Se você está acompanhando desde o início esta matéria sobre
cervejas de guarda, já está mais do que ciente de que maravilhosas surpresas o
tempo pode acrescentar a uma boa cerveja com perfil para guarda. O problema,
obviamente, é esperar esse tempo todo. Sim, existem alguns bares que oferecem
certos rótulos envelhecidos, mas a seleção é restrita, ainda mais no Brasil. Será
que não existiria alguma espécie de “atalho” para chegar logo a esse paraíso de
sabores e aromas da maturidade cervejeira?
Mais
ou menos como O curioso caso de Benjamin
Button. Sem o rejuvenescimento, é claro.
Fonte:
http://cv.uoc.edu |
Felizmente para os apressadinhos, existe!
Algumas cervejarias fazem o serviço de deixar suas cervejas envelhecerem para
que cheguem a nós, consumidores, já com essas tão desejadas características.
Perfeito para saciar aquela vontade súbita de uma cerveja madura, e perfeito
também para quem quer primeiramente saber o que esperar de uma cerveja
envelhecida antes de decidir se vai investir na montagem de uma adega.
Na verdade, as cervejarias possuem certos recursos para
explorar as possibilidades do envelhecimento que são inacessíveis para nós,
meros apreciadores. Maturar cervejas longamente em barris de madeira,
experimentar com misturas de cervejas de diferentes graus de envelhecimento,
intervir no processo de autólise, obter formas de oxidação induzida antes do
engarrafamento – tudo isso é possível para uma cervejaria com vontade de
experimentar com a maturação estendida de seus produtos.
O envelhecimento pode até fazer parte de uma tradição
consolidada. Assim como não existe vinho do Porto sem oxidação do vinho,
existem alguns estilos cervejeiros tradicionais que dependem intimamente dos
processos de autólise e oxidação para obterem suas características sensoriais
típicas. Em outros casos, essas características podem advir de inovações de
caráter experimental. Vejamos, pois, algumas cervejas em que você poderá descobrir
os fascínios do envelhecimento sem ter de esperar.
Ode à madeira
Os
imponentes tonéis de madeira, denominados foeders
em flamengo, usados pela cervejaria Rodenbach.
Fonte:
belgianbeerspecialist.blogspot.com |
Houve um tempo, antes da introdução dos
tanques de aço nas grandes cervejarias industriais, em que a maior parte das cervejas era
maturada em tonéis de madeira. Hoje em dia, essa técnica tradicional tem sido
resgatada por microcervejarias para a fabricação de receitas inovadoras e
fascinantes. Mas o que a madeira tem a ver com envelhecimento de cervejas?
Tudo.
A madeira potencializa os efeitos do envelhecimento de três
principais maneiras. Em primeiro lugar, ela é um material mais poroso do que o
aço inoxidável usado para a maturação da maioria das cervejas comerciais. Isso
significa que a penetração de oxigênio no líquido é maior, o que potencializa
os processos de oxidação mesmo sem expor a cerveja ao ar. Além disso, essa
porosidade resulta em pequenas ranhuras na madeira, habitadas por
microorganismos como bactéricas e leveduras selvagens. Com o tempo, a
complexidade de uma cerveja vai sendo incrementada com a sutil contribuição
desses organismos.
Por fim, a madeira em si adiciona novos sabores e aromas à
cerveja. As madeiras possuem compostos químicos que, com o tempo, são
transmitidos à cerveja, resultando em aromas e sabores amadeirados que
complementam a oxidação. Além disso, existe uma substância chamada lignina,
presente em boa concentração em várias madeiras, que reage com o álcool e se
transforma em vanilina. É isso mesmo que você está pensando: aroma de baunilha.
Por fim, é preciso considerar que os barris usados na produção de bebidas
recebem diversos tratamentos para acelerar a troca de aromas e substâncias com
a bebida. Um dos métodos mais comuns consiste em queimar a parte interna do
barril, o que pode resultar em aromas e sabores tostados sendo transmitidos à
bebida.
