Na primeira parte desta matéria, comentei que degustar uma
cerveja envelhecida é uma das experiências cervejeiras mais interessantes e
exclusivas que se pode ter. Ainda mais quando foi você mesmo quem envelheceu a bendita garrafa. Não é especialmente
complicado conseguir isso; basta tomar alguns cuidados básicos. Nesta e nas
próximas partes desta matéria, tentarei fornecer algumas orientações e ideias para
quem quer começar a montar sua adega de cervejas pessoal. Já aviso: essas dicas
não devem ser encaradas como “absolutas” ou “obrigatórias” – elas só refletem a
minha perspectiva sobre o assunto. Afinal de contas, uma das coisas mais
interessantes de montar sua própria adega é que você dita as regras.
Comecemos pela primeira parte do processo: a seleção e
aquisição dos rótulos. Eis aí talvez a etapa mais frustrante e angustiante do
processo – afinal de contas, a coisa resume-se a gastar seu dinheirinho suado
para comprar cervejas de alta qualidade que você não irá beber – não por ora, pelo menos. Mas não faz mal: uma boa
cerveja de guarda sabe recompensar maravilhosamente aqueles que praticam a
virtude da paciência.
1.
Escolha
a cerveja certa
Já dissemos isso, mas nunca é
demais repetir: nem toda cerveja envelhece bem. Não é só porque você gosta
especialmente de uma certa cerveja que ela irá se beneficiar do envelhecimento.
Por isso, o primeiro passo na montagem de uma adega de guarda é fazer uma boa
seleção dos rótulos que serão envelhecidos.
A
presença de borra quase sempre
indica refermentação na garrafa.
Fonte:
homebrewtalk.com |
Procure sempre começar com cervejas com teor alcoólico acima
dos 7-8%. Cervejas precisam de uma certa robustez para suportarem a oxidação a
que estarão sujeitas; por isso, não podem ser muito leves. Mas o álcool não
deve ser o único critério. Refermentação na garrafa também ajuda: se a cerveja
é engarrafada com o fermento ainda vivo, ele irá ajudar a proteger a cerveja e
criar o ambiente químico-físico ideal para o envelhecimento. É fácil checar
quando uma cerveja é refermentada na garrafa, pois ela possui uma
“borra”, ou seja, aquele “pó” depositado no fundo da garrafa – trata-se
justamente do fermento. Com o tempo, o fermento inclusive irá sofrer um
processo de autólise (autoconsumo) que, se bem direcionado, pode tornar a
textura do líquido mais interessante e adicionar sensações ricas e “carnudas”.
Essas são
características que podem ser verificadas só de olhar uma garrafa na
prateleira, mesmo antes de abrirmos a cerveja. Mas existem outros fatores mais
sutis, e é preciso conhecer a cerveja para reconhecê-los. Privilegie cervejas
sensorialmente mais complexas, pois os resultados da oxidação tenderão a ser
mais matizados e diversificados, integrando-se melhor ao conjunto. Ésteres,
fenóis e álcoois superiores, abundantes em cervejas mais complexas, também
entrarão no jogo das transformações químicas de oxidação e ajudarão a gerar um
resultado mais interessante no final. Cervejas escuras tendem a gerar
resultados mais seguros do que cervejas claras, pois as substâncias oriundas da
oxidação integram-se ao sabor caramelado ou de torrefação dos maltes escuros,
gerando agradáveis notas amadeiradas ou de couro. Um bom corpo também ajuda no
processo, pois a cerveja tende a afinar um pouco depois de alguns anos de
guarda.
O lúpulo é outro quesito importante. É interessante procurar
por cervejas com boa estrutura de amargor, uma vez que os ácidos-alfa,
substâncias oriundas do lúpulo responsáveis pelo amargor das cervejas, também
atuam como conservantes naturais. É verdade que a sensação de amargor vai
gradualmente diminuir com o tempo, mas o efeito conservante ajudará a manter a
cerveja saudável. Contudo, é preciso considerar que o frescor aromático do
lúpulo é uma das primeiras características sensoriais a desaparecer com a
guarda. Portanto, não é sábio escolher cervejas que dependam justamente do
amargor e do aroma do lúpulo, como as IPAs, por maior que seja seu teor
alcoólico.
Por fim, existe uma exceção interessante: Brettanomyces – nome científico do
gênero a que pertence a maior parte das leveduras selvagens usadas na
fabricação de algumas cervejas. Brettanomyces
são organismos dominantes e muito resistentes, o que significa que sua presença
na cerveja impede por muito tempo o desenvolvimento excessivo de outros
organismos nocivos. Além disso, são leveduras que sobrevivem por longo tempo e
continuam adicionando mais acidez e mais aromas ao longo dos anos. Cervejas com
Brettanomyces, como as sour ales ou
as lambics belgas, costumam ser boas candidatas à guarda, mesmo tendo teor
alcoólico inferior a 7%.
