quarta-feira, 23 de maio de 2012

Pegando pó - Parte I: A dignidade de uma cerveja envelhecida


A ideia de guardar garrafas de cerveja – cheias, para bebê-las mais tarde, entenda-se – pode ainda soar estranha a muita gente. Acostumamo-nos a associar a cerveja a uma aura de descontração, festa, imediatez e juventude, a um espírito de carpe diem para o qual vale mais a alegria do agora do que a paciência do amanhã. A ideia às vezes causa espanto. “Não é só o vinho que deve ser envelhecido?”

Como é sabido, a maior parte das cervejas comercializadas por aí (em especial as pilsen levíssimas a que estamos acostumados desde que começamos a beber) devem ser consumidas o mais rapidamente possível depois que saem da fábrica. O tempo ocasiona uma série de reações químicas, em especial as de oxidação, que podem levar a resultados bastante desagradáveis. O lema estampado na embalagem da Budweiser americana – Fresh beer knows better, algo como “cerveja fresca sabe a verdade” – aplica-se bem à vasta maioria das cervejas do mercado.

Alguém falou em
envelhecer bem?
Fonte: blogdocapucho.blogspot.com
Mas, assim como existem alguns seres humanos com a invejável capacidade de acumularem mais charme com o tempo, em vez de perdê-lo, sabemos que algumas cervejas também podem envelhecer com muita nobreza, eventualmente tornando-se mais interessantes do que quando frescas. São as chamadas “cervejas de guarda”. O costume de guardar cervejas não é novo: já no século XVIII, era um hábito inglês produzir uma cerveja extraforte para celebrar o nascimento de um filho e deixá-la engarrafada para ser consumida apenas quando ele atingisse a maioridade.

Uma das experiências mais interessantes que as cervejas têm a nos oferecer é a de sua própria evolução. Assim como os homens, as cervejas se deparam com a inevitabilidade da passagem do tempo. É impossível vencer o tempo, mas a batalha por convertê-lo de inimigo em oportunidade de um crescimento proveitoso é uma espécie de teste a que todos temos de passar para darmos sentido a nossas vidas. Creio que é isso que faz das cervejas envelhecidas uma experiência tão instigante: elas oferecem um vislumbre da nossa própria maneira de lidar com o tempo, e nos mostram que existem meios sutis, astuciosos e belíssimos de dar sentido à sua passagem implacável e irreversível.

Participar ativamente desse processo, montando sua própria adega para envelhecer algumas garrafas para consumo próprio, é uma experiência que recomendo a todo fã de cervejas. Cervejas envelhecidas têm um apelo intrínseco: frutos de um processo particular e paciente de evolução, elas são absolutamente únicas. Você pode beber a cerveja mais cara e mais rara que o dinheiro pode comprar: ainda assim, você sabe que ela só foi sua naquele momento fugaz do consumo. Qualquer um pode ter exatamente a mesma experiência se estiver disposto a gastar o mesmo que você. Uma cerveja que você mesmo envelheceu, por sua vez, é o mais exclusivo dos produtos: ela te acompanhou silenciosamente durante anos, presenciou seus dilemas e seus conflitos cotidianos, resistiu aos seus impulsos de consumi-la precocemente, esteve com você nos altos e baixos, paciente, esperando a hora de juntar-se à sua alegria em um momento aguardado de celebração que talvez tenha requerido anos de esforço pessoal e luta. Algumas garrafas são guardadas já com data certa para serem abertas, como no caso das cervejas inglesas com as quais se comemorava a maioridade dos filhos. Imagine se seu pai tivesse guardado uma cerveja muito especial, desde antes de você nascer, só para dividir com você no seu 18º aniversário. É como se aquela garrafa confidente carregasse dentro dela um pedacinho da sua vida. Não há nada mais exclusivo e pessoal do que isso.

E tem outro fator: não há duas garrafas exatamente iguais de uma cerveja envelhecida. Pequenas diferenças na safra, na fermentação secundária (dentro da garrafa) ou no transporte podem ampliar-se ao longo dos anos. Diferentes condições de acondicionamento também acarretarão alterações sensíveis ao final de anos de guarda. Um grau de diferença na temperatura em que uma garrafa é armazenada ao longo de 5 anos, ou a posição em que ela fica, podem determinar diferenças cruciais. Abrir uma cerveja de guarda é um desafio à sorte: você nunca sabe exatamente o que encontrará. Se esse princípio já vale para boa parte das cervejas refermentadas na garrafa, aplica-se com ainda mais intensidade para cervejas de guarda. Por tudo isso, cervejas de guarda oferecem experiências únicas, exclusivas e fascinantes de degustação.