Cervejas que têm boa estrutura de guarda e que maturam
longamente em barris de madeira, portanto, ganham muito em complexidade, seja
pelos aromas típicos da madeira, seja pela oxidação, seja pela contribuição de
outros microorganismos ao processo. Um exemplo eloquente que podemos citar no
mercado brasileiro é a linha Ola Dubh
Special Reserve, da cervejaria escocesa Harviestoun. Todos os produtos da
linha são cervejas escuras de 8% de álcool que maturam em barris de carvalho
usados anteriormente para a produção do uísque Highland Park. O que varia é o
número de anos que o uísque ficou dentro do barril antes da produção da cerveja.
Toda a linha Ola Dubh Special Reserve apresenta excelente complexidade de
aromas, misturando traços de maltes torrados, frutas, oxidação, madeira e a
presença do uísque.
Fonte: bardojota.blogspot.com |
Dentre as cervejas que tomei da linha, a Ola Dubh Special Reserve 18 me pareceu
exibir talvez com maior clareza traços de oxidação lembrando couro, madeira e
palha. Essa característica se mistura de forma acolhedora e harmoniosa a aromas
de malte torrado, caramelo, leve frutado lembrando bolo de frutas e um lúpulo
apimentado e terroso, bem inglês – além, é claro, das sensações de madeira,
uísque e defumado advindas do barril. Tudo muito bem equilibrado, mas o
degustador atento poderá reconhecer um pouco do charme do envelhecimento enriquecendo
esse mosaico de sabores e aromas. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
Old ales:
envelhecimento por tradição
As cervejas Ola Dubh Special Reserve são categorizada dentro
de um estilo bastante abrangente conhecido como old ales, que têm especial
interesse para nós. Trata-se de um estilo cervejeiro de origem britânica que
admite uma ampla gama de variações, haja vista a variação de teor alcoólico – os
principais guias de estilos admitem um teor alcoólico entre 6% e 9%. O que
unifica a maior parte dessas cervejas é que elas passam por um processo de
maturação com leveduras e de envelhecimento que pode chegar a durar anos em
alguns casos. Isso lhes dá uma maior complexidade aromática, sobretudo no
perfil frutado, de álcoois superiores e, em alguns casos, de oxidação.
Algumas old ales são produzidas por blendagem, ou seja, por
meio de um processo de mistura de cervejas jovens e envelhecidas. Geralmente, a
cervejaria produz uma cerveja robusta, de alto teor alcoólico, com boa
estrutura para guarda, e a matura por vários meses. Depois disso, produz uma
pale ale ou brown ale fresca, mais leve. O que vai para a garrafa é uma mistura
da cerveja fresca com uma porcentagem da poderosa cerveja envelhecida.
Fonte: pritchardmedia.me |
No Brasil, um ótimo rótulo que exemplifica
esse grupo é a Morland Old Craft Hen,
produzida pela cervejaria inglesa Greene King. Com 6.5% de álcool, essa cerveja
é um blend de uma ale forte maturada durante meses em barricas de carvalho com
uma pale ale jovem e fresca, e o resultado combina do melhor dos dois mundos. Um
invejável frescor de maltes e lúpulos, com sugestões de nozes, caramelo,
chocolate, pimenta, terroso e floral, combina-se com frutas vermelhas e passas
e com traços da maturação em carvalho: baunilha, mel, madeira e até uma
sugestão acética, lembrando queijo. Tudo bastante suave, bem equilibrado, com
corpo leve, fácil de beber. Ou seja: uma cerveja que combina a complexidade da
maturação estendida em madeira com o frescor e a drinkability. (Clique aqui
para ver a avaliação completa)
Bières brut: controlando
a autólise
Já falamos longamente sobre bières brut neste blog. Aproveito o momento para refrescar o
conhecimento de meus leitores fieis e apresentar um pouquinho do estilo aos que
porventura tenham conhecido este blog mais recentemente.
