quarta-feira, 13 de junho de 2012

Pegando pó - Parte III: Outros efeitos do envelhecimento


Na parte anterior desta matéria, vimos como a oxidação afeta as cervejas durante o processo de envelhecimento, adicionando alguns elementos negativos e outros que podem ser muito positivos e interessantes, dadas as condições favoráveis. Mas não para por aí. Todas as características da cerveja são afetadas pelo envelhecimento. Algumas coisas se adicionam – como os aromas de oxidação –, mas outras se perdem. Vejamos alguns desses outros efeitos.

O lúpulo e o envelhecimento

Há coisas que o tempo nos tira com muita rapidez!
Fonte: uol.com.br
O tempo é inimigo do lúpulo. Via de regra, os primeiros elementos a desaparecer de uma cerveja são alguns aromas de lúpulo. Uma cerveja altamente dependente do aroma de lúpulo, como uma IPA, perde muito do seu charme depois de algum tempo de engarrafamento, mesmo que ainda esteja dentro do prazo de validade. Todo fã de IPAs pode ver a diferença entre uma garrafa que acabou de sair da fábrica e foi bem acondicionada e uma outra que foi comprada em promoção no supermercado, numa prateleira quente e exposta à luz, quando a validade já estava quase acabando. E não é só no aroma que se sente a diferença: o amargor de lúpulo, embora mais perene, também se dissipa com o tempo, tornando-se mais gentil e suave. Cervejas envelhecidas normalmente tendem mais à doçura do que ao amargor (embora sejam mais secas, como veremos).

Claro que isso pode ser ruim em alguns estilos, como nas mencionadas IPAs. Aliás, algumas pessoas guardam garrafas de IPAs imperiais acreditando que, por conta do seu alto teor alcoólico e do alto amargor, elas envelheceriam bem. Contudo, o que acontece é que elas acabam perdendo todo o seu charme, que estava nos lúpulos – justamente os primeiros a dar adeus no jogo do envelhecimento. Mas esse efeito também pode jogar a favor de algumas cervejas e estilos, aprofundando o perfil rico e adocicado dos maltes. Essa, aliás, é outra característica do envelhecimento: depois de algum tempo, o sabor do malte tende a se tornar mais rico e macio. Menos fresco, mas mais arredondado e assertivo.

Fermento e autólise

Outra transformação importante ocorre com o fermento. No caso de cervejas refermentadas na garrafa, o fermento (composto por células de leveduras) sai da cervejaria em estado latente, de dormência. Mas ele continua vivo e ativo, e vai lentamente transformando a cerveja. Do que vive uma levedura? De açúcares, correto? Isso significa que essas leveduras vivas continuam consumindo açúcares residuais da cerveja, mas em ritmo muito mais lento, até esgotarem as fontes de alimento disponíveis.

A única diferença é que as leveduras
não precisam sair da cama.
Fonte: inspiredfitstrong.com
Ora, sabemos que os açúcares residuais são em grande medida responsáveis pelo corpo da cerveja. Como consequência, uma das coisas que pode acontecer a uma cerveja de guarda é ela “afinar” ligeiramente, ou seja, perder corpo e tornar-se um pouco mais seca à medida que seus açúcares são consumidos. Às vezes, essa perda de corpo não é sentida como “afinamento” devido à licorosidade que o envelhecimento traz. Além da perda de corpo, o que mais ocorre quando uma levedura consome açúcares? Ela os converte em álcool, não é? Isso também significa que, em teoria, o teor alcoólico de uma cerveja de guarda aumenta com o tempo. A rigor, isso é verdade, mas esse aumento é muito sutil na maioria dos casos – não espere que uma cerveja que originalmente tenha 8% acabe com 10% depois de alguns meses!

E quando os açúcares se acabam? O fermento começa então a se autoconsumir, num processo biológico conhecido como autólise. A autólise pode ser extremamente problemática, dependendo da maneira como ocorre. O traço mais característico de autólise precoce é uma substância conhecida como ácido caprílico, que, se estiver presente em concentração elevada, exibe um desagradável aroma de sabão em barra, lembrando ainda queijo de cabra ou “copo mal lavado”. Para piorar, o caprílico – este vilão – ainda acentua desagradavelmente o amargor e raspa na garganta. Em pequenas quantidades, porém, o caprílico pode adicionar um toque levemente mineral (lembra areia) ou ainda ressaltar o aroma floral do lúpulo. Com muita moderação.

Porém, se a autólise ocorre de forma controlada e gradual, outras substâncias mais agradáveis são liberadas. Estudos feitos com vinhos espumantes – caracterizados pelo processo de autólise das leveduras na garrafa, similarmente ao que ocorre com cervejas de guarda – mostram que, durante a fase da autólise, as leveduras liberam ésteres com aromas frutados e álcoois superiores com aromas florais. São aromas já presentes na cerveja, que se intensificam num primeiro momento da autólise – sobretudo os álcoois superiores, quimicamente mais estáveis que os ésteres. Mais tarde, a autólise libera manoproteínas e aminoácidos (“fragmentos” de proteínas) que enriquecem a textura do líquido e que podem, com o avanço do tempo, desenvolver um gosto “carnudo” conhecido como umami, presente no glutamato monossódico (o tradicional “Ajinomoto”), em carnes vermelhas, no queijo parmesão e em molho shoyu. Cervejas muito antigas podem até ter uma lembrança do aroma de molho shoyu, que é agradável se não for forte demais.