O Kulminator, na Antuérpia (Bélgica), 
oferece garrafas que estão sendo envelhecidas 
desde os anos 1970!
Fonte: yozo.be
Alguns bares oferecem garrafas envelhecidas para seus clientes – evidentemente, com um certo custo embutido. Às vezes, a especulação chega a um ponto que uma garrafa especialmente cobiçada, envelhecida durante um longo tempo, pode chegar a custar quase 10 vezes o seu valor inicial. Dividir esse preço com amigos é uma das formas mais fáceis de ter acesso a essa experiência. Alguns bares, inclusive, oferecem as famigeradas “degustações verticais” de certos rótulos: ou seja, uma degustação sequencial de várias safras da mesma cerveja, em diferentes pontos de seu envelhecimento. Uma oportunidade e tanto para aprendizado. No Brasil, o tradicional FrangÓ costumava oferecer em sua generosa carta de cervejas degustações verticais da Chimay Bleue e da Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw. Na Bélgica, chega a haver bares especializados em cervejas safradas.

O mercado brasileiro ainda tem muito a amadurecer até chegar a esse ponto, inclusive do ponto de vista legislativo. Uma cerveja de guarda também tem data de validade, mas é sabido que ela pode continuar evoluindo de forma positiva muito tempo depois de terminada sua validade nominal. Contudo, da perspectiva da lei, não interessa o quanto a cerveja esteja boa: um estabelecimento comercial não tem permissão para vendê-la após a data de validade nominal estampada pelo fabricante ou pelo importador no rótulo. Assim sendo, a possibilidade legal de degustações verticais em bares, no Brasil, segue limitada talvez a cinco anos, no máximo, no caso de cervejas com validade especialmente longa.

Eu, particularmente, acho que comprar uma garrafa envelhecida por outrem é mais ou menos como beijar a própria irmã. Alguma coisa está faltando. Para mim, a paciência de esperar anos para abrir uma garrafa, o trabalho de seleção dos rótulos, o cuidado com sua adega, tudo isso vai adicionando um significado especial e um valor afetivo às cervejas que você mesmo guarda. Ou que alguém querido se dispôs a guardar para você – acredito que um dos presentes mais legais que um fã de cervejas pode ganhar é uma garrafa que tenha sido envelhecida pela pessoa que o presenteia. É preciso ser muito amigo para se desfazer de uma garrafa que está com você há anos, e isso torna o presente ainda mais especial.

Quando falamos em cervejas no Brasil para além do mainstream das lagers claras tradicionais, tudo ainda é muito novo. Mas eu ainda sonho com uma época em que os cervejeiros não disputem a tapa para saber quem bebeu a cerveja mais cara, mas sim compartilhem com seus amigos querido o prazer de beber garrafas que eles mesmos envelheceram. Se o hábito de envelhecer cervejas em casa fosse mais frequente entre os apreciadores, seria grande a chance de reunir alguns amigos e montar uma bela degustação vertical de algum rótulo, da qual todos sairiam engrandecidos.

Obter essas experiências requer um pouco de paciência e organização, mas não é difícil e nem precisa ser especialmente caro. Nas próximas partes desta matéria, tentaremos entender melhor o que acontece com a cerveja durante o envelhecimento, e veremos algumas dicas práticas a respeito de como montar sua adega de guarda e aproveitar melhor suas experiências com cervejas envelhecidas.

domingo, 13 de maio de 2012

Guias de estilo - Epílogo: Os irmãos mais velhos


Assim que comecei a escrever esta série de artigos sobre guias de estilo, já sabia que eu queria que ela terminasse com uma análise da Colorado Indica à luz dos dois guias que analisamos. Foi com um sentimento positivo de surpresa que eu soube do lançamento da mais nova cerveja da Colorado, a Vixnu, enquanto estava no processo de escrita. Trata-se da muito aguardada IPA imperial da cervejaria de Ribeirão Preto, elaborada a partir de uma extrapolação da receita da nossa Indica. A ideia era tentadora: terminar esta matéria falando da Colorado Vixnu em relação à Indica. É o que faremos, pois.

Bebi a Vixnu pela primeira vez no final de 2010, quando ela ainda era chamada simplesmente de Double Indica. Os lamentáveis, mas não inabituais imbróglios burocráticos com o MAPA, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, acabaram adiando o lançamento comercial para 2012. De lá para cá, a receita passou por alguns ajustes, mas o espírito da receita de 2010 ainda se manteve no lançamento comercial.

