A ideia de guardar garrafas de cerveja – cheias, para bebê-las mais tarde, entenda-se
– pode ainda soar estranha a muita gente. Acostumamo-nos a associar a cerveja a
uma aura de descontração, festa, imediatez e juventude, a um espírito de carpe diem para o qual vale mais a
alegria do agora do que a paciência do amanhã. A ideia às vezes causa espanto. “Não
é só o vinho que deve ser envelhecido?”
Como é sabido, a maior parte das cervejas comercializadas
por aí (em especial as pilsen levíssimas a que estamos acostumados desde que
começamos a beber) devem ser consumidas o mais rapidamente possível depois que
saem da fábrica. O tempo ocasiona uma série de reações químicas, em especial as
de oxidação, que podem levar a resultados bastante desagradáveis. O lema
estampado na embalagem da Budweiser americana – Fresh beer knows better, algo como “cerveja fresca sabe a verdade”
– aplica-se bem à vasta maioria das cervejas do mercado.
Alguém
falou em
envelhecer
bem?
Fonte:
blogdocapucho.blogspot.com
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Mas, assim como
existem alguns seres humanos com a invejável capacidade de acumularem mais
charme com o tempo, em vez de perdê-lo, sabemos que algumas cervejas também
podem envelhecer com muita nobreza, eventualmente tornando-se mais
interessantes do que quando frescas. São as chamadas “cervejas de guarda”. O
costume de guardar cervejas não é novo: já no século XVIII, era um hábito
inglês produzir uma cerveja extraforte para celebrar o nascimento de um filho e
deixá-la engarrafada para ser consumida apenas quando ele atingisse a
maioridade.
Uma das experiências mais interessantes que as cervejas têm
a nos oferecer é a de sua própria evolução. Assim como os homens, as cervejas
se deparam com a inevitabilidade da passagem do tempo. É impossível vencer o
tempo, mas a batalha por convertê-lo de inimigo em oportunidade de um
crescimento proveitoso é uma espécie de teste a que todos temos de passar para
darmos sentido a nossas vidas. Creio que é isso que faz das cervejas
envelhecidas uma experiência tão instigante: elas oferecem um vislumbre da
nossa própria maneira de lidar com o tempo, e nos mostram que existem meios
sutis, astuciosos e belíssimos de dar sentido à sua passagem implacável e
irreversível.
Participar ativamente desse processo, montando sua própria
adega para envelhecer algumas garrafas para consumo próprio, é uma experiência
que recomendo a todo fã de cervejas. Cervejas envelhecidas têm um apelo
intrínseco: frutos de um processo particular e paciente de evolução, elas são
absolutamente únicas. Você pode beber a cerveja mais cara e mais rara que o
dinheiro pode comprar: ainda assim, você sabe que ela só foi sua naquele
momento fugaz do consumo. Qualquer um pode ter exatamente a mesma experiência
se estiver disposto a gastar o mesmo que você. Uma cerveja que você mesmo
envelheceu, por sua vez, é o mais exclusivo dos produtos: ela te acompanhou
silenciosamente durante anos, presenciou seus dilemas e seus conflitos
cotidianos, resistiu aos seus impulsos de consumi-la precocemente, esteve com
você nos altos e baixos, paciente, esperando a hora de juntar-se à sua alegria
em um momento aguardado de celebração que talvez tenha requerido anos de
esforço pessoal e luta. Algumas garrafas são guardadas já com data certa para
serem abertas, como no caso das cervejas inglesas com as quais se comemorava a
maioridade dos filhos. Imagine se seu pai tivesse guardado uma cerveja muito especial, desde antes de você
nascer, só para dividir com você no seu 18º aniversário. É como se aquela
garrafa confidente carregasse dentro dela um pedacinho da sua vida. Não há nada
mais exclusivo e pessoal do que isso.
E tem outro fator: não há duas garrafas exatamente iguais de
uma cerveja envelhecida. Pequenas diferenças na safra, na fermentação
secundária (dentro da garrafa) ou no transporte podem ampliar-se ao longo dos
anos. Diferentes condições de acondicionamento também acarretarão alterações
sensíveis ao final de anos de guarda. Um grau de diferença na temperatura em
que uma garrafa é armazenada ao longo de 5 anos, ou a posição em que ela fica,
podem determinar diferenças cruciais. Abrir uma cerveja de guarda é um desafio
à sorte: você nunca sabe exatamente o que encontrará. Se esse princípio já vale
para boa parte das cervejas refermentadas na garrafa, aplica-se com ainda mais
intensidade para cervejas de guarda. Por tudo isso, cervejas de guarda oferecem
experiências únicas, exclusivas e fascinantes de degustação.