Alguns estilos são curingas: barleywines, old ales com alto
teor alcoólico, Russian imperial stouts, Belgian dark strong ales e gueuzes são
classicamente indicadas para guarda. Mas convém lembrar que nem todas as
cervejas pertencentes a esses estilos serão boas candidatas ao envelhecimento:
algumas têm chances melhores do que outras de se saírem bem. Por exemplo, por
mais que as Russian imperial stouts tenham álcool, amargor, corpo e coloração
adequadas à guarda, se estivermos falando de um rótulo especialmente centrado
no frescor do aroma de lúpulo (penso na Bodebrown Perigosa Imperial Milk Stout,
por exemplo), é preciso saber que essa característica positiva irá se perder
com a guarda; portanto, outra cerveja do estilo pode oferecer uma alternativa
mais interessante.
2.
Compre
em quantidade
Um dos baratos de degustar cervejas de guarda “a sério” é
observar a evolução de uma mesma cerveja ao longo do tempo. Obviamente, não
estou falando de abrir a garrafa, tomar um pouquinho e guardar de novo para beber
o resto depois. Refiro-me à possibilidade de beber a mesma cerveja em
diferentes estágios de seu envelhecimento, observando suas transformações
progressivas. É espantoso o quanto uma cerveja de guarda pode se transformar de
um ano para o outro, mesmo no caso daquelas cervejas que têm estrutura para
suportarem mais de uma década de adega.
Claro que isso é impossível caso você tenha adquirido apenas
uma garrafa de certa cerveja – a não ser que você organize coletivamente uma
degustação vertical com outros amigos que, por coincidência, tenham garrafas da
mesma cerveja, mas de outras safras. O melhor é que você mesmo tenha um certo
número de garrafas do mesmo rótulo, para poder abri-las em diferentes momentos
de seu desenvolvimento.
OK, estou falando em 4-6 garrafas,
mas cada um faz como quer...
Fonte:
thecampuscompanion.com |
Portanto, pode ser interessante comprar
algumas garrafas de um mesmo rótulo para adegá-las. Quando invisto em uma
cerveja nova para minha adega, uma que eu nunca tenha guardado antes mas que
tenha bom potencial para guarda, normalmente procuro comprar algo como 4 ou 6
garrafas – ou um número menor caso o resultado seja menos seguro. A verdade é
que nem sempre tenho dinheiro para tanto, mas prefiro comprar uma variedade
menor de rótulos para que eu possa ter uma quantidade razoável de garrafas
guardadas. Isso me permitirá observar a evolução de minhas cervejas, digamos,
ao longo de 10 anos ou até mais. Guardar cervejas pode facilmente se converter
em um projeto de longo prazo.
Até por isso, pode ser uma boa ideia começar com uma seleção
de rótulos de preço mais acessível. Algumas pessoas acreditam que apenas certas
cervejas “muito especiais” merecem ser envelhecidas, normalmente rótulos caros
e prestigiados. Seu alto preço impede, contudo, que essas cervejas sejam
adquiridas em quantidade suficiente para acompanhar sua evolução. O resultado é
que o aficionado acaba com apenas uma garrafa em sua adega, e precisará
determinar um período arbitrário de tempo antes de abri-la.
Não nego que possa ser interessante beber certas cervejas
muito especiais envelhecidas. Eu mesmo tenho cervejas caras, do calibre da
Eisenbahn Lust Prestige ou da Harviestoun Ola Dubh 40, pegando pó em minha
adega. Apenas uma garrafa de cada, pois estou bem longe de ser milionário. OK,
também é legal. Mas uma parte da graça de envelhecer cervejas é poder acompanhar
o processo de sua evolução – e comprar em quantidade é a forma mais segura de
conseguir isso.
3.
Arrisque-se
Como eu disse, existem estilos e
até mesmo rótulos que são verdadeiros clássicos de guarda. Barleywines, por
exemplo, são tradicionalmente indicadas para guarda. Alguns produtores
inclusive aconselham que suas cervejas sejam guardadas por algum tempo antes de
serem abertas, como ocorre com certos vinhos. Por exemplo, a cervejaria
australiana Coopers, no rótulo de sua Extra Strong Vintage Ale, não estampa uma
data antes da qual é melhor consumir a cerveja (o famoso “best before”, que
equivale à nossa data de validade), mas sim uma data depois da qual a cerveja fica mais interessante (“best after”).
Outros produtores, mais sutis, estampam o ano da safra na embalagem, sugerindo
a possibilidade de guardá-la para beber alguns anos depois.
Chimay Bleue, Gouden Carolus Cuvée
van de Keizer Blauw, 3 Floyds Dark Lord, Fuller’s Vintage Ale, a finada Thomas
Hardy’s Ale, todas essas são clássicos de guarda. Claro que facilita o fato de
o rótulo dessas cervejas estampar o ano de produção, permitindo o controle do
tempo de guarda. Mas, quando estamos montando nossa própria adega, é
interessante experimentar e sair dessas “fronteiras seguras”. Arrisque-se e
verifique o que pode acontecer com outros rótulos e mesmo com outros estilos.
Há inúmeras cervejas tão adequadas para guarda quanto as que elenquei acima, e
outras tantas que podem até não terem estrutura para suportarem tanto tempo,
mas que irão amadurecer admiravelmente durante 3 ou 4 anos.
É interessante inclusive verificar
o que acontece com cervejas de estilos normalmente pouco indicados para guarda.
Por exemplo, eu tenho algumas garrafas da Eisenbahn Weizenbock em minha adega.
É um rótulo indicado para guarda? Na verdade, não, pois ele não tem estrutura
de amargor o bastante para suportar longos períodos de guarda. Mas isso não me
impede de experimentar e ver como ela se desenvolve, digamos, ao longo de 2 ou
3 anos. Claro que não espero que ela ainda se saia bem depois de 10 anos na
garrafa, mas posso me deliciar com as primeiras etapas do processo.
Para ser sincero, se você for
louco e aficionado o bastante, pode até adegar cervejas francamente inadequadas para guarda só para ter a
experiência “didática” de ver, em graus absurdamente intensos, como a oxidação
pode afetar negativamente uma cerveja. Eu, por exemplo, tenho uma Pilsner
Urquell que já venceu há mais de dois anos. Precisarei de forças para
encará-la.
Às
vezes a gente espera uma coelhinha e tudo
o que consegue é o Hugh Hefner.
Acontece.
Fonte:
holytaco.com |
Claro que existe o
risco de o resultado não ser tão satisfatório. Mas, no fim das contas, sempre
existe esse risco quando se guarda uma cerveja. Não encare isso de forma
negativa: esse risco é exatamente o charme de envelhecer cervejas! Com o tempo,
e depois de algumas tentativas frustradas, você vai conseguir identificar até
que momento você considera positiva a evolução de cada cerveja, e não vai mais
precisar deixar nenhuma garrafa “passar do ponto”.
4.
Prestigie
rótulos nacionais
A última dica desta matéria é quase um apelo: prestigie as
cervejas brasileiras. Por vários motivos. Em primeiro lugar, porque cervejas de
guarda clássicas, como a Gouden Carolus Cuvée van de Keizer Blauw, são consumidas
ao redor do mundo todo; todo mundo conhece, todo bar que oferece degustações
verticais tem. Uma cerveja brasileira envelhecida oferece uma oportunidade de
degustação muito mais exclusiva. Em segundo lugar, porque as cervejas
brasileiras nos oferecem a possibilidade de adquirir o produto em seu máximo
estado de frescor, sem deixar que condições adversas de acondicionamento e
transporte prolongados interfiram no envelhecimento da garrafa. Por último,
porque sabemos que as cervejas nacionais, cada vez mais, figuram entre as
melhores do mundo. Por que nos privarmos de observar sua evolução? E mais: se
nós brasileiros não fizermos isso, quem é que fará?
Ao final dessas dicas para montar e aproveitar sua adega de
cervejas, elencarei algumas sugestões concretas, ou seja, uma lista de rótulos
que me parecem especialmente interessantes para começar a montagem de uma adega
de guarda – a partir desses critérios que indiquei aqui. Por ora, sigamos com
nossas orientações. Na próxima parte desta matéria, falaremos sobre as
condições ideais de guarda e armazenagem. Não perca!
Muito Bacana Marcussi, estou adorando essa série sobre envelhecimento de cervejas!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAlexandre, comecei a pouco tempo a ler o teu blog e pela qualidade dos teus textos resolvi ler todos post desde o início. E quero lhe parabenizar pelos assuntos escolhidos e ótimos textos.
ResponderExcluirEsses textos do pegando pó estão sensacionais, dando muitas ideias para degustações.
Obrigado e parabéns!
Fico feliz que tenha gostado, Gustavo! Minha adega por aqui continua a dar bons frutos e pretendo postar aqui sobre os mais legais à medida que eu for abrindo as garrafas. Este mês publiquei sobre a Orval envelhecida, dá uma olhada nos posts recentes!
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
Muito bom!
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