Antes de discutirmos aspectos específicos da montagem e
cuidados com uma adega de guarda, vale a pena tentarmos responder a uma
pergunta básica que deve orientar nossa escolha de rótulos e nossas degustações
de cervejas de guarda: objetivamente, o que acontece com uma cerveja durante o
processo de envelhecimento?
A oxidação como vilã
Se
a oxidação faz isso com um navio,
imagine o que pode fazer com a sua cerveja!
Fonte:
wallpapers.net |
Desde o instante em que uma cerveja é envasada,
ela começa a sofrer uma série de transformações químicas dentro da garrafa ou
lata. Nem todas essas transformações são positivas – aliás, como vimos, a maior
parte delas prejudica nossas queridas cervejas. O frescor do aroma se perde,
alguns compostos especialmente instáveis se convertem em outras substâncias, e
de forma geral a cerveja passa por um processo de oxidação – ou seja, de
transformação de suas substâncias em contato com o oxigênio que existe no
pequeno espaço de ar acima do líquido. “Mas aquele pedacinho de ar no gargalo é
tão pequenininho!” É, mas o estrago que ele causa pode ser considerável – assim
como é considerável o potencial de amadurecimento que ele traz a uma cerveja de
guarda.
Portanto, o grande protagonista do processo de
envelhecimento é a tal oxidação. Normalmente, ela se manifesta sensorialmente
de forma negativa. Uma das substâncias químicas produzidas em maior escala
pelas reações de oxidação em cervejas é conhecida pelo nome químico de trans-2-nonenal. Esse composto químico
extremamente comum, quando presente acima de certa concentração, dá à cerveja
um gosto característico e desagradável de papel ou papelão molhado, além de
gerar uma incômoda sensação de raspar na garganta. Esses elementos são
reconhecidos como o indício mais seguro de oxidação em uma cerveja, e
normalmente empobrecem seu desempenho sensorial – motivo pelo qual os
fabricantes e revendedores de cerveja normalmente tomam todos os cuidados
possíveis para retardar a oxidação.
Outra sensação negativa tradicionalmente associada à oxidação é o famigerado gosto e aroma metálico que encontramos com frequência em várias cervejas. Há muita gente que associa imediatamente essa sensação metálica às cervejas em lata. Desde já, é preciso derrubar esse mito: o revestimento interno de uma latinha é tão inerte quando o vidro, e não transfere gosto nenhum à cerveja. Se não é da lata que vem o gosto metálico, de onde é? Às vezes, trata-se de um indício de contaminação da cerveja por contato com equipamentos metálicos durante o processo de fabricação. Também pode advir de problemas na vedação, ocorrendo oxidação das tampinhas e transferência do gosto para o líquido. Porém, o mais comum é que o "metálico" seja indício de oxidação do líquido - mais especificamente, oxidação de compostos lipídicos oriundos dos grãos usados na receita. Como o milho contém maior concentração de lipídios do que o malte de cevada, o problema se torna mais frequente em cervejas que levam milho na composição, como as frágeis American lagers e algumas ales belgas menos alcoólicas - em especial quando não recebem o cuidado necessário no transporte e armazenamento.
A oxidação como aliada
Contudo, nem sempre a oxidação precisa ser negativa. O trans-2-nonenal é especialmente
desagradável e bruto quando se mistura ao sabor de maltes mais frescos e
delicados, como os de baixo grau de torrefação. Ou seja: em cervejas mais
claras, especialmente nas de sabor mais delicado, essa característica tem mais
chances de comprometer a degustação. Em cervejas com forte presença de sabores
caramelados e tostados, o sabor de oxidação pode acabar sendo mascarado, ou
pode até mesmo se manifestar de formas mais interessantes, lembrando madeira,
palha, couro ou mesmo vinho Madeira, enriquecendo a paleta de sabores do malte.
O que era um vilão transforma-se em aliado, nesses casos.
Vinho
do Porto, agora sim! Ligeiramente mais
promissor do que o navio enferrujado!
Fonte: ifood.tv |
O sabor de papelão não é o único indício de oxidação que pode se tornar charmoso, dadas as condições favoráveis. Também
é frequente que cervejas envelhecidas desenvolvam um aroma licoroso e adocicado
que lembra vivamente vinho do Porto, remetendo ainda a ameixas secas em calda.
Esse é um traço típico das grandes cervejas de guarda, e normalmente leva mais
tempo para se desenvolver do que o trans-2-nonenal,
mas enobrece bastante o aroma. É comum que identifiquemos esse aroma em algumas
Belgian dark strong ales, mesmo com pouco tempo de envelhecimento. Às vezes,
ele se desenvolve ainda dentro da validade nominal da cerveja, de modo que não
é raro identificarmos essa característica em uma garrafa recém-adquirida –
ainda mais se levarmos em conta o quanto uma cerveja belga demora para sair da
Europa e chegar até nossas mãos.
Outra substância tipicamente associada ao processo, mas
muito menos frequente, é conhecida como benzaldeído,
e tem um aroma e sabor entre o terroso e o mineral, lembrando vivamente
amêndoas cruas ou marzipã. Trata-se de uma característica bastante charmosa e
positiva, se não estiver sobrepujando as demais. Em alguns estilos, inclusive,
é um traço típico, como ocorre em muitas cervejas feitas com adição de frutas e
nas lambics envelhecidas. No caso das cervejas com frutas, inclusive, o aroma
amendoado equilibra de forma interessante a doçura das frutas e contribui com a
complexidade geral. Cervejas de guarda também podem desenvolver esse delicado
aroma, especialmente no caso de cervejas de perfil de maltes mais delicado, com
coloração mais clara. Estilos como bières
brut, por exemplo, que usam como base Belgian golden strong ales
envelhecidas durante alguns meses, podem desenvolver essa característica.
Todos esses são traços típicos de oxidação. Quando um
degustador experiente fala que identificou “oxidação”, na maior parte dos
contextos (em especial quando não está falando em cervejas envelhecidas), ele
está se referindo especificamente ao gosto de papelão característico do trans-2-nonenal, ou ao gosto metálico advindo as oxidação lipídica. Mas, nas cervejas de
guarda, o termo “oxidação” também pode fazer referência a essas manifestações
mais interessantes e agradáveis do processo de envelhecimento. Madeira, couro,
vinho do Porto, ameixas em calda, amêndoas, mineral, tudo isso pode estar
incluído no pacote denominado “oxidação”.
Contudo, o envelhecimento de uma cerveja não se limita a
isso: várias outras transformações químicas alteram sensorialmente o produto ao
longo do tempo. Na próxima parte desta matéria, veremos algumas das principais
alterações esperadas em uma cerveja de guarda além desses traços tipicamente
associados à oxidação.
Excelente post Marcussi.
ResponderExcluirDia desses aproveitei uma promoção e comprei várias garrafas de uma IPA inglesa que estavam vencendo.
Logo que abertas percebi oxidação da champinha deixando marcas no bocal da garrafa. Ao servir a cerveja o líquido acaba em contato com essa oxidação e o sabor fica bem prejudicado. Para as demais garrafas decidi limpar o bocal da garrafa com um guardanapo e resolveu.
Conclusão, o líquido ainda estava em bom estado, sem oxidação, porém a champinha não resistiu tanto. Todas serão devidamente tomadas de qualquer jeito.
Um abraço.
Monich