Como seu nome inicial já prefigurava, ela usa como base a receita da Indica, mas com maior quantidade de ingredientes: mais lúpulo para um aroma e amargor mais intensos, mais malte para um teor alcoólico, corpo e doçura mais proeminentes, e mais rapadura para – bem, para ainda mais brasilidade! O rótulo, com um inusitado urso de quatro braços à moda do deus indiano Vixnu, também segue a mesma linha, exagerando o tom já decididamente lisérgico da Indica.

Fonte: brejas.com
Colorado Vixnu
Aparência: coloração acobreada com tons alaranjados e avermelhados, transparente, com creme persistente, de volume mediano. Muito bonita na taça!
Aromas: como na Indica, um duelo de titãs entre as percepções do lúpulo e do malte/rapadura. O lúpulo é proeminente (como pede o estilo), ostentando uma enorme gama de aromas de variedades norte-americanas: o maracujá predomina e, aliado à doçura, cria uma intensa impressão de mousse de maracujá, acompanhado de capim-cidreira, lavanda, manga, leve apimentado e uma nuance apimentada. Excelente complexidade, muito além do maracujá já classicamente associado ao lúpulo Amarillo. O malte vem com força logo atrás: caramelo intenso, torradas e leve toque tostado/queimado ao final. A doçura do malte e o frescor dos lúpulos se unem criando uma forte impressão de geleia ou compota de frutas. Aparecem ésteres frutados remetendo a banana para arrematar o conjunto.
Paladar: uma forte doçura de geleia e o amargor do lúpulo duelam do início ao fim. O gole começa bem doce na língua, mostra bom amargor, finaliza mais uma vez puxando à doçura maltada e deixa um residual mais amargo e perene na garganta. Ao longo de toda a degustação, ambas as sensações ficam rentes uma à outra, cada qual prevalecendo apenas brevemente sobre o seu contrário.
Sensação na boca: muito denso e viscoso, com uma gostosa e melada sensação de geleia que atenua o aquecimento alcoólico. Até por conta desse corpo acentuado, não tem muita drinkability – é uma cerveja pesada.

Veja aqui a avaliação completa.

Em todos os sentidos, a Colorado Vixnu passa a sensação de ser algo como o “irmão mais velho” da Indica, sendo mais corpulenta, forte e intensa que ela. As mesmas características de nascença, mas todas elevadas alguns graus acima. A mesma alegria e tropicalidade se expressam na convivência do frutado/floral com o caramelado, a mesma indulgência se impõe na forte doçura de geleia de frutas.  Uma transposição perfeita do “espírito” da Indica para o estilo das IPAs imperiais.

Lembro-me de que, quando esta cerveja foi lançada pela primeira vez, eu estava numa fase de descoberta do estilo. Havia acabado de degustar várias IPAs imperiais norte-americanas e não pude deixar de perceber que a da Colorado se diferenciava bastante dos exemplares clássicos do estilo, que apresentam corpo mais leve, sensação mais limpa e doçura bem mais suave. Na época, leviana e apressadamente, julguei essa discrepância como um defeito ou uma espécie de desvantagem da Vixnu. Hoje, percebo que esse é exatamente o charme desta cerveja, seu diferencial em relação ao estilo. É exatamente o que faz com que a Vixnu tenha, em relação às IPAs imperiais, a mesma colocação que a Indica tem em relação às IPAs americanas.

A comparação com uma IPA imperial arquiclássica ajudará a esclarecer isso. Na última parte desta matéria, comparamos a IPA da Colorado com a Blind Pig, da californiana Russian River. Nada mais justo, portanto, que compararmos a Vixnu com o “irmão mais velho” da Blind Pig: a lendária Pliny, the Elder.

