sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cerveja e mitologia - Parte III: O maltado e o podre


Não, não voltarei a falar sobre mitologia aqui. Mas acho legal encerrar essa pequena série de posts sobre o assunto com uma degustação – uma dupla degustação, neste caso. Nas partes anteriores, vimos como o cauim (a “cerveja de mandioca”), entre os índios tukuna, é uma bebida de características sagradas, em parte por conta de sua natureza de alimento ao mesmo tempo cozido e podre. Infelizmente, não temos (ainda) nenhum maluco produzindo e comercializando cauim em escala industrial no Brasil. Qualquer um que tentasse certamente levantaria as sobrancelhas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (o famigerado MAPA, que barra sistematicamente a licença de várias cervejas artesanais por muito menos do que isso).

Mas temos cervejas, produzidas aqui e lá fora, que fazem essa mesma misteriosa e deliciosa viagem entre os reinos do cozido e do podre: cervejas que são brassadas e fermentadas como qualquer ale, mas que depois são deixadas no “lado negro da Força”, aos caprichos de leveduras selvagens e bactérias acéticas e láticas. Um dos clássicos estilos em que isso ocorre é denominado “Flanders red ale”, ou seja, as ales avermelhadas de Flandres, região da Bélgica. Essas cervejas sofrem uma fermentação primária com fermento ale, desenvolvendo um perfil frutado e apimentado. Depois são maturadas em grandes tonéis de carvalho durante mais de um ano. Ao longo desse período, o líquido é atacado por leveduras do gênero Brettanomyces e por bactérias acéticas e láticas, tornando-se progressivamente mais azedo e desenvolvendo novos e complexos aromas.

Até o ano de 2011, não tínhamos nenhuma legítima representante desse estilo no Brasil, mas isso mudou com a chegada da arquiclássica Rodenbach, a mais tradicional produtora de Flanders red ales na Bélgica. Atualmente temos dois rótulos dessa cervejaria no Brasil, importados pela Bier&Wein: Rodenbach Classic e Rodenbach Grand Cru. Ambos são blends de cervejas frescas e envelhecidas: o primeiro deles é composto por três quartos de cerveja jovem e um quarto da envelhecida. No segundo, as proporções quase se invertem: um terço da cerveja jovem apenas para amaciar levemente o poder dos dois terços restantes da cerveja envelhecida. Ao proporcionarem uma maravilhosa viagem entre os reinos das ales e da fermentação espontânea, dos macios e adocicados sabores maltados e cozidos para os rústicos e ácidos sabores “podres” da fermentação espontânea, eles me parecem uma escolha ideal para finalizar esta matéria. Será que nos darão o dom do rejuvenescimento?

Rodenbach

Teor alcoólico: 5.2% ABV
Aparência: coloração acobreada-amarronzada, com boa transparência e espuma de média formação e boa estabilidade.
Aroma: os aromas da cerveja jovem dominam francamente, com um perfil frutado remetendo a uvas e morango ao lado de uma sólida presença do malte com notas de caramelo, castanhas e tostado, além do fenólico apimentado típico do estilo. Algumas características secundárias de envelhecimento e fermentação espontânea estão presentes de forma suave: aquele aroma “animal” ou de couro das Brettanomyces, leve amadeirado, um sutil toque caprílico.
Sabor: doçura e acidez, medianas, se equilibram, com um forte suporte salgado ao fundo. O amargor é bem suave. Discreta e suave perto da versão Grand Cru.
Sensação na boca: o corpo médio traz textura cremosa, com pouca sensação de aquecimento.

A versão “jovem” da Rodenbach é feita com apenas um quarto da cerveja envelhecida em tonéis de carvalho; por isso, seu perfil de fermentação espontânea e envelhecimento ainda é bem suave, insinuando-se de forma discreta por trás das características frutadas, maltadas e torradas da receita de base. Por conta disso, acaba sendo uma cerveja de grande complexidade, mas mantendo sua suavidade e uma alta drinkability.

Veja aqui a avaliação completa.


Rodenbach Grand Cru

Teor alcoólico: 6.0% ABV
Aparência: coloração avermelhada-amarronzada profunda, quase violeta, transparente, com espuma de volume mediano e boa persistências.
Aroma: profundo e maduro; a primeira coisa que se nota são as características de fermentação espontânea e envelhecimento, com aromas animais e de couro bem presentes (das Brettanomyces), junto com algo de vinagre de vinho tinto, amêndoas e um amadeirado perceptível. O frutado ainda se mantém expressivo com morango e uvas, ao lado dos fenóis apimentados que trazem uma “agudeza” ao aroma. O malte também é expressivo e traz as mesmas sensações de caramelo, castanhas e achocolatado. Enorme complexidade e profundidade de aromas, que surpreende pela forma como características de ales e de fermentação espontânea se encontram integradas num conjunto harmônico.
Sabor: alta acidez e sensação salgada, típicas de cervejas de fermentação espontânea, são bem equilibradas pela doçura do malte. O amargor é pouco perceptível.
Sensação na boca: o corpo é mediano e tem textura aveludada, com alta carbonatação. Já traz um certo aquecimento alcoólico, ressaltado pela picância fenólica.

Tudo neste rótulo parece dizer que esta cerveja é como o “irmão mais velho” da Rodenbach: mais intensa e madura, segura de sua personalidade, sem ter de recorrer tanto à doçura do malte para atingir um equilíbrio peculiar e encantador. Todas as características da irmã mais jovem reaparecem, mas de forma mais intensa, já que ela tem uma proporção muito maior da cerveja envelhecida em carvalho no blend. Só perde em drinkability. Durante o gole, ela te faz viajar entre as fronteiras das ales e lambics, integrando rusticidade e sofisticação.

Não me espantaria se descobrisse que esta foi a cerveja deu aos insetos e cobras a “vida longa” dos tukuna!

Veja aqui a avaliação completa.

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