O que as bières brut
têm a ver com envelhecimento? Uma parte essencial do processo produtivo das
cervejas deste estilo nascente é a refermentação na garrafa com leveduras de
vinhos espumantes, seguida de uma longa maturação que pode durar até um ano. Durante
esse processo, as leveduras começam a entrar em autólise e a cerveja começa a
sofrer os efeitos da oxidação. O pulo-do-gato que caracteriza o estilo é
justamente o fato de que as fases finais do processo (a remoção e a expelição)
permitem que o produtor remova as leveduras da garrafa, interrompendo os processos
de autólise de leveduras antes que eles comecem a adicionar características desagradáveis
à cerveja.
Fonte: eisenbahn.com.br |
Um exemplo de bière brut em que os traços de envelhecimento são especialmente
notáveis é a brasileira Eisenbahn Lust Prestige. Com 11.5% de álcool, a cerveja matura durante um ano na garrafa antes
da remoção das leveduras. Esse breve, mas decisivo período de envelhecimento
lhe garante intensos aromas de rosas e abacaxis frescos, ao mesmo tempo em que
adiciona aromas de mel e traços oxidativos minerais, terrosos e de amêndoas cruas. Um
demonstrativo eloquente de que o envelhecimento, se bem controlado, pode
contribuir também com cervejas delicadas e frescas. (Clique aqui para ver a avaliação completa; os interessados no estilo podem clicar aqui para ter acesso a um comparativo entre 5 diferentes rótulos)
Gueuzes: a
domesticação das leveduras selvagens
Falamos anteriormente que o envelhecimento pode jogar a
favor de cervejas produzidas com leveduras selvagens do gênero Brettanomyces. Existe um estilo
cervejeiro tipicamente belga que se aproveita generosamente dessa
possibilidade: as gueuzes. Um subgrupo dentro das tradicionais lambics,
cervejas produzidas por fermentação espontânea na região de Bruxelas, na
Bélgica, as gueuzes são o resultado de um blend de lambics jovens e
envelhecidas em cave.
Toda lambic tradicional possui uma acidez e adstringência
marcantes advindas da ação das leveduras selvagens – além dos exóticos aromas
produzidos por esses microorganismos, normalmente descritos como “animais”
(couro ou sela de cavalo), e que também lembram vinhos espumantes. Essa forte
acidez pode ser um pouco assertiva demais nas lambics jovens, mas tende a se
arredondar e se tornar mais elegante com o tempo. Os sofisticados aromas fenólicos produzidos pelas leveduras selvagens também se intensificam com o tempo. Por isso, é comum que os
produtores de lambics misturem lambics envelhecidas com lambics jovens. O
resultado, depois de uma refermentação na garrafa, são as gueuzes. Como elas
possuem uma porcentagem, por vezes expressiva, de cervejas envelhecidas, um dos
traços comuns das gueuzes é o aroma mineral e terroso de amêndoas cruas advindo
da oxidação (benzaldeído).
Fonte: snooth.com |
O processo é tão tradicional na Bélgica
que existem produtores de gueuzes que nem sequer produzem a cerveja, apenas
compram as lambics de diferentes produtores e trabalham com o envelhecimento e
a blendagem das diferentes cervejas. Temos lastimavelmente poucas gueuzes no
mercado nacional (ao menos para mim, que sou um apreciador do estilo), mas um
bom exemplar é a Boon Geuze Mariage Parfait. Com elevado teor alcoólico de 8%, esta gueuze apresenta, ao lado
dos traços animais e vínicos típicos do estilo, aromas apimentados e traços terrosos
e minerais lembrando amêndoas cruas, advindos da oxidação. A acidez é intensa e
seca, mas refrescante, com alguma doçura inicial e uma sensação salgada
considerável. O final é bem adstringente, possivelmente devido aos taninos
extraídos dos tonéis de madeira. Ótima representante do estilo; é uma pena que
o preço não permita o consumo muito frequente. (Clique aqui para ver a
avaliação completa)
Experimentos com
oxidação induzida
A oxidação em cervejas de guarda adiciona elementos bastante
positivos ao perfil sensorial da cerveja. Mas, justamente porque essas cervejas
possuem estrutura para suportar longos períodos de guarda, esses elementos
podem demorar bastante para se desenvolverem. A maturação estendida em madeira
é o processo mais tradicionalmente usado para potencializar a oxidação, mas
outras cervejarias mais ousadas e inovadoras tentaram desenvolver soluções
mais... digamos, experimentais.
