Quem acompanha o mercado nacional de cervejas sabe que, se
considerarmos a quantidade e a qualidade dos rótulos disponíveis atualmente,
faz surpreendentemente pouco tempo que começamos a ter receitas mais ousadas e
marcantes no Brasil. Isso é especialmente verdadeiro no caso de cervejas aptas
para guarda. Salvo algumas honrosas exceções, apenas recentemente começamos a
ver no mercado nacional cervejas com promessa de boa evolução na adega. Muitas
delas começam agora a render seus primeiros frutos.
Wäls
Quadruppel
Fonte:
crimideia.com.br |
E que deliciosos frutos! Eu me lembro perfeitamente de
quando a Wäls lançou sua Quadruppel. O nome era ainda o de uma pequena
cervejaria mineira que acabara de chegar ao conturbado mercado paulistano. Ainda
estava longe de ser laureada como a melhor cervejaria da América do Sul (o que
ocorreu no South Beer Cup, campeonato sul-americano de cerveja, de 2012), mas
devo dizer que as virtudes já estavam todas lá. Havia uma certa apreensão no ar
devido ao então recente falecimento do grande “mentor” cervejeiro da Wäls, o
mestre Tácilo Coutinho. As receitas da cervejaria tinham acabado de ficar nas
mãos de um jovem cervejeiro cheio de garra e vontade: José Felipe Carneiro.
A Wäls Quadruppel, do meu ponto de vista, comprovou de uma
vez por todas a competência do José Felipe para os que ainda estavam céticos.
Não bastava ser uma receita em estilo inédito no Brasil; tampouco bastava ser
uma das cervejas com maior teor alcoólico do mercado nacional (acima de seus
potentes 11%, havia apenas a filha-única Baden Baden Tripel e a Eisenbahn Lust). Isso já a tornaria um desafio suficiente para a cervejaria. Mas, além
disso tudo, a receita da Wäls Quadruppel ainda tinha um toque exclusivo e
experimental: sua maturação era feita com chips de carvalho que haviam sido
previamente embebidos em legítima cachaça mineira. Identidade nacional em um
produto de tradição belga.
Isso foi nos fins de 2009. O lançamento oficial ocorreu em
novembro. Foi amor ao primeiro copo: eu já era fã do estilo, e fui conquistado
pelo toque de cachaça da receita (perceptível no aroma e no sabor) – aliado,
claro, à excelência técnica da Wäls. A empolgação só não foi maior porque o seu
lançamento coincidiu com uma polêmica alteração no envase das cervejas da Wäls,
que visava a evitar problemas de contaminação mas que encareceu sensivelmente o
produto. Mas isso, se me fez moderar o consumo, não diminuiu minha admiração
pela cerveja. Até hoje é meu rótulo preferido da Wäls, e sem dúvida uma das
cervejas nacionais que mais aprecio.
Estamos falando de uma receita produzida há menos de 3 anos,
mas com potencial de guarda superior a isso. Isso significa que, se ainda
há garrafas do primeiro lote por aí, teoricamente elas ainda devem ter mais espaço
para evolução. Na época, eu ainda não tinha essa coisa de envelhecer cervejas.
Claro, tinha uma ou outra garrafa especial guardadinha, mas nunca tinha me
decidido a montar uma adega cervejeira de forma mais sistemática. A primeira
Wäls Quadruppel que decidi envelhecer acabou na minha adega por acaso. Em abril
de 2010, eu comprei uma garrafa das grandes para presentear um amigo em seu
aniversário e, por um desses desencontros da vida, ele se mudou para outro
estado antes que eu pudesse lhe entregar o presente. Ainda a deixei guardada
pensando em entregar-lhe um dia – o prazo de validade se estendia a 2012! –,
mas, depois de um tempo, ela se tornou minha quase que por usucapião. Para
fazer jus ao seu fim inicialmente solene, decidi que ainda iria esperar um
bocado antes de abri-la.
Pois bem, a ocasião se apresentou recentemente. Para melhor
apreciar sua evolução, comprei uma garrafa jovem da Wäls Quadruppel e a
comparei com a envelhecida. A minha garrafa tinha data de validade para
setembro de 2012. A Wäls costuma estabelecer um prazo de três anos de validade
para suas cervejas mais alcoólicas, o que significa que ela deve ter sido
envasada em setembro de 2009. Só me dei conta disso agora, enquanto escrevia,
mas não é impossível que a garrafa tenha sido uma remanescente do primeiro
lote, produzido justamente nesse mês. A degustação ocorreu em maio de
2012; portanto, a garrafa tinha pouco mais de 2 anos de meio de guarda. Tempo o
bastante para demonstrar alterações significativas? Possivelmente. Além disso,
eu sabia que a receita tinha passado por algumas alterações desde então, e
seria uma oportunidade legal para identificar não apenas as mudanças do
envelhecimento, mas também possivelmente os traços da receita antiga.
