domingo, 3 de junho de 2012

Pegando pó - Parte II: O admirável outono da oxidação


Antes de discutirmos aspectos específicos da montagem e cuidados com uma adega de guarda, vale a pena tentarmos responder a uma pergunta básica que deve orientar nossa escolha de rótulos e nossas degustações de cervejas de guarda: objetivamente, o que acontece com uma cerveja durante o processo de envelhecimento?

A oxidação como vilã

Se a oxidação faz isso com um navio, 
imagine o que pode fazer com a sua cerveja!
Fonte: wallpapers.net

Desde o instante em que uma cerveja é envasada, ela começa a sofrer uma série de transformações químicas dentro da garrafa ou lata. Nem todas essas transformações são positivas – aliás, como vimos, a maior parte delas prejudica nossas queridas cervejas. O frescor do aroma se perde, alguns compostos especialmente instáveis se convertem em outras substâncias, e de forma geral a cerveja passa por um processo de oxidação – ou seja,  de transformação de suas substâncias em contato com o oxigênio que existe no pequeno espaço de ar acima do líquido. “Mas aquele pedacinho de ar no gargalo é tão pequenininho!” É, mas o estrago que ele causa pode ser considerável – assim como é considerável o potencial de amadurecimento que ele traz a uma cerveja de guarda.


Portanto, o grande protagonista do processo de envelhecimento é a tal oxidação. Normalmente, ela se manifesta sensorialmente de forma negativa. Uma das substâncias químicas produzidas em maior escala pelas reações de oxidação em cervejas é conhecida pelo nome químico de trans-2-nonenal. Esse composto químico extremamente comum, quando presente acima de certa concentração, dá à cerveja um gosto característico e desagradável de papel ou papelão molhado, além de gerar uma incômoda sensação de raspar na garganta. Esses elementos são reconhecidos como o indício mais seguro de oxidação em uma cerveja, e normalmente empobrecem seu desempenho sensorial – motivo pelo qual os fabricantes e revendedores de cerveja normalmente tomam todos os cuidados possíveis para retardar a oxidação.


Outra sensação negativa tradicionalmente associada à oxidação é o famigerado gosto e aroma metálico que encontramos com frequência em várias cervejas. Há muita gente que associa imediatamente essa sensação metálica às cervejas em lata. Desde já, é preciso derrubar esse mito: o revestimento interno de uma latinha é tão inerte quando o vidro, e não transfere gosto nenhum à cerveja. Se não é da lata que vem o gosto metálico, de onde é? Às vezes, trata-se de um indício de contaminação da cerveja por contato com equipamentos metálicos durante o processo de fabricação. Também pode advir de problemas na vedação, ocorrendo oxidação das tampinhas e transferência do gosto para o líquido. Porém, o mais comum é que o "metálico" seja indício de oxidação do líquido - mais especificamente, oxidação de compostos lipídicos oriundos dos grãos usados na receita. Como o milho contém maior concentração de lipídios do que o malte de cevada, o problema se torna mais frequente em cervejas que levam milho na composição, como as frágeis American lagers e algumas ales belgas menos alcoólicas - em especial quando não recebem o cuidado necessário no transporte e armazenamento.


A oxidação como aliada

Contudo, nem sempre a oxidação precisa ser negativa. O trans-2-nonenal é especialmente desagradável e bruto quando se mistura ao sabor de maltes mais frescos e delicados, como os de baixo grau de torrefação. Ou seja: em cervejas mais claras, especialmente nas de sabor mais delicado, essa característica tem mais chances de comprometer a degustação. Em cervejas com forte presença de sabores caramelados e tostados, o sabor de oxidação pode acabar sendo mascarado, ou pode até mesmo se manifestar de formas mais interessantes, lembrando madeira, palha, couro ou mesmo vinho Madeira, enriquecendo a paleta de sabores do malte. O que era um vilão transforma-se em aliado, nesses casos.

Vinho do Porto, agora sim! Ligeiramente mais 
promissor do que o navio enferrujado!
Fonte: ifood.tv
O sabor de papelão não é o único indício de oxidação que pode se tornar charmoso, dadas as condições favoráveis. Também é frequente que cervejas envelhecidas desenvolvam um aroma licoroso e adocicado que lembra vivamente vinho do Porto, remetendo ainda a ameixas secas em calda. Esse é um traço típico das grandes cervejas de guarda, e normalmente leva mais tempo para se desenvolver do que o trans-2-nonenal, mas enobrece bastante o aroma. É comum que identifiquemos esse aroma em algumas Belgian dark strong ales, mesmo com pouco tempo de envelhecimento. Às vezes, ele se desenvolve ainda dentro da validade nominal da cerveja, de modo que não é raro identificarmos essa característica em uma garrafa recém-adquirida – ainda mais se levarmos em conta o quanto uma cerveja belga demora para sair da Europa e chegar até nossas mãos.

Outra substância tipicamente associada ao processo, mas muito menos frequente, é conhecida como benzaldeído, e tem um aroma e sabor entre o terroso e o mineral, lembrando vivamente amêndoas cruas ou marzipã. Trata-se de uma característica bastante charmosa e positiva, se não estiver sobrepujando as demais. Em alguns estilos, inclusive, é um traço típico, como ocorre em muitas cervejas feitas com adição de frutas e nas lambics envelhecidas. No caso das cervejas com frutas, inclusive, o aroma amendoado equilibra de forma interessante a doçura das frutas e contribui com a complexidade geral. Cervejas de guarda também podem desenvolver esse delicado aroma, especialmente no caso de cervejas de perfil de maltes mais delicado, com coloração mais clara. Estilos como bières brut, por exemplo, que usam como base Belgian golden strong ales envelhecidas durante alguns meses, podem desenvolver essa característica.

Todos esses são traços típicos de oxidação. Quando um degustador experiente fala que identificou “oxidação”, na maior parte dos contextos (em especial quando não está falando em cervejas envelhecidas), ele está se referindo especificamente ao gosto de papelão característico do trans-2-nonenal, ou ao gosto metálico advindo as oxidação lipídica. Mas, nas cervejas de guarda, o termo “oxidação” também pode fazer referência a essas manifestações mais interessantes e agradáveis do processo de envelhecimento. Madeira, couro, vinho do Porto, ameixas em calda, amêndoas, mineral, tudo isso pode estar incluído no pacote denominado “oxidação”.

Contudo, o envelhecimento de uma cerveja não se limita a isso: várias outras transformações químicas alteram sensorialmente o produto ao longo do tempo. Na próxima parte desta matéria, veremos algumas das principais alterações esperadas em uma cerveja de guarda além desses traços tipicamente associados à oxidação.

Um comentário:

  1. Excelente post Marcussi.
    Dia desses aproveitei uma promoção e comprei várias garrafas de uma IPA inglesa que estavam vencendo.
    Logo que abertas percebi oxidação da champinha deixando marcas no bocal da garrafa. Ao servir a cerveja o líquido acaba em contato com essa oxidação e o sabor fica bem prejudicado. Para as demais garrafas decidi limpar o bocal da garrafa com um guardanapo e resolveu.
    Conclusão, o líquido ainda estava em bom estado, sem oxidação, porém a champinha não resistiu tanto. Todas serão devidamente tomadas de qualquer jeito.
    Um abraço.
    Monich

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