É o caso da cervejaria italiana Baladin, que produz uma
potente barleywine de estilo inglês com 14% de álcool, receita que serve como
base para elaborar sua linha de cervejas denominada Xyauyù. As Xyauyù chamam a
atenção do consumidor pelo fato de serem projetadas para que a cerveja possa
ser guardada mesmo depois que a garrafa já tenha sido aberta, permitindo que
ela seja vendida em doses (o que felizmente atenua o impacto do seu alto
preço). Mas isso não é tudo o que surpreende nessas cervejas. As Xyauyù são
produzidas por meio de um processo de oxidação induzida: o oxigênio é
introduzido aos poucos, de forma controlada, dentro do tanque de maturação,
acelerando a oxidação da cerveja. O resultado é que temos uma cerveja
recém-produzida que lembra muito a sensação de uma barleywine com vários anos
de guarda.
Fonte: brejas.com.br |
Dentre as cervejas que pude provar da
linha, a Baladin Xyauyù EttichetaArgento é aquela em que encontrei de forma mais acentuada os traços típicos
de cervejas envelhecidas. A base da receita é uma barleywine alcoólica, doce,
com forte sensação caramelada. A oxidação induzida, porém, lhe dá traços muito
fortes de madeira, vinho do Porto, ameixas secas, molho shoyu, molho inglês e
até mesmo molho de tomate, lembrando Bloody
Mary. Assim como em várias cervejas longamente envelhecidas, ela apresenta
uma forte sensação salgada e de umami e uma certa acidez acética para
equilibrar a intensa doçura. O conjunto é marcante, interessante, possivelmente
pouco equilibrado, mas absolutamente intrigante e encantador. Um rótulo para te
dar um gostinho de como é beber uma cerveja de guarda muito antiga, mas sem ter
de esperar tanto tempo. (Clique aqui para ver a avaliação completa)
São só essas poucas cervejas que chegam a nós
carregando sensações de envelhecimento? Definitivamente não! Mas, infelizmente,
tive de fazer uma seleção para não alongar esta já prolixa postagem. Poderia
ter colocado outros rótulos experimentais e menos conhecidos do público
brasileiro (o envelhecimento em madeira transformou-se em uma verdadeira
coqueluche no meio cervejeiro norte-americano atualmente), mas optei por me
restringir a rótulos aos quais temos acesso no mercado nacional, para que meus leitores
tenham acesso mais fácil a essas experiências.
Bem, acredito que isso já será o bastante para mitigar sua sede e curiosidade enquanto espera pacientemente as garrafas em sua adega atingirem o seu auge! A rigor, com este post encerro esta série sobre cervejas de guarda. Porém, pretendo seguir publicando aqui, com o tempo, minhas degustações de cervejas envelhecidas. Assim posso dividir com vocês as surpresas trazidas pela minha adega ou a dos amigos queridos!
Bem, acredito que isso já será o bastante para mitigar sua sede e curiosidade enquanto espera pacientemente as garrafas em sua adega atingirem o seu auge! A rigor, com este post encerro esta série sobre cervejas de guarda. Porém, pretendo seguir publicando aqui, com o tempo, minhas degustações de cervejas envelhecidas. Assim posso dividir com vocês as surpresas trazidas pela minha adega ou a dos amigos queridos!
Excelente post! Mais uma vez, parabéns!
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