A partir de que momento essas coisas começam a ocorrer? Estudos feitos com vinhos mostram que a autólise começa por volta do 9º mês após o engarrafamento. Mas os efeitos só começam a se intensificar muito tempo depois, às vezes depois de um ano. No caso de cervejas, que normalmente não possuem pH tão baixo e nem teor alcoólico tão alto quanto espumantes, a autólise pode começar mais cedo. De qualquer forma, a partir de um ano de guarda, esses traços já devem começar a se evidenciar.

Outros efeitos secundários

As reações químicas de envelhecimento ainda têm outras nuances mais específicas. Ésteres, fenóis, álcoois superiores, tudo isso continua se transformando com o tempo, de formas às vezes imprevisíveis. De modo geral, os ésteres (substâncias com aroma frutado lembrando essência de frutas) se convertem em álcoois superiores, mais estáveis quimicamente. Por isso, o forte aroma frutado de fermentação, especialmente intenso quando as ales estão jovens, pode ir se atenuando aos poucos.

Isso inclusive explica por que algumas cervejas nacionais, especialmente as de tradição belga, parecem tão mais frutadas do que outras estrangeiras do mesmo estilo: em muitos casos, é o frescor das nacionais que explica essa diferença. Com a longa viagem e espera nos portos, muitas estrangeiras acabam tendo essa característica um pouco atenuada. E o que os tais álcoois superiores, que substituem os ésteres, fazem com a cerveja? Existem vários tipos de álcoois superiores, alguns de aroma “quente” e agressivo, mas outros lembrando rosas, perfume, mel e até mentol.

Hm... Preciso parar de comer tanto bacon.
Já estou começando a alucinar.
Fonte: billybrew.com
Fenóis também se convertem em outras substâncias, às vezes gerando resultados inusitados. Por exemplo, o 4-vinil-guaiacol, responsável pelo típico aroma de cravo das cervejas de trigo alemãs e de muitas ales belgas, tende a se converter em guaiacol, outro fenol, mas com aroma defumado. Esse toque de defumação não advém de maltes defumados, como ocorre com as Rauchbiere, mas de transformações químicas dos compostos fenólicos.

Em suma, existe um imenso mundo de transformações sensoriais a que as cervejas estão sujeitas ao longo do processo de envelhecimento. É preciso conhecer bem essas mudanças para podermos entender por que certos rótulos funcionam bem para guarda, e outros, nem tanto. Claro que a interação entre todas essas transformações vai depender intimamente das condições de acondicionamento. Por isso é que eu disse que duas cervejas envelhecidas podem ter sido idênticas ao sair da fábrica, mas raramente continuarão idênticas depois de 2 ou 3 anos se não forem acondicionadas de forma idêntica. Toda a magia de degustar cervejas de guarda, aliás, reside nessa surpresa.

Nas próximas partes desta matéria, veremos algumas dicas práticas sobre como escolher suas cervejas de guarda, como estocá-las adequadamente e – claro! – como degustá-las. Não perca!

10 comentários:

  1. Grande Alexandre,

    Excelentes exposições. Se possível, tenho duas perguntas. Espero não soar impertinente:

    1) A partir de que momento, ou em quais circunstâncias, a autólise passa a ser patológica na cerveja? Qual a relação entre a presença do caprílico e a dos ésteres?

    2) É claro e notável que os lúpulos (e os fatores a que implicam) são prejudicados pelo passar do tempo. Mas por que isso ocorre?

    Agradeço desde já caso possa gentilmente responder minhas inquietas dúvidas.

    Abraços.

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    1. Guilherme, vamos ver se consigo esclarecer um pouco suas questões com o parco conhecimento que tenho:

      1. A autólise pode ser extremamente problemática desde a fermentação primária. Na verdade, em 90% dos casos, a autólise deve ser evitada. Ela só passa a ser positiva se ocorre de forma lenta e gradual, o que só acontece em cervejas com alto teor alcoólico que sejam bem acondicionadas. Se ela ocorre precocemente, por uma variação violenta no metabolismo das leveduras, por falta de alimento, por sobrecarga etc., o mais provável é que vá encher a sua cerveja de caprílico.

      A rigor, não há relação imediata entre caprílico e ésteres. Ambos são subprodutos do metabolismo das leveduras, mas ocorrem em momentos e em taxas diferentes ao longo do processo de fermentação e maturação.

      2. A maioria das substâncias derivadas do lúpulo é pouco estável quimicamente, e por isso muitas delas tendem a se dissipar e se transformar em outras substâncias. Mesmo os ácidos iso-alfa, responsáveis pelo amargor, podem perdurar mais do que os compostos aromáticos, mas com o tempo vão se transformando quimicamente. Para te explicar como e por que isso ocorre, só um químico mesmo.

      Abraços!
      Alexandre A. Marcussi

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    2. Valeu demais, Alexandre. Explicou mais do que o suficiente com excelência. Obrigado pelos esclarecimentos.
      Estou testando o envelhecimento em Barley Wines, Old Ales e Sour Ales. Mais um ano cada, no mínimo... Seguirei assiduamente a série de posts.
      Abraços.

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  2. Alexandre, parabéns pelos ótimos posts e explicações detalhadas.

    Será que você poderia me ajudar com uma dúvida?

    Entendo que com o passar do tempo em cervejas bottle-conditioned há um leve aumento da quantidade de álcool, mas com a oxidação os álcoois podem se transformar em outros compostos químicos (aldeídos, cetonas). Em teoria não poderia haver uma leve queda no teor alcóolico devido à essas transformações?

    Obrigado pela atenção.
    Abraços

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    1. Rafael, sua colocação é muito interessante e coincidiu com uma notícia que recebi hoje: a Brewdog está lançando uma edição especial da sua aclamada Tokyo*. Segundo a cervejaria, três barris (que anteriormente armazenavam scotch whiskeys das Terras Altas e Baixas da Escócia) provenientes da primeira brassagem desse rótulo, realizada em maio de 2008, foram esquecidos até nosso ano. Eis que, após tanta guarda, a cerveja caiu de 18,2% ABV para 13,2%.

      Sei que não é exatamente o assunto que estamos tratando, sendo que o envelhecimento não foi feito em garrafas, mas associei o ocorrido com seu comentário, Rafael.

      Abraços.

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    2. Rafael e Guilherme,

      Não sou químico para responder corretamente a essa pergunta, mas vou dizer o que sei. O teor alcoólico de uma cerveja (ou de qualquer bebida alcoólica) é medido pela quantidade de etanol (álcool etílico) no líquido. Ocorre que o etanol é apenas um dos álcoois presentes em uma bebida alcoólica. Existem outros, como os chamados "álcoois superiores", de cadeia molecular mais longa e pesada. Os álcoois superiores podem até se converter em outros compostos químicos (embora eles sejam mais estáveis do que, por exemplo, os ésteres), mas isso não afeta o teor alcoólico do líquido, que reflete apenas o etanol. Agora, o etanol pode se converter em outras substâncias? Nunca li nada que indicasse isso.

      Interessante essa questão da Brewdog. Será que essa cerveja vai ser comercializada? Uma redução tão violenta no teor alcoólico deve ter sido oriunda da volatização do etanol no barris de madeira, mesmo. Não ocorre o mesmo em garrafas.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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    3. Alexandre,

      Obrigado novamente pelas explicações. Compreendi o decréscimo no teor alcoólico nesse caso.
      Ela está sendo comercializada sob o nome de Tokyo* Rising Sun. Obviamente não vai chegar no Brasil, por ser um estoque limitadíssimo, e mesmo pela loja virtual só é permitido uma garrafa por pedido. A bagatela é singela: £24,99. As edições maturadas nos barris das Terras Baixas já acabaram. O estoque deve durar breves dias – sendo otimista. Segue o link:
      http://www.brewdog.com/product/132-tokyo-rising-sun

      Abraços.

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    4. Aos aventureiros, fica a dica da Tokyo Rising Sun. Eu nem sequer provei a versão regular dessa cerveja (e nem está nos meus planos mais próximos, para ser sincero)!

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    5. Só mais uma coisa que me ocorreu depois de ver o link que você passou, Guilherme: será que a redução do teor alcoólico não pode simplesmente ser o resultado de um blend entre a cerveja envelhecida e uma stout jovem, menos alcoólica? É muito frequente blendar cervejas que passaram tanto tempo em madeira, para atenuar as características mais agressivas da madeira, como os taninos ou o acético. Temos exemplos em várias gueuzes e sour ales, em old ales e até mesmo na clássica Guinness, que ainda usa uma pequena porcentagem de cerveja envelhecida para compor o blend.

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    6. Guilherme, muito interessante mesmo essa Tokyo Rising Sun, sou muito fã de cervejas envelhecidas em barril...e aí vemos a diferença de valor cobrado por eles e oq poderia ocorrer no Brasil em uma situação dessas...mas isso é outro longo e infinito assunto.

      Alexandre, obrigado pela resposta. Eu também encontrei apenas a informação de que "Álcoois" podem sofrer oxidação e se converterem em outros compostos...infelizmente não especifica se são só álcoois superiores ou se etanol também está sujeito à essas transformações. Pelo que sei os álcoois, inclusive etanol, são oxidados em acetaldeído dentro do nosso corpo, mas isso não esclarece muito a questão.

      Abraços

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