segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Guias de estilos - Parte I: Concursos e guias


Quando começamos a nos interessar pelo fascinante universo das cervejas, é comum nos maravilharmos com a imensa variedade de estilos disponíveis às nossas bocas sedentas nas prateleiras dos bares e empórios. A ânsia da descoberta é tão grande que simplesmente tomamos de barato a existência dos nomes usados para categorizar os estilos cervejeiros, desde o mais simples e abrangente “porter” até extravagâncias herméticas como “American-style imperial stout”. Parece-nos que, de alguma maneira nebulosa, esses nomes provavelmente sempre estiveram por aí; nós, na nossa imensa ignorância fomentada pelos grandes grupos industriais, é que não os conhecíamos.

Quando descobrimos que existem guias de estilos seguidos em várias partes do mundo, como o BCJP Style Guide, o Brewers’ Association Beer Styles Guideline ou até guias menos conhecidos, como o do European Beer Star, pode parecer que eles são uma mera reprodução de um conhecimento antigo e solidificado. Não é bem assim. A atual divisão dos estilos é algo bem estabelecido no mercado cervejeiro do século XXI, mas ela é menos antiga do que pode parecer, e ainda guarda sinais de imensas controvérsias em curso.

Stout ou porter?


Ah, o rótulo de uma bela porter...
Ou stout?! Fonte:
 barclayperkins.blogspot.com

Um exemplo eloquente que me vem à mente é o emaranhado de sentidos associados aos termos “porter” e “stout”. Lendo os atuais guias de estilo, percebemos algumas diferenças: enquanto o BJCP reconhece claramente 3 estilos de porter e 6 estilos de stout, a Brewers’ Association distingue 7 tipos de porter e 8 tipos de stout. Já o econômico European Beer Star indica apenas um tipo de porter e 3 de stout. De qualquer modo, é fácil perceber que se trata de dois grupos de ales diferentes entre si. Contudo, se formos pesquisar a história dos estilos, veremos que os termos “porter” e “stout” eram usados intercambiavelmente durante boa parte dos séculos XVIII e XIX – inclusive, em alguns casos, para cervejas que, tecnicamente, eram lagers, e não ales. As modernas stouts se desenvolveram a partir das porters (sobretudo a partir da invenção do “black malt”), mas o nome stout é mais antigo que a denominação porter! Pior ainda: em 1974, quando a Guinness parou de produzir sua porter, não existia mais nem um único exemplo comercial de cerveja denominada porter no Reino Unido – apenas rótulos que se apresentavam como stouts. Diante de toda essa história, será que essa separação entre porters e stouts sempre foi tão clara como nos parece hoje? Será que documentos como os guias do BJCP ou do Brewers’ Association podem ser encarados como retratos integrais de todas as formas que esses nomes podem assumir?


Muitas vezes, consultamos os guias de estilos ignorando essas questões históricas, o que nos leva a alguns equívocos na hora de empregá-los e na hora de imaginarmos o que devemos esperar dos estilos e das cervejas que adotam esta ou aquela denominação. Por isso, vale a pena fazer um breve retrospecto da história desses guias, mostrando para que cada um deles foi concebido originalmente, o que nos fará ter uma visão mais abrangente de seus pontos fortes e suas limitações.

Concursos e estilos

Há uma questão crucial, e largamente ignorada, quando falamos dos mais conhecidos guias de estilos cervejeiros: eles não foram criados com uma função meramente informativa, mas para auxiliar na organização de campeonatos. Campeonatos exigem organização e sistematização. Para que uma grande quantidade de rótulos possa competir sob uma mesma categoria, é preciso que todos os jurados entrem em um consenso claro e estrito sobre quais os requisitos de cada categoria. Não dá para um painel de 10 jurados escolher “a melhor porter” se cada um deles tem uma visão diferente sobre o que deve ser uma porter. É aí que os guias de estilo entram.


Mãos à obra, juízes! Tá pensando que é moleza?
Fonte: beerbybart.com
Hoje, os guias de estilo cumprem também outras funções: eles podem ter um propósito didático quando são lidos por consumidores em busca de uma apreciação mais aprofundada do que estão bebendo. Também podem cumprir uma função produtiva, já que são lidos por produtores caseiros em busca de parâmetros para avaliar suas próprias cervejas ou criar novas receitas. Mas, em sua origem, eles foram pensados como instrumentos para campeonatos. É preciso pensar um pouco sobre as consequências disso.

Num campeonato, o que determina a quantidade de estilos, fundamentalmente, é o número de rótulos inscritos. Se o estilo porter recebe o triplo de inscrições da média das demais categorias, pode ser interessante dividi-lo em duas ou mais sub-categorias para facilitar a avaliação e contemplar de forma mais justa as variações possíveis dentro do estilo. Se, por outro lado, existe uma única cerveja com determinadas características, ela não justifica, sozinha, a abertura de uma nova categoria e a criação de um novo estilo no guia – não importa o quão diferente das demais ela seja. Não tem o menor cabimento criar uma categoria em que um único produto vá competir sozinho, ou com apenas 2 ou 3 outros rótulos. Não importa se aquela cerveja maturada com uma madeira exótica ou brassada com a ajuda de uma pedra fumegante é diferente de tudo o que você já tomou: o que importa é se existe um número considerável de pessoas produzindo cervejas parecidas e inscrevendo-as nos campeonatos. Apenas aí temos a inclusão de um novo estilo nos guias cervejeiros.

Portanto, não nos enganemos: estilos não são uma simples descrição de todas as variações e receitas passíveis de serem produzidas e diferenciadas sensorialmente entre si. Estilos representam tendências de inscrições em campeonatos cervejeiros. O critério primeiro não é sensorial; é organizacional, e reflete a estrutura e o julgamento da organização de cada evento específico. O comitê de cada campeonato precisa considerar diversos fatores antes de abrir uma nova categoria. Alguns certames estão abertos a novas propostas com mais facilidade. Outros acreditam que estilos devem refletir tendências consolidadas, e não meras novidades que podem ser passageiras. Determinados tipos de cerveja surgem de repente, viram verdadeiros “modismos” e quase desaparecem de forma muito rápida, e nem sempre é produtivo criar categorias que vão desaparecer em poucos anos. Outros estilos vão se consolidando aos poucos, e algumas variações até são antigas, mas não caem no gosto geral e nunca chegam a ser produzidas na escala suficiente para justificar um novo estilo.

Nas próximas partes deste artigo, veremos um pouco mais sobre a maneira como diferentes campeonatos influenciam de forma decisiva as características dos guias mais usados no Brasil Acompanhe!

3 comentários:

  1. Excelente, Marcussi! Já estou aguardando a próxima parte!

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  2. Mestre Marcussi, excelente explanação.
    Sem dúvida uma competição necessita desses guias.
    Também gosto de tentar fazer as minhas levas considerando estilos já definidos, mas acredito que todo cervejeiro caseiro tem uma cerveja que não cabe em estilo algum.
    Um abraço.
    Monich

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  3. Tarcício, agradeço o elogio! Espero que, nas próximas, eu consiga esclarecer as suas dúvidas a respeito do assunto BJCP x BA!
    Monich, para um cervejeiro caseiro, saber recriar perfeitamente um estilo clássico é uma baita prova de competência, mas também tem o entusiasmo de brincar e conseguir pôr em prática algo que você nunca viu! Falarei mais sobre isso - e sobre a relação entre homebrewing e guias de estilos - nas próximas partes!
    Abraços!

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