Comecemos falando sobre a “Lolita” da nossa degustação, a Wäls Quadruppel nova. O grande
protagonista, o malte, ostenta uma forte doçura caramelada que se mistura a uma
sólida sensação frutada, com mamão papaya e laranja (ela leva raspas de laranja
na receita) em evidência, e a um refinado perfume floral de lúpulo (ela passa
por dry-hopping). Especiarias, com sensações de gengibre e cravo, dão-lhe uma
pegada mais “quente”. Os chips de carvalho deixam pouco sabor de madeira, para
mim, mas contribuem com fortes sensações de cachaça: inebriantes aromas da
bebida e de melado de cana ajudam a lhe dar ainda mais peso e impacto. O doce
predomina, como manda o estilo, e deixa o corpo grosso e levemente viscoso, mas
o amargor de fundo vai acompanhando o tempo todo para dar-lhe equilíbrio. Se
considerarmos o alto teor alcoólico, a sensação de aquecimento é gentil e
bem-vinda. (clique aqui para ver a avaliação completa)
Na sequência, a garrafa envelhecida mostrou ótimo desempenho:
Na
época, a Wäls usava rolhas de cortiça
natural em suas garrafas. Dava um
tremendo trabalho para tirar!
Fonte:
costibebidas.com.br |
Aparência: a
coloração mostrou-se amarronzada-atijolada, um pouco mais escura que na versão
jovem, bem opaca, com sedimentos já aparentes. O creme formou-se e manteve-se
perfeitamente.
Aroma: uma
explosão de complexidade ainda maior que na cerveja jovem. Os traços de
oxidação já se fazem presentes, sem exagero, para complementar o malte e as
frutas. As sensações de cachaça pareceram tornar-se ainda mais profundas e
intensas com o tempo, lembrando até mesmo rum. O que ficou mais tênue foram as
sensações mais frescas, florais, cítricas e de especiarias – mas eu também
tenho a impressão de que a cerveja era um pouco menos “temperada” na época.
Predominam aromas de caramelo, açúcar mascavo, ameixas secas, vinho do Porto e
cachaça. Em segundo plano, algo de mamão, um toque de chocolate trufado que não
achei na receita jovem, leve gengibre, um toque de perfume e um sutil e
agradável aroma mentolado, provavelmente produzido durante a autólise. A
oxidação começa a se fazer sentir: além do vinho do Porto, notei traços
amadeirados, de plástico e terrosos sutis.
Paladar: tanto a
doçura quanto o amargor pareceram ter se atenuado ligeiramente ao longo desses
2 anos e meio. No balanço geral, ela pende para a doçura até mais do que o
exemplar jovem.
Sensação na boca:
o aquecimento alcoólico permanece suave para o alto teor alcoólico, mas o corpo,
ainda bem denso, ganhou uma sensação de licorosidade que acentua ainda mais a
sua semelhança com outras bebidas mais alcoólicas (cachaça, rum, vinho do
Porto) e parece complementar de forma perfeita os toques de destilado da
cerveja.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
Que ótima evolução da já incrível Wäls Quadruppel! A
maturidade trouxe-lhe mais austeridade: ela perdeu os toques cítricos e
lupulados e ganhou tons trufados, terrosos, licorosos, tornando-se mais
envolvente e sedutora, mas talvez menos equilibrada. O grande ganho, a meu ver,
foi ver ainda mais assertivo o toque licoroso e a pegada de “destilado” que
essa cerveja tem por conta da cachaça. A oxidação estava no ponto certo: seus
traços negativos começavam a se insinuar, mas ainda não se manifestavam de forma
desagradável (tenho de admitir que a garrafa nem sempre foi acondicionada nas
melhores condições ao longo desses 2,5 anos). O gráfico abaixo sumariza as
principais diferenças:
Imagino que você deve estar com uma pergunta na cabeça: “e
aí, a envelhecida é melhor do que a jovem?” Pergunta traiçoeira. A Wäls
Quadruppel é uma excelente cerveja assim que sai da fábrica. Posso dizer que,
com 2 anos de meio de garrafa, ela perdeu alguns de seus encantos e ganhou
outros tantos. Acho que me entusiasmei mais, sim, com a garrafa envelhecida,
mas também por ser uma experiência menos comum. De qualquer forma, não tiro os
méritos da jovem, e convido-o a tirar suas próprias conclusões: que tal passar
no seu supermercado ou empório favorito, comprar umas duas garrafinhas de Wäls
Quadruppel e abrir daqui a dois anos? Aí você me diz se prefere o frescor da “Lolita”
ou os encantos maduros da “balzaquiana”.
Infelizmente, essa era a única garrafa da Wäls Quadruppel
que eu tinha guardada desde aquela época. Hoje em dia, terei de esperar mais um
bom tempo para ser agraciado novamente com essa experiência. Claro que, como a
receita mudou um pouco desde então, até lá a coisa já vai ser um pouco diferente.
Mas não é esse mistério o que justamente constituiu o fascínio de envelhecer
cervejas?
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ResponderExcluirMarcussi, o ocrueomaltado me foi indicado por por Leonardo Acurcio (meu grande amigo) e desde então estive lendo (as vezes relendo) todos os posts. É realmente fantástico, parabéns!
ResponderExcluirEstou com uma Quadrupel da Wals na guarda, junto com quase todas as outras suas indicações, ou seja, você tem a obrigação de continuar o blog por no mínimo mais uns 5 anos. Tempo este que já terei bebido as velhinhas que você citou e virei aqui comentar o sucesso, ou fracasso. Heheh.
Aproveitando o este ultimo post sobre o assunto gostaria de colocar uma dúvida que tenho e ver se você pode resolve-la.
Em algumas analises sensoriais é diferenciado principalmente dois off-flavours provenientes da oxidação (não relacionados a guarda e sim a defeitos) o vulgo papelão (papel molhado, papelão e, para mim, poeira) e o grão palha (malte moído, palha e açucarado).
Saberia me dizer a diferença, em questão de transformações de compostos, entre os dois?
No mais um grande abraço e que venham mais posts!
Olá, Madeixa!
ExcluirFico feliz que tenha gostado do blog, e pode ter certeza que minha intenção é continuar escrevendo aqui por longos anos ainda! Tempo o bastante para voltarmos a partilhar impressões de cervejas velhinhas. :-)
Quanto à sua pergunta, infelizmente não serei de grande ajuda para esclarecer. Sei que o "papelão", o mais clássico indicador de oxidação, corresponde a uma substância chamada trans-2-nonenal, mas não saberia dizer a respeito do "grão palha". Mas fique atento, porque eles ocorrem também em cervejas de guarda. Mas sua manifestação sensorial é diferente do que seria em uma cerveja delicada.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Obrigado Marcussi!
ResponderExcluirA primeira vez que ouvi o termo oxidação grão palha foi de uma amiga que é degustadora da AMBEV. Parece que é a classificação para quando uma lager oxidada apresenta uma doçura residual desbalanceada. Aproveitando para indicar uma monografia da UFRGS sobre os efeitos do trans-2-nonenal na qualidade da cerveja.
Grande abraço!
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/28402/000769935.pdf?sequence=1
Interessante a monografia (e, no mínimo, atualizadíssima!), lerei assim que tiver um tempinho. Obrigado pelo link!
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
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ResponderExcluirMarcussi, creio que, assim como outras pessoas, fomos fomentados à sinuosa empreitada da guarda de cervejas por você. Comprei uma Wals Quadruppel pra envelhecer (estou aos poucos ganhando consciência das coisas, então acabo negligenciando certos rótulos óbvios como esse e começando tardiamente, mas enfim...). Porém, eu tomei uns tempos atrás uma garrafa de 375 com 3 anos e estava bem ruinzinha. Totalmente apagada e com traços desfavoráveis de oxidação. Vi no seu review de 2 anos e meio que tratou-se de uma garrafa grande e sei que, teoricamente, quanto menor a garrafa, mas rápido o envelhecimento, e vice-versa. Nesse caso, no chute, você acha que 2 anos pra uma de 375 já seria demais? Em quanto você arriscaria?
ResponderExcluirObs: ah, sim, eu deveria ter comprado mais de uma garrafa, cara. Mas tô ficando com problema de espaço aqui. =P
Edson, minha experiência me mostra que as cervejas aptas para guarda não ficam muito interessantes antes de 2 anos de envelhecimento. Existem exemplares que têm uma queda durante um período (geralmente entre 2-3 anos) e depois voltam a ficar mais interessantes. É difícil saber.
ResponderExcluirNo caso desse rótulo específico, tenho algumas garrafinhas pequenas em casa, mas estou esperando para abri-las. Devem estar com uns 3 anos já. Acho que elas têm potencial para até uns 5-7 anos, vamos ver.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi