fonte: snooth.com
O processo é tão tradicional na Bélgica que existem produtores de gueuzes que nem sequer produzem a cerveja, apenas compram as lambics de diferentes produtores e trabalham com o envelhecimento e a blendagem das diferentes cervejas. Temos lastimavelmente poucas gueuzes no mercado nacional (ao menos para mim, que sou um apreciador do estilo), mas um bom exemplar é a Boon Geuze Mariage Parfait. Com elevado teor alcoólico de 8%, esta gueuze apresenta, ao lado dos traços animais e vínicos típicos do estilo, aromas apimentados e traços terrosos e minerais lembrando amêndoas cruas, advindos da oxidação. A acidez é intensa e seca, mas refrescante, com alguma doçura inicial e uma sensação salgada considerável. O final é bem adstringente, possivelmente devido aos taninos extraídos dos tonéis de madeira. Ótima representante do estilo; é uma pena que o preço não permita o consumo muito frequente. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Experimentos com oxidação induzida

A oxidação em cervejas de guarda adiciona elementos bastante positivos ao perfil sensorial da cerveja. Mas, justamente porque essas cervejas possuem estrutura para suportar longos períodos de guarda, esses elementos podem demorar bastante para se desenvolverem. A maturação estendida em madeira é o processo mais tradicionalmente usado para potencializar a oxidação, mas outras cervejarias mais ousadas e inovadoras tentaram desenvolver soluções mais... digamos, experimentais.

É o caso da cervejaria italiana Baladin, que produz uma potente barleywine de estilo inglês com 14% de álcool, receita que serve como base para elaborar sua linha de cervejas denominada Xyauyù. As Xyauyù chamam a atenção do consumidor pelo fato de serem projetadas para que a cerveja possa ser guardada mesmo depois que a garrafa já tenha sido aberta, permitindo que ela seja vendida em doses (o que felizmente atenua o impacto do seu alto preço). Mas isso não é tudo o que surpreende nessas cervejas. As Xyauyù são produzidas por meio de um processo de oxidação induzida: o oxigênio é introduzido aos poucos, de forma controlada, dentro do tanque de maturação, acelerando a oxidação da cerveja. O resultado é que temos uma cerveja recém-produzida que lembra muito a sensação de uma barleywine com vários anos de guarda.

Fonte: brejas.com.br
Dentre as cervejas que pude provar da linha, a Baladin Xyauyù EttichetaArgento é aquela em que encontrei de forma mais acentuada os traços típicos de cervejas envelhecidas. A base da receita é uma barleywine alcoólica, doce, com forte sensação caramelada. A oxidação induzida, porém, lhe dá traços muito fortes de madeira, vinho do Porto, ameixas secas, molho shoyu, molho inglês e até mesmo molho de tomate, lembrando Bloody Mary. Assim como em várias cervejas longamente envelhecidas, ela apresenta uma forte sensação salgada e de umami e uma certa acidez acética para equilibrar a intensa doçura. O conjunto é marcante, interessante, possivelmente pouco equilibrado, mas absolutamente intrigante e encantador. Um rótulo para te dar um gostinho de como é beber uma cerveja de guarda muito antiga, mas sem ter de esperar tanto tempo. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

São só essas poucas cervejas que chegam a nós carregando sensações de envelhecimento? Definitivamente não! Mas, infelizmente, tive de fazer uma seleção para não alongar esta já prolixa postagem. Poderia ter colocado outros rótulos experimentais e menos conhecidos do público brasileiro (o envelhecimento em madeira transformou-se em uma verdadeira coqueluche no meio cervejeiro norte-americano atualmente), mas optei por me restringir a rótulos aos quais temos acesso no mercado nacional, para que meus leitores tenham acesso mais fácil a essas experiências.

Bem, acredito que isso já será o bastante para mitigar sua sede e curiosidade enquanto espera pacientemente as garrafas em sua adega atingirem o seu auge! A rigor, com este post encerro esta série sobre cervejas de guarda. Porém, pretendo seguir publicando aqui, com o tempo, minhas degustações de cervejas envelhecidas. Assim posso dividir com vocês as surpresas trazidas pela minha adega ou a dos amigos queridos!