quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guias de estilos - Parte IX: O cânone e a inovação


Na última parte desta matéria, fizemos um pente fino na já clássica Colorado Indica, para descobrir que ela se adequa mal ao seu estilo se comparada com o guia do BJCP, mas revela-se um exemplar competente e inovador do mesmo estilo de acordo com a Brewers Association. Qual o sentido dessa divergência, afinal de contas? Em termos da experiência de quem bebe, o que significa esse “desvio” que a Indica faz em relação a cânone das IPAs americanas?

Desde que comecei a escrever neste blog, tenho defendido o exercício de “pensar com o copo”. Portanto, nada melhor do que nossas bocas e narizes para responder à questão que levantei. Tarefa ingrata, não é? Comparemos, pois, a nossa querida Indica com uma cerveja que pode ser considerada um dos mais canônicos exemplares do estilo “American IPA”. O rigoroso guia do BJCP a cita com destaque (em terceiro lugar) como um exemplo comercial do estilo. Estamos falando da Blind Pig, produzida pela cervejaria californiana Russian River Brewing Co. Vamos a ela:

Fonte: beerobsessed.com
Russian River Blind Pig
Aparência: o liquido de coloração alaranjada clara é opaco e mostra espuma bem cremosa, de cor marfim, com volume e persistência muito bons
Aromas: os lúpulos norte-americanos atropelam os outros elementos da receita num solo virtuoso. Predomina a característica herbal, com um forte aroma que os norte-americanos normalmente descrevem como “pinho” e que me remete intensamente a capim cidreira. Limão, pimenta e terroso complementam bem esse perfil agudo e elegante, e nota-se um certo toque de grama seca de dry-hopping que a torna mais rústica. O malte é limpo, quase neutro, como preconiza o estilo, mas é possível notar um levíssimo sabor de tosta suave ao final para arrematar. Esterificação praticamente nula – aqui é o lúpulo americano quem brilha sozinho como superstar.
Paladar: assim que ela toca a língua, prenuncia-se um efêmero equilíbrio entre doçura sutil e amargor, mas a doçura desaparece rápido e o amargor seco toma conta completamente, complementado por uma acidez bem relevante. O final é seco, amargo, rústico, raspando na garganta.
Sensação na boca: corpo leve, mostrando a enorme atenuação de açúcares da receita, mas com uma agradável textura aveludada e quase sem sensação de álcool.

Clique aqui para ver uma avaliação completa.

Um show de lúpulos. Uma paulada de amargor e secura complementada pelo perfil aromático de lúpulo elegante e sóbrio, puxando mais para o herbal e condimentado do que para o floral, cítrico e frutado típico de outras variedades americanas de lúpulo mais conhecidas no Brasil. Doçura muito suave, corpo bem leve e perfil neutro de fermentação abrem espaço para que o lúpulo brilhe praticamente sozinho, para a festa dos amantes da erva. Exatamente como preconiza a descrição do estilo do BJCP, aliás. É bem verdade que, para o meu gosto pessoal, ela acaba sendo um pouco seca e rústica demais – mas, vamos e venhamos, você não comprou uma clássica IPA americana esperando uma cerveja doce, não é mesmo?

Para quem acompanhou a última parte desta matéria, não é difícil perceber que se trata de uma IPA com proposta muito diferente da Colorado Indica. Aliás, o contraste com a Indica foi exatamente o motivo que me levou a escolhê-la. Uma representação visual das duas cervejas, em relação aos principais parâmetros do estilo, pode nos ajudar a entender as diferenças com mais clareza:


Pelo gráfico, não é difícil perceber que, enquanto a Blind Pig aposta no amargor, no baixo corpo (características típicas do estilo) e no perfil herbal do lúpulo, a Colorado Indica pende mais para o corpo marcante, para os toques caramelados e adocicados (se comparada com outras IPAs americanas, claro) e para o perfil floral e frutado do lúpulo. Ou seja, a Colorado atenuou propositalmente as características mais severas e austeras do estilo e reforçou seus elementos mais festivos e alegres. Exatamente o contrário do que faz a Russian River com sua Blind Pig – ela apostou na elegância, na força e na austeridade.


Poderíamos dizer que a Colorado fez uma releitura do estilo, acentuando ainda mais as características festivas que, de certa forma, já encontramos em algumas variedades de lúpulos americanos. Tornou sua IPA mais indulgente, mais alegre – tropicalizou-a, em suma. O que, evidentemente, tem tudo a ver com os ingredientes tipicamente nacionais e com a imagem geral de “brasilidade” buscada pela cervejaria. Esse espírito de brasilidade não está apenas nos nomes ou na identidade visual da marca (colorida, exuberante, tropical); está também no perfil sensorial de suas cervejas – ou pelo menos de algumas delas, como nos mostra sua Indica.

Na verdade, essa releitura das pale ales americanas tem feito escola entre as cervejarias brasileiras e parece ter tudo a ver com as expectativas do público consumidor no Brasil. Analisamos com cuidado a Colorado Indica, mas poderíamos citar a Dama Beer India Pale Ale, de Piracicaba/SP, como mais um exemplo de IPA brasileira em que se combina o perfil fresco, frutado e floral, dos lúpulos americanos, com a suavidade e a doçura de malte das IPAs inglesas. Se sairmos das IPAs e olharmos para as pale ales de estilo americano, não é difícil ver na premiada Way American Pale Ale, de Curitiba/PR, também uma interpretação do estilo apostando na maciez dos maltes.

Estamos diante de um “jeito brasileiro” de produzir pale ales? É cedo para dizer, mas pode ser que sim. Um jeito que combina frescor, alegria, doçura e maciez. Alguns poderiam objetar que essas características foram buscadas pelas cervejarias porque o público brasileiro ainda não estaria “maduro” o suficiente para o amargor extremo das pale ales americanas. Ultimamente tenho até ouvido algumas críticas a essas IPAs brasileiras que apostam mais na doçura. Eu prefiro pensar de outra forma. Prefiro pensar que o público brasileiro é maduro o bastante para saber o que quer e para desenvolver uma interpretação particular e criativa de um estilo estrangeiro.

Começamos esta história falando de guias de estilo cervejeiros e fomos parar num possível conceito de inovação cervejeira. Mas é que a cerveja conduz nossas ideias a caminhos nos quais nosso pensamento se entrega deliciosamente. Voltemos, porém, ao tema da nossa matéria. O guia do BJCP, em seu entendimento estrito de estilos, pode ser mais criterioso e rigoroso para julgar exemplares clássicos de estilos consolidados, e fará justiça e lendas como a Russian River Blind Pig. Mas escorregaremos ao tentar usar a mesma ferramenta para produtos que buscam uma medida de criatividade e inovação. Para esses casos, talvez a conivência do guia do Brewers Association, embora menos rigorosa, possa fornecer uma aproximação menos injusta.

Os guias de estilo, a rigor, sempre estão numa corrida vã contra a história. Eles precisam “correr atrás do prejuízo” para conceituar e sistematizar estilos muito tempo depois que eles já caíram nas graças dos produtores e consumidores. Enquanto isso, a criatividade dos cervejeiros galopa a rédea solta, construindo a história, alheia a regras que ela sabe serem meramente provisórias.

3 comentários:

  1. Oi Marcussi, muito legal o post.

    Em primeiro lugar gostaria de saber se esses gráficos, que ficaram muito interessantes, são coisa sua ou isso é trabalho de algum software cervejeiro específico?

    Em segundo lugar, fiquei bem confuso agora com a definição de American IPA. Sei que a Colorado e outras IPAs brasileiras não se encaixam bem ao estilo, pelo "excesso" da douçura, mas para mim, a American IPA era principalmente cítrica. Esse perfil seco e "piney" eu vejo mais em Imperial IPAs, onde prevalecem lúpulos mais herbáceos (fortes e predominates), além da grama do dry hopping. Meu mundo pode virar de cabeça pra baixo mesmo? Hehehe.

    Só pra completar, um excelente exemplar desse aroma de capim cidreira pode ser percebido na Brooklyn Sorachi Ace, que usou um lúpulo raro japonês em sua formulação e trouxe um perfil bem cítrico (mas pouco amargo) à cerveja. Não achei a melhor coisa do mundo, mas acho que foi a breja que mais senti esse sabor entre todas que já bebi.

    Abraços, parabéns e foi mal pelo testamento.

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    1. Olá, Leo! Agradeço os comentários, como sempre muito interessantes. Em relação aos gráficos, eu os monto com ferramentas simples do Office, embutidas no Word. Depois é só salvar como imagem para postar aqui no blog.

      Sobre a definição de American IPA, ambos os guias consultados são claros a esse respeito: é preciso que o perfil de lúpulo seja típico de variedades norte-americanas. Se será cítrico, frutado, floral, herbal, isso pouco importa, desde que seja americano. O perfil herbal, "piney" (normalmente combinado com cítrico) é típico de IPAs da costa oeste dos EUA, como a da Russian River. No Brasil, as variedades de lúpulo americano mais usadas seguem sendo as cítricas, florais e frutadas (como o Amarillo). Isso não tem a ver com a predominância do lúpulo, e sim com a variedade que é usada na receita. No caso específico do aroma de grama seca, aí sim, ele pode advir de qualquer variedade de lúpulo se for usado em dry-hopping por bastante tempo.

      Quanto à Sorachi Ace, concordo com você. Ela tem um perfil bem herbal, fresco, combinado ao cítrico (mas puxando mais ao limão que à laranja). Acho-a deliciosa!

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  2. Interessante Marcussi! Valeu pelos esclarecimentos! Imaginei que seria algo assim!

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