Fonte: edurecomenda.blogspot.com
Russian River Pliny, the Elder
Aparência: o líquido mostra coloração alaranjada clara e intensa, com uma opacidade que é comum em cervejas com muito lúpulo (os americanos chamam-na de “hop haze”). A espuma não tem muito volume, e nem tampouco persistência acentuada.
Aromas: uma paulada de lúpulos, com perfil herbal incrivelmente intenso e perfumado acompanhado de cítricos e condimentados em bom equilíbrio. Predomina o herbal remetendo a capim-cidreira, extremamente fragrante, acompanhado de ervas finas, tangerinas, pimenta-do-reino, erva-doce e um tiquinho de grama seca só para dar uma lembrança de rusticidade. A complexidade só não impressiona mais do que a vivacidade desses aromas no nariz e na boca. O malte aparece discretamente com sabor de mel e uma lembrança tostada ao final, ocupando o palco apenas pelo tempo suficiente para preparar a audiência para o show virtuoso dos lúpulos. Há ainda uma certa doçura frutada remetendo a laranja ou abacaxi que amarra bem o frescor lupulado.
Paladar: mais uma vez, o lúpulo é quem comanda o show, mas com um elenco de coadvujantes bem afinado. A doçura do malte pode ser sentida inicialmente de forma discreta, mas suficiente para preparar a boca e a garganta para a intensidade do amargor que vem na sequência. Esse amargor persiste na boca e na garganta, mas mostra-se limpo e gentil, sem aspereza nenhuma. Esta cerveja impressiona especialmente pela forma como o amargor é, ao mesmo tempo, muito intenso e muito bem equilibrado.
Sensação na boca: o corpo é mediano para leve, fácil de beber, mas com agradável textura cremosa que lhe dá riqueza e interesse sem tirar-lhe a drinkability. A sensação alcoólica é diabolicamente ocultada: mal se sente o aquecimento dos seus 8% de álcool. Tudo isso contribui para torna-la perigosamente fácil de beber.

Veja aqui a avaliação completa.

O mais impressionante da Pliny, the Elder é o quanto ela é, ao mesmo tempo, intensa e leve, marcante e fácil de beber. Por ser uma cerveja de estilo “imperial”, extrema, com considerável teor alcoólico, a gente já vai esperando uma porrada nos nossos sentidos. Ao contrário disso, ela se mostra elegante, sóbria, gentil e extremamente redonda. Uma lady. Não é à toa que se tornou um clássico dentro do seu estilo.

Um dado interessante salta à vista quando comparamos cada uma das cervejas da mesma cervejaria. Tecnicamente, a intensidade de amargor das IPAs imperiais é maior do que a das IPAs americanas (65-100 contra 50-70 IBUs, ou unidades de amargor, segundo o guia da Brewers Association). Ou seja, do ponto de vista estritamente quantitativo, a Vixnu e a Pliny, the Elder são cervejas mais amargas do que a Indica e a Blind Pig, respectivamente. Contudo, isso não se confirma no paladar. Na nossa percepção, a Indica mostra uma sensação de amargor maior do que a Vixnu, e a Blind Pig também provoca uma sensação de amargor muito mais acentuada que a Pliny, the Elder. Isso porque, se as IPAs imperiais têm mais amargor, também têm muito mais doçura residual do malte e sensação adocicada do álcool para equilibrar o amargor na nossa percepção. As IPAs americanas, as “caçulas”, podem até ter menos IBUs, mas também são bem mais secas, aumentando a percepção organoléptica do amargor. Fica a indicação: por mais contraintuitivo que possa parecer, se você está procurando uma cerveja mais amarga, aposte nas IPAs (pelo menos no caso dessas duas cervejarias).

Com a Pliny, the Elder, eu aprendi que uma cerveja pode ser extremamente marcante sem ser cansativa, pesada ou impactante. Daí veio meu espanto ao beber a Vixnu pela primeira vez: quando eu estava esperando a leveza, a delicadeza e a elegância da Pliny, the Elder, a Colorado me recebeu festiva e espalhafatosamente com uma sonora saudação e um abraço apertado e caloroso. À moda brasileira, diga-se de passagem. Como se ela me dissesse: “por que escolher entre o amargor e a doçura? por que não se deliciar com tudo ao mesmo tempo?”

Esse abraço caloroso do ursinho de quatro braços ficou na minha memória até março deste ano, quando finalmente tivemos acesso à versão comercial da cerveja e eu decidi reavaliá-la à luz do que estava escrevendo para esta matéria. Só aí que caiu minha ficha de verdade. A doçura indulgente e melada da Vixnu não era um defeito: pelo contrário, ela era justamente sua marca registrada, o seu parentesco de nascença com a Indica, o DNA da Colorado no mundo das IPAs. E com que deleite desavergonhado me entreguei então ao desfrute dessa doçura, sem culpa nenhuma! Se ampliarmos o gráfico da postagem anterior para incluir a Vixnu e a Pliny, the Elder, essa semelhança torna-se mais clara:


