Sim, esta postagem é um apelo! E se você não sabe o porquê, certamente
vai entender até o final deste texto.
Era uma vez um afinadíssimo quarteto de cervejeiros caseiros
brasileiros, composto por Alexandre Bazzo (proprietário da cervejaria Bamberg),
Leonardo Botto (premiado produtor caseiro de cervejas), André Clemente
(designer gráfico e produtor caseiro) e Edu Passarelli (ex-sócio do bar
Melograno e atual sócio da filial paulista do Aconchego Carioca, ainda a ser
inaugurada). Nos idos de 2008, o quatro criaram a Biertruppe, grupo que
colaborava esporadicamente na produção de excelentes receitas caseiras que se tornaram
lendas no mercado nacional, como a Saint Nicholas, Belgian blond ale
comemorativa de natal, e a Tcheca, uma bem-acabada e perfumada pilsner de
estilo tcheco, produzida quando nosso mercado nacional ainda carecia de bons
rótulos do estilo (o que, felizmente, já não ocorre mais hoje). Apesar de ser
um grupo de cervejeiros caseiros, a Biertruppe conseguiu obter boa projeção
para suas receitas por produzir em escala industrial, utilizando o equipamento
da microcervejaria Bamberg – para a felicidade dos fãs da boa cerveja!
A
Biertruppe Vintage Nº 1 maturando em barricas
de carvalho. Observe a data de
envase.
Fonte:
biertruppe.blogspot.com |
Talvez a mais lendária
dentre as cervejas produzidas pela Biertruppe tenha sido a Biertruppe Vintage
Nº 1. Tratava-se de uma barley wine inglesa bem tradicional, composta por meio
de um blend de duas partes produzidas a partir da mesma brasagem, sendo que
metade maturou durante 100 dias em duas barricas de carvalho especialmente
adquiridas para a produção desta cerveja. Essas barricas eram usadas antes por
uma vinícola do Rio Grande do Sul para a produção de vinho tinto e brandy, e
hoje são utilizadas pela cervejaria Bamberg para produzir a peculiar Bamberg
St. Michael – barricas de madeira às vezes possuem histórias tão interessantes
quanto as cervejas que elas guardam!
A Biertruppe Vintage Nº 1 enfrentou diversos problemas com o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o famigerado MAPA, e
acabou não obtendo registro para comercialização regular. Por esse motivo, foi
distribuída apenas de forma restrita, para poucos felizardos. Apesar de já
estar tecnicamente pronta desde agosto de 2009, foi apenas em junho de 2010 que
foi possível pôr as mãos (e a boca) nessa maravilha. Uma parte da cerveja
original continuou por mais dois anos em uma das barricas de carvalho, e apenas
recentemente foi engarrafada – desta vez, com distribuição não-comercial ainda
mais restrita e exclusiva!
Não tive o privilégio de provar essa segunda versão, mas
pude me deliciar com a primeira em 2010. Na época, encantado com a receita,
tomei a precaução de comprar algumas garrafas extras para deixá-las envelhecendo
em minha adega cervejeira. Uma dessas garrafas foi aberta recentemente, em maio
deste ano – quase 2 anos depois de sua distribuição e, portanto, quase 3 anos
após ela estar tecnicamente pronta. Seguem minhas impressões desta
inacreditável cerveja:
Fonte:
blogs.estadao.com.br
(Blog do B.O.B.) |
Biertruppe Vintage Nº
1
Estilo: English
barley wine
Teor alcoólico:
9.0%
Aparência: um
belo marrom atijolado, ainda com transparência mediana, e creme inexistente
(como é tradicional no estilo), mas com uma névoa persistente sobre o líquido.
Aroma: um espetáculo de complexidade, difícil até de descrever. Um
elegante aroma de oxidação, lembrando madeira e couro, volatiza-se com
facilidade e é sentido desde que se abre a garrafa. A este ponto do
envelhecimento, o malte ainda aparece como protagonista, com uma imensa paleta
que traz caramelo impactante, nozes, panettone, chocolate e algo tostado que
pode ser uma mistura de maltes e da tosta dos barris. Figo verde e frutas
cristalizadas integram-se a notas de oxidação lembrando vinho do Porto e
ameixas secas, ainda pouco destacadas. O lúpulo ainda é perceptível, com perfil
bem inglês, terroso e apimentado. Toques minerais (um quê caprílico?), de mofo
e mel terminam de enobrecer seu perfil de envelhecimento. Uma festa de aromas e
sabores, tudo se misturando de forma muito harmônica.
Paladar: ela
começa fortemente doce e caramelada na boca, com alguma acidez licorosa, e logo
depois manifesta-se um pesado amargor, que persiste por mais tempo.
Equilibrada, ainda não teve tempo de perder o amargor original da receita.
Sensação na boca:
para uma receita de 9% de álcool, a sensação de aquecimento é bem comportada. O
corpo é bem denso, e a textura mostra-se licorosa e grossa. A carbonatação
praticamente não existe, e a adstringência dos barris de madeira foi
competentemente atenuada pelo blend.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
Uma cerveja absolutamente classuda! Imenso perfil maltado,
com boa profundidade e complexidade, bem equilibrado pelo lúpulo, pelo frutado
e por traços de maturação e oxidação que, se já eram presentes desde o
lançamento, tornaram-se ainda mais intensos, mas sem sobrepujar o conjunto.
