Vimos na parte anterior desta matéria como os guias de
estilos mais usados no mundo cervejeiro estão intimamente atrelados aos
campeonatos e concursos de cervejas. Campeonatos cervejeiros, no Brasil ou em
qualquer outro lugar do mundo, são fenômenos bastante recentes. Aliás, toda
essa imensa diversidade de estilos disponíveis globalmente é uma conquista
recente da indústria cervejeira. O grande “renascimento” dos estilos
cervejeiros data dos últimos 40 anos – enquanto alguns dos termos usados para
categorizar estilos já estão em uso há mais de um milênio. A primeira metade do
século XX foi um período de intensa consolidação no mercado cervejeiro (como em
outros mercados capitalistas, também), com as maiores companhias engolindo as
pequenas cervejarias tradicionais, enquanto os estilos regionais tradicionais
eram gradualmente substituídos pelas lagers claras com adjuntos, que ainda hoje
dominam de forma esmagadora o mercado cervejeiro. Para se ter uma ideia, em
1873, os EUA possuíam 4.131 cervejarias. Cem anos mais tarde, em 1973 (pouco
antes de começar o boom das microcervejarias), havia pouco mais de 100
cervejarias. Uma senhora consolidação. A tendência se reverteu a partir dos
anos 1970, com o renascimento das microcervejarias, capitaneado pelos EUA e
pela Inglaterra.
Teste
cego das nossas “pilsens” de massa.
Cara de um, focinho do outro.
Fonte:
cervejassambasteniscomidas.blogspot.com
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Num mercado como o da
primeira metade do século XX, de poucos rótulos e estilos e de grandes
companhias competindo com produtos muito semelhantes entre si, campeonatos não
faziam muito sentido. Já no cenário atual, com várias cervejarias artesanais
produzindo uma ampla gama de cervejas com propostas totalmente diferentes, a
coisa muda de figura. Campeonatos são formas de organizar o estado atual da
produção cervejeira em cada região e promover os produtos de maior destaque.
Cada campeonato vai ter características diferentes de acordo com seu escopo (se
é um campeonato regional, nacional, continental ou mundial), com o tipo de
produto inscrito (se cervejas industriais ou caseiras) e com as características
da indústria da região onde é realizado.
Uma imagem
contemporânea
Tudo isso nos leva a alguma conclusões importantes. Em
primeiro lugar, os atuais guias de estilo refletem o estado da indústria
cervejeira contemporânea, em especial nos EUA, onde são elaborados tanto o guia
do BJCP quanto da Brewers’ Association. Eles nos oferecem uma visão atual dos
estilos e de suas subdivisões, que nem sempre corresponde à tradição histórica
associada a cada denominação. Todos os guias atuais são unânimes em apontar que
as Belgian tripel são cervejas claras. Contudo, antes do século XX, essa
denominação era usada para cervejas escuras que hoje seriam classificadas como
Belgian dark strong ales. Qualquer nome é sempre maior e mais abrangente do que
a definição atribuída por um único guia de estilos, e nós não podemos confundir
guias modernos com um resumo da história dos estilos cervejeiros, sob pena de
projetar no passado a nossa percepção atual dos estilos.
Rótulo
da Antarctica Original, com a polêmica
denominação “pilsen” em destaque.
Fonte:
carvelho.com.br |
Talvez o exemplo mais polêmico e gritante seja o das nossas
“pilsens” brasileiras, produzidas pelas grandes cervejarias. Pelos guias
cervejeiros, elas teriam de ser classificadas em alguma das subcategorias do
estilo “American lager” (light, standard ou premium). Muitas pessoas julgam
acintoso e ultrajante que as cervejarias denominem esses produtos com o nome
“pilsen”, já que esse termo, de acordo com os modernos guias de estilos, está
associado a lagers claras tradicionalmente produzidas na República Tcheca e na
Alemanha, bem mais secas e amargas do que as nossas “pilsens” comuns. Ocorre
que o estilo “American lager”, no qual esses produtos de massa se enquadram,
surgiu a partir de um longo e gradual processo popularização mundial e de
suavização das cervejas pilsners alemãs e tchecas. A denominação “pilsen”
reflete uma percepção histórica: a de que as cervejas hoje produzidas em massa
tiveram como origem o estilo pilsner tcheco, adaptado a novos padrões globais
de produção e consumo no século XX. No Brasil, os consumidores se acostumaram,
historicamente, a associar o nome “pilsen” a essas cervejas, e não às alemãs e
tchecas mais tradicionais. Será que realmente tem cabimento todas as
macrocervejarias mudarem o nome de suas cervejas só porque alguns campeonatos
realizados no final do século XX decidiram, na contramão da tradição histórica
brasileira, que o nome pilsner se aplica exclusivamente a cervejas produzidas
de acordo com as tradicionais tchecas e alemãs?
Diferentes
campeonatos, diferentes guias
Podemos extrair uma segunda conclusão importante dessas
reflexões. Cada campeonato tem características distintas de acordo com sua
proposta e abrangência. Isso se reflete nas características dos guias
elaborados para cada certame. Há alguns que, por determinados motivos, preferem
criar um número maior de subcategorias, enquanto outros preferem manter cada
categoria mais ampla e abrangente. Não significa que o guia com mais categorias
esteja “mais à frente” do que um com menos estilos: significa apenas que são
dois campeonatos com estruturas diferentes.
Nos próximos posts, veremos um pouco sobre os campeonatos
que deram origem aos principais guias de estilo usados hoje no mundo todo, a
fim de tentar compreender essas diferenças. Acompanhe!