As cervejas da Colorado continuam ocupando os quadrantes opostos às cervejas da Russian River no eixo austeridade-alegria. Enquanto a Blind Pig mostra-se uma cerveja austera e de forte impacto, a Pliny, the Elder demonstra mais leveza, mas ainda a mesma austeridade. A Vixnu, por sua vez, repete o mesmo binômio “alegria-impacto” que caracteriza a Indica. Ou seja, a Vixnu não faz senão extrapolar a vocação da Indica, mantendo-se perfeitamente fiel à identidade da cervejaria. Se a Vixnu realmente fosse por um caminho de secura e leveza (como normalmente vemos nos exemplares clássicos do estilo), provavelmente não faria jus à inovação representada pela Indica no mundo das IPAs americanas (como discutimos na parte anterior desta matéria).

Já não estaríamos extrapolando o tema desta matéria, que são os guias de estilo? Na verdade, não. O que as duas cervejas da Colorado nos ensinam é que, se ficarmos excessivamente presos às definições mais ortodoxas dos guias de estilo, podemos deixar de apreciar propostas inovadoras. Ficaremos fossilizados e petrificados. Guias de estilo precisam ser dinâmicos e adequados aos diferentes contextos em que serão usados. Para alguns casos, a flexibilidade da Brewers Association se mostra mais adequada, mas não supera a precisão do BJCP, crucial em outras situações. Ambos são instrumentos fundamentais, mas são como aquelas ferramentas que você precisa aprender a usar com maestria para, num segundo momento, também saber esquecer delas quando apropriado. Ou você quer perder o calor da uma apertada saudação de quatro braços do simpático deus-ursinho da Colorado?

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guias de estilos - Parte IX: O cânone e a inovação


Na última parte desta matéria, fizemos um pente fino na já clássica Colorado Indica, para descobrir que ela se adequa mal ao seu estilo se comparada com o guia do BJCP, mas revela-se um exemplar competente e inovador do mesmo estilo de acordo com a Brewers Association. Qual o sentido dessa divergência, afinal de contas? Em termos da experiência de quem bebe, o que significa esse “desvio” que a Indica faz em relação a cânone das IPAs americanas?

Desde que comecei a escrever neste blog, tenho defendido o exercício de “pensar com o copo”. Portanto, nada melhor do que nossas bocas e narizes para responder à questão que levantei. Tarefa ingrata, não é? Comparemos, pois, a nossa querida Indica com uma cerveja que pode ser considerada um dos mais canônicos exemplares do estilo “American IPA”. O rigoroso guia do BJCP a cita com destaque (em terceiro lugar) como um exemplo comercial do estilo. Estamos falando da Blind Pig, produzida pela cervejaria californiana Russian River Brewing Co. Vamos a ela:

Fonte: beerobsessed.com
Russian River Blind Pig
Aparência: o liquido de coloração alaranjada clara é opaco e mostra espuma bem cremosa, de cor marfim, com volume e persistência muito bons
Aromas: os lúpulos norte-americanos atropelam os outros elementos da receita num solo virtuoso. Predomina a característica herbal, com um forte aroma que os norte-americanos normalmente descrevem como “pinho” e que me remete intensamente a capim cidreira. Limão, pimenta e terroso complementam bem esse perfil agudo e elegante, e nota-se um certo toque de grama seca de dry-hopping que a torna mais rústica. O malte é limpo, quase neutro, como preconiza o estilo, mas é possível notar um levíssimo sabor de tosta suave ao final para arrematar. Esterificação praticamente nula – aqui é o lúpulo americano quem brilha sozinho como superstar.
Paladar: assim que ela toca a língua, prenuncia-se um efêmero equilíbrio entre doçura sutil e amargor, mas a doçura desaparece rápido e o amargor seco toma conta completamente, complementado por uma acidez bem relevante. O final é seco, amargo, rústico, raspando na garganta.
Sensação na boca: corpo leve, mostrando a enorme atenuação de açúcares da receita, mas com uma agradável textura aveludada e quase sem sensação de álcool.

Clique aqui para ver uma avaliação completa.

Um show de lúpulos. Uma paulada de amargor e secura complementada pelo perfil aromático de lúpulo elegante e sóbrio, puxando mais para o herbal e condimentado do que para o floral, cítrico e frutado típico de outras variedades americanas de lúpulo mais conhecidas no Brasil. Doçura muito suave, corpo bem leve e perfil neutro de fermentação abrem espaço para que o lúpulo brilhe praticamente sozinho, para a festa dos amantes da erva. Exatamente como preconiza a descrição do estilo do BJCP, aliás. É bem verdade que, para o meu gosto pessoal, ela acaba sendo um pouco seca e rústica demais – mas, vamos e venhamos, você não comprou uma clássica IPA americana esperando uma cerveja doce, não é mesmo?

Para quem acompanhou a última parte desta matéria, não é difícil perceber que se trata de uma IPA com proposta muito diferente da Colorado Indica. Aliás, o contraste com a Indica foi exatamente o motivo que me levou a escolhê-la. Uma representação visual das duas cervejas, em relação aos principais parâmetros do estilo, pode nos ajudar a entender as diferenças com mais clareza:


Pelo gráfico, não é difícil perceber que, enquanto a Blind Pig aposta no amargor, no baixo corpo (características típicas do estilo) e no perfil herbal do lúpulo, a Colorado Indica pende mais para o corpo marcante, para os toques caramelados e adocicados (se comparada com outras IPAs americanas, claro) e para o perfil floral e frutado do lúpulo. Ou seja, a Colorado atenuou propositalmente as características mais severas e austeras do estilo e reforçou seus elementos mais festivos e alegres. Exatamente o contrário do que faz a Russian River com sua Blind Pig – ela apostou na elegância, na força e na austeridade.


Poderíamos dizer que a Colorado fez uma releitura do estilo, acentuando ainda mais as características festivas que, de certa forma, já encontramos em algumas variedades de lúpulos americanos. Tornou sua IPA mais indulgente, mais alegre – tropicalizou-a, em suma. O que, evidentemente, tem tudo a ver com os ingredientes tipicamente nacionais e com a imagem geral de “brasilidade” buscada pela cervejaria. Esse espírito de brasilidade não está apenas nos nomes ou na identidade visual da marca (colorida, exuberante, tropical); está também no perfil sensorial de suas cervejas – ou pelo menos de algumas delas, como nos mostra sua Indica.

Na verdade, essa releitura das pale ales americanas tem feito escola entre as cervejarias brasileiras e parece ter tudo a ver com as expectativas do público consumidor no Brasil. Analisamos com cuidado a Colorado Indica, mas poderíamos citar a Dama Beer India Pale Ale, de Piracicaba/SP, como mais um exemplo de IPA brasileira em que se combina o perfil fresco, frutado e floral, dos lúpulos americanos, com a suavidade e a doçura de malte das IPAs inglesas. Se sairmos das IPAs e olharmos para as pale ales de estilo americano, não é difícil ver na premiada Way American Pale Ale, de Curitiba/PR, também uma interpretação do estilo apostando na maciez dos maltes.

Estamos diante de um “jeito brasileiro” de produzir pale ales? É cedo para dizer, mas pode ser que sim. Um jeito que combina frescor, alegria, doçura e maciez. Alguns poderiam objetar que essas características foram buscadas pelas cervejarias porque o público brasileiro ainda não estaria “maduro” o suficiente para o amargor extremo das pale ales americanas. Ultimamente tenho até ouvido algumas críticas a essas IPAs brasileiras que apostam mais na doçura. Eu prefiro pensar de outra forma. Prefiro pensar que o público brasileiro é maduro o bastante para saber o que quer e para desenvolver uma interpretação particular e criativa de um estilo estrangeiro.

Começamos esta história falando de guias de estilo cervejeiros e fomos parar num possível conceito de inovação cervejeira. Mas é que a cerveja conduz nossas ideias a caminhos nos quais nosso pensamento se entrega deliciosamente. Voltemos, porém, ao tema da nossa matéria. O guia do BJCP, em seu entendimento estrito de estilos, pode ser mais criterioso e rigoroso para julgar exemplares clássicos de estilos consolidados, e fará justiça e lendas como a Russian River Blind Pig. Mas escorregaremos ao tentar usar a mesma ferramenta para produtos que buscam uma medida de criatividade e inovação. Para esses casos, talvez a conivência do guia do Brewers Association, embora menos rigorosa, possa fornecer uma aproximação menos injusta.

Os guias de estilo, a rigor, sempre estão numa corrida vã contra a história. Eles precisam “correr atrás do prejuízo” para conceituar e sistematizar estilos muito tempo depois que eles já caíram nas graças dos produtores e consumidores. Enquanto isso, a criatividade dos cervejeiros galopa a rédea solta, construindo a história, alheia a regras que ela sabe serem meramente provisórias.