Consegue combinar impacto, complexidade e potência sem derrapar para
extremismos nem ser agressiva em nenhum momento. A meu ver, uma verdadeira
obra-prima.
Infelizmente, não existem mais exemplares frescos dessa
receita com os quais eu pudesse comparar a garrafa envelhecida, então tive de
recorrer às minhas notas de degustação, tomadas em 2010. A cerveja “jovem” (se
é que podemos chamar de jovem uma cerveja que maturou por mais de 1 ano antes
de ser distribuída), mostrava mais frescor, com frutas um pouco mais evidentes
e um toque cítrico da lupulagem que lhe dava excelente brilho. A garrafa
envelhecida perdeu um pouco desse frescor, mas o compensou com mais complexidade,
notas de oxidação mais macias e presentes (madeira, couro, vinho do Porto) e um
perfil terroso, mineral e de mofo mais acentuado. Autólise começa a ser
identificada, mas ainda de forma bem suave, com muito espaço para se
desenvolver. O gráfico abaixo ilustra essas transformações:
É interessante registrar um fenômeno que observei. Antes de
abrir essa garrafa em 2012, eu tinha aberto uma por volta da metade de 2011 –
um ano após sua distribuição, portanto. O curioso é que seu desempenho, naquela
ocasião, não havia sido tão bom quanto na época do lançamento. Isso porque ela
já perdera o frescor de um ano antes e ainda não tivera tempo de emergir com um
perfil envelhecido mais macio. Ela não tinha mais os toques cítricos e frutados
de um ano antes, ficara com o sabor um pouco mais “chapado” e ainda não tinha
readquirido a maciez de maltes que identifiquei na última degustação. Trata-se
de um claro exemplo daquilo que já discutimos antes: algumas cervejas de guarda
podem enfrentar um breve período em que sua evolução mostra-se aparentemente
negativa, e depois voltam a evoluir de forma positiva novamente. Portanto, se
não gostou da sua cerveja de guarda depois de um ano, dê a ela uma segunda
chance algum tempo depois!
De qualquer modo, apesar dos dois (ou três) anos de guarda,
a Biertruppe Vintage Nº 1 ainda mostra, claramente, muito espaço para evolução.
O amargor ainda é muito presente, o malte ainda mostra-se como protagonista e a
oxidação, embora já bem perceptível, não ofuscou a receita original. Ainda bem
que eu tenho mais algumas garrafas no escurinho da adega!
Por que eu comecei afirmando que esta matéria era um apelo?
Não estou exagerando ao afirmar que a Biertruppe Vintage Nº 1 foi uma das mais
cervejas mais especiais e espetaculares já produzidas em solo brasileiro. Foi
uma das pioneiras em experimentos com madeira no Brasil, e o fez de maneira
absolutamente impecável e virtuosa. Além disso, até hoje foi a única cerveja
produzida industrialmente no Brasil que realmente representou com fidelidade o
estilo das melhores barley wine inglesas. Fez inveja às representantes
britânicas do estilo.
Depois da Vintage Nº 1, a Biertruppe nunca mais voltou a
produzir novas receitas colaborativas. A ideia era que o grupo não repetisse
suas receitas antigas, mas sempre inovasse em novas propostas. O relançamento
da Tcheca, em 2010, já quebrou essa “regra”, deixando esperanças de que a
Vintage também pudesse voltar a dar as caras. O próprio Alexandre Bazzo já
deixou a questão em aberto, comentando que “talvez” o grupo pudesse voltar a
produzir a Vintage. A verdade é que o “Nº 1” estampado no rótulo como se
tivesse sido escrito em giz sobre um quadro negro, para mim, soa como uma
promessa: não posso deixar de imaginar quando essa promessa irá se cumprir e se
concretizar em uma Biertruppe Vintage Nº 2. E depois, por que não?, uma Nº 3,
Nº 4 etc. Pelo menos poderia haver uma negociação para que alguma cervejaria
comercial produzisse a receita, talvez até sob outra denominação.
Na verdade, se a Biertruppe voltará a ser produzida ou não,
se haverá uma cerveja chamada Biertruppe Vintage Nº 2 ou não, no fundo isso é o
menos importante. O fundamental, do meu ponto de vista como consumidor, é que um
dia volte a haver, no Brasil, uma barley wine do calibre desta cerveja. Ainda
estou esperando para poder voltar a preencher os espaços vazio que a Vintage Nº
1 deixou em minha adega.
Concordo totalmente Marcussi.
ResponderExcluirUma das melhores cervejas que já tomei. Top 5! Experiência única.
Tamo junto nesse apelo para que a Biertuppe volte a produzir essa maravilha.
um abraço
Realmente foi uma cerveja extraordinária. Quando a bebi pela primeira vez, não sabia se ficava feliz por uma cerveja brasileira desse calibre, ou triste porque ela seria uma edição limitada! :-)
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