O
Kulminator, na Antuérpia
(Bélgica),
oferece garrafas que estão sendo envelhecidas
desde os anos 1970!
Fonte:
yozo.be |
Alguns bares oferecem garrafas envelhecidas
para seus clientes – evidentemente, com um certo custo embutido. Às vezes, a
especulação chega a um ponto que uma garrafa especialmente cobiçada,
envelhecida durante um longo tempo, pode chegar a custar quase 10 vezes o seu
valor inicial. Dividir esse preço com amigos é uma das formas mais fáceis de
ter acesso a essa experiência. Alguns bares, inclusive, oferecem as famigeradas
“degustações verticais” de certos rótulos: ou seja, uma degustação sequencial
de várias safras da mesma cerveja, em diferentes pontos de seu envelhecimento.
Uma oportunidade e tanto para aprendizado. No Brasil, o tradicional FrangÓ
costumava oferecer em sua generosa carta de cervejas degustações verticais da
Chimay Bleue e da Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw. Na Bélgica, chega a
haver bares especializados em cervejas safradas.
O mercado brasileiro ainda tem muito a amadurecer até chegar
a esse ponto, inclusive do ponto de vista legislativo. Uma cerveja de guarda
também tem data de validade, mas é sabido que ela pode continuar evoluindo de
forma positiva muito tempo depois de terminada sua validade nominal. Contudo,
da perspectiva da lei, não interessa o quanto a cerveja esteja boa: um
estabelecimento comercial não tem permissão para vendê-la após a data de
validade nominal estampada pelo fabricante ou pelo importador no rótulo. Assim
sendo, a possibilidade legal de degustações verticais em bares, no Brasil,
segue limitada talvez a cinco anos, no máximo, no caso de cervejas com validade
especialmente longa.
Eu, particularmente, acho que comprar uma garrafa
envelhecida por outrem é mais ou menos como beijar a própria irmã. Alguma coisa
está faltando. Para mim, a paciência de esperar anos para abrir uma garrafa, o
trabalho de seleção dos rótulos, o cuidado com sua adega, tudo isso vai
adicionando um significado especial e um valor afetivo às cervejas que você
mesmo guarda. Ou que alguém querido se dispôs a guardar para você – acredito
que um dos presentes mais legais que um fã de cervejas pode ganhar é uma
garrafa que tenha sido envelhecida pela pessoa que o presenteia. É preciso ser
muito amigo para se desfazer de uma garrafa que está com você há anos, e isso
torna o presente ainda mais especial.
Quando falamos em cervejas no Brasil para além do mainstream das lagers claras
tradicionais, tudo ainda é muito novo. Mas eu ainda sonho com uma época em que
os cervejeiros não disputem a tapa para saber quem bebeu a cerveja mais cara,
mas sim compartilhem com seus amigos querido o prazer de beber garrafas que
eles mesmos envelheceram. Se o hábito de envelhecer cervejas em casa fosse mais
frequente entre os apreciadores, seria grande a chance de reunir alguns amigos
e montar uma bela degustação vertical de algum rótulo, da qual todos sairiam
engrandecidos.
Obter essas experiências requer um pouco de paciência e
organização, mas não é difícil e nem precisa ser especialmente caro. Nas próximas partes desta matéria, tentaremos entender melhor o que acontece com a cerveja durante o envelhecimento, e veremos algumas dicas práticas a respeito de como montar sua adega de guarda e aproveitar melhor suas experiências com cervejas envelhecidas.
Aguardo ansioso pelas dicas de como envelhecer cervejas! Estou com uma Ithaca aqui com 2 anos de guarda já, vamos ver até quando vou aguentar para comparar com a que bebi no meu aniversário a 2 anos atrás. Estou de olho numa Van de Keizer 2009 que encontrei com um amigo, a um preço ótimo, para degustarmos também. Abraços!
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