Não, não voltarei a falar sobre mitologia aqui. Mas acho
legal encerrar essa pequena série de posts sobre o assunto com uma degustação –
uma dupla degustação, neste caso. Nas partes anteriores, vimos como o cauim (a “cerveja
de mandioca”), entre os índios tukuna, é uma bebida de características
sagradas, em parte por conta de sua natureza de alimento ao mesmo tempo cozido
e podre. Infelizmente, não temos (ainda) nenhum maluco produzindo e
comercializando cauim em escala industrial no Brasil. Qualquer um que tentasse
certamente levantaria as sobrancelhas do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (o famigerado MAPA, que barra sistematicamente a licença de várias
cervejas artesanais por muito menos do que isso).
Mas temos cervejas, produzidas aqui e lá fora, que fazem
essa mesma misteriosa e deliciosa viagem entre os reinos do cozido e do podre:
cervejas que são brassadas e fermentadas como qualquer ale, mas que depois são
deixadas no “lado negro da Força”, aos caprichos de leveduras selvagens e
bactérias acéticas e láticas. Um dos clássicos estilos em que isso ocorre é
denominado “Flanders red ale”, ou seja, as ales avermelhadas de Flandres,
região da Bélgica. Essas cervejas sofrem uma fermentação primária com fermento
ale, desenvolvendo um perfil frutado e apimentado. Depois são maturadas em
grandes tonéis de carvalho durante mais de um ano. Ao longo desse período, o
líquido é atacado por leveduras do gênero Brettanomyces
e por bactérias acéticas e láticas, tornando-se progressivamente mais azedo e
desenvolvendo novos e complexos aromas.
Até o ano de 2011, não tínhamos nenhuma legítima representante
desse estilo no Brasil, mas isso mudou com a chegada da arquiclássica
Rodenbach, a mais tradicional produtora de Flanders red ales na Bélgica. Atualmente
temos dois rótulos dessa cervejaria no Brasil, importados pela Bier&Wein:
Rodenbach Classic e Rodenbach Grand Cru. Ambos são blends de cervejas frescas e
envelhecidas: o primeiro deles é composto por três quartos de cerveja jovem e
um quarto da envelhecida. No segundo, as proporções quase se invertem: um terço
da cerveja jovem apenas para amaciar levemente o poder dos dois terços
restantes da cerveja envelhecida. Ao proporcionarem uma maravilhosa viagem
entre os reinos das ales e da fermentação espontânea, dos macios e adocicados
sabores maltados e cozidos para os rústicos e ácidos sabores “podres” da
fermentação espontânea, eles me parecem uma escolha ideal para finalizar esta
matéria. Será que nos darão o dom do rejuvenescimento?
Rodenbach
Teor
alcoólico: 5.2% ABV
Aparência:
coloração acobreada-amarronzada, com boa transparência e espuma de média
formação e boa estabilidade.
Aroma: os aromas
da cerveja jovem dominam francamente, com um perfil frutado remetendo a uvas e
morango ao lado de uma sólida presença do malte com notas de caramelo, castanhas
e tostado, além do fenólico apimentado típico do estilo. Algumas
características secundárias de envelhecimento e fermentação espontânea estão
presentes de forma suave: aