segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Pegando pó: Biertruppe Vintage Nº 1, dois anos depois


Sim, esta postagem é um apelo! E se você não sabe o porquê, certamente vai entender até o final deste texto.

Era uma vez um afinadíssimo quarteto de cervejeiros caseiros brasileiros, composto por Alexandre Bazzo (proprietário da cervejaria Bamberg), Leonardo Botto (premiado produtor caseiro de cervejas), André Clemente (designer gráfico e produtor caseiro) e Edu Passarelli (ex-sócio do bar Melograno e atual sócio da filial paulista do Aconchego Carioca, ainda a ser inaugurada). Nos idos de 2008, o quatro criaram a Biertruppe, grupo que colaborava esporadicamente na produção de excelentes receitas caseiras que se tornaram lendas no mercado nacional, como a Saint Nicholas, Belgian blond ale comemorativa de natal, e a Tcheca, uma bem-acabada e perfumada pilsner de estilo tcheco, produzida quando nosso mercado nacional ainda carecia de bons rótulos do estilo (o que, felizmente, já não ocorre mais hoje). Apesar de ser um grupo de cervejeiros caseiros, a Biertruppe conseguiu obter boa projeção para suas receitas por produzir em escala industrial, utilizando o equipamento da microcervejaria Bamberg – para a felicidade dos fãs da boa cerveja!

A Biertruppe Vintage Nº 1 maturando em barricas 
de carvalho. Observe a data de envase.
Fonte: biertruppe.blogspot.com
Talvez a mais lendária dentre as cervejas produzidas pela Biertruppe tenha sido a Biertruppe Vintage Nº 1. Tratava-se de uma barley wine inglesa bem tradicional, composta por meio de um blend de duas partes produzidas a partir da mesma brasagem, sendo que metade maturou durante 100 dias em duas barricas de carvalho especialmente adquiridas para a produção desta cerveja. Essas barricas eram usadas antes por uma vinícola do Rio Grande do Sul para a produção de vinho tinto e brandy, e hoje são utilizadas pela cervejaria Bamberg para produzir a peculiar Bamberg St. Michael – barricas de madeira às vezes possuem histórias tão interessantes quanto as cervejas que elas guardam!

A Biertruppe Vintage Nº 1 enfrentou diversos problemas com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o famigerado MAPA, e acabou não obtendo registro para comercialização regular. Por esse motivo, foi distribuída apenas de forma restrita, para poucos felizardos. Apesar de já estar tecnicamente pronta desde agosto de 2009, foi apenas em junho de 2010 que foi possível pôr as mãos (e a boca) nessa maravilha. Uma parte da cerveja original continuou por mais dois anos em uma das barricas de carvalho, e apenas recentemente foi engarrafada – desta vez, com distribuição não-comercial ainda mais restrita e exclusiva!

Não tive o privilégio de provar essa segunda versão, mas pude me deliciar com a primeira em 2010. Na época, encantado com a receita, tomei a precaução de comprar algumas garrafas extras para deixá-las envelhecendo em minha adega cervejeira. Uma dessas garrafas foi aberta recentemente, em maio deste ano – quase 2 anos depois de sua distribuição e, portanto, quase 3 anos após ela estar tecnicamente pronta. Seguem minhas impressões desta inacreditável cerveja:

Fonte: blogs.estadao.com.br
(Blog do B.O.B.)
Biertruppe Vintage Nº 1
Estilo: English barley wine
Teor alcoólico: 9.0%
Aparência: um belo marrom atijolado, ainda com transparência mediana, e creme inexistente (como é tradicional no estilo), mas com uma névoa persistente sobre o líquido.
Aroma: um espetáculo de complexidade, difícil até de descrever. Um elegante aroma de oxidação, lembrando madeira e couro, volatiza-se com facilidade e é sentido desde que se abre a garrafa. A este ponto do envelhecimento, o malte ainda aparece como protagonista, com uma imensa paleta que traz caramelo impactante, nozes, panettone, chocolate e algo tostado que pode ser uma mistura de maltes e da tosta dos barris. Figo verde e frutas cristalizadas integram-se a notas de oxidação lembrando vinho do Porto e ameixas secas, ainda pouco destacadas. O lúpulo ainda é perceptível, com perfil bem inglês, terroso e apimentado. Toques minerais (um quê caprílico?), de mofo e mel terminam de enobrecer seu perfil de envelhecimento. Uma festa de aromas e sabores, tudo se misturando de forma muito harmônica.
Paladar: ela começa fortemente doce e caramelada na boca, com alguma acidez licorosa, e logo depois manifesta-se um pesado amargor, que persiste por mais tempo. Equilibrada, ainda não teve tempo de perder o amargor original da receita.
Sensação na boca: para uma receita de 9% de álcool, a sensação de aquecimento é bem comportada. O corpo é bem denso, e a textura mostra-se licorosa e grossa. A carbonatação praticamente não existe, e a adstringência dos barris de madeira foi competentemente atenuada pelo blend.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Uma cerveja absolutamente classuda! Imenso perfil maltado, com boa profundidade e complexidade, bem equilibrado pelo lúpulo, pelo frutado e por traços de maturação e oxidação que, se já eram presentes desde o lançamento, tornaram-se ainda mais intensos, mas sem sobrepujar o conjunto. Consegue combinar impacto, complexidade e potência sem derrapar para extremismos nem ser agressiva em nenhum momento. A meu ver, uma verdadeira obra-prima.

Infelizmente, não existem mais exemplares frescos dessa receita com os quais eu pudesse comparar a garrafa envelhecida, então tive de recorrer às minhas notas de degustação, tomadas em 2010. A cerveja “jovem” (se é que podemos chamar de jovem uma cerveja que maturou por mais de 1 ano antes de ser distribuída), mostrava mais frescor, com frutas um pouco mais evidentes e um toque cítrico da lupulagem que lhe dava excelente brilho. A garrafa envelhecida perdeu um pouco desse frescor, mas o compensou com mais complexidade, notas de oxidação mais macias e presentes (madeira, couro, vinho do Porto) e um perfil terroso, mineral e de mofo mais acentuado. Autólise começa a ser identificada, mas ainda de forma bem suave, com muito espaço para se desenvolver. O gráfico abaixo ilustra essas transformações:


É interessante registrar um fenômeno que observei. Antes de abrir essa garrafa em 2012, eu tinha aberto uma por volta da metade de 2011 – um ano após sua distribuição, portanto. O curioso é que seu desempenho, naquela ocasião, não havia sido tão bom quanto na época do lançamento. Isso porque ela já perdera o frescor de um ano antes e ainda não tivera tempo de emergir com um perfil envelhecido mais macio. Ela não tinha mais os toques cítricos e frutados de um ano antes, ficara com o sabor um pouco mais “chapado” e ainda não tinha readquirido a maciez de maltes que identifiquei na última degustação. Trata-se de um claro exemplo daquilo que já discutimos antes: algumas cervejas de guarda podem enfrentar um breve período em que sua evolução mostra-se aparentemente negativa, e depois voltam a evoluir de forma positiva novamente. Portanto, se não gostou da sua cerveja de guarda depois de um ano, dê a ela uma segunda chance algum tempo depois!

De qualquer modo, apesar dos dois (ou três) anos de guarda, a Biertruppe Vintage Nº 1 ainda mostra, claramente, muito espaço para evolução. O amargor ainda é muito presente, o malte ainda mostra-se como protagonista e a oxidação, embora já bem perceptível, não ofuscou a receita original. Ainda bem que eu tenho mais algumas garrafas no escurinho da adega!

Por que eu comecei afirmando que esta matéria era um apelo? Não estou exagerando ao afirmar que a Biertruppe Vintage Nº 1 foi uma das mais cervejas mais especiais e espetaculares já produzidas em solo brasileiro. Foi uma das pioneiras em experimentos com madeira no Brasil, e o fez de maneira absolutamente impecável e virtuosa. Além disso, até hoje foi a única cerveja produzida industrialmente no Brasil que realmente representou com fidelidade o estilo das melhores barley wine inglesas. Fez inveja às representantes britânicas do estilo.

Depois da Vintage Nº 1, a Biertruppe nunca mais voltou a produzir novas receitas colaborativas. A ideia era que o grupo não repetisse suas receitas antigas, mas sempre inovasse em novas propostas. O relançamento da Tcheca, em 2010, já quebrou essa “regra”, deixando esperanças de que a Vintage também pudesse voltar a dar as caras. O próprio Alexandre Bazzo já deixou a questão em aberto, comentando que “talvez” o grupo pudesse voltar a produzir a Vintage. A verdade é que o “Nº 1” estampado no rótulo como se tivesse sido escrito em giz sobre um quadro negro, para mim, soa como uma promessa: não posso deixar de imaginar quando essa promessa irá se cumprir e se concretizar em uma Biertruppe Vintage Nº 2. E depois, por que não?, uma Nº 3, Nº 4 etc. Pelo menos poderia haver uma negociação para que alguma cervejaria comercial produzisse a receita, talvez até sob outra denominação.

Na verdade, se a Biertruppe voltará a ser produzida ou não, se haverá uma cerveja chamada Biertruppe Vintage Nº 2 ou não, no fundo isso é o menos importante. O fundamental, do meu ponto de vista como consumidor, é que um dia volte a haver, no Brasil, uma barley wine do calibre desta cerveja. Ainda estou esperando para poder voltar a preencher os espaços vazio que a Vintage Nº 1 deixou em minha adega.

2 comentários:

  1. Concordo totalmente Marcussi.
    Uma das melhores cervejas que já tomei. Top 5! Experiência única.
    Tamo junto nesse apelo para que a Biertuppe volte a produzir essa maravilha.

    um abraço

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    1. Realmente foi uma cerveja extraordinária. Quando a bebi pela primeira vez, não sabia se ficava feliz por uma cerveja brasileira desse calibre, ou triste porque ela seria uma edição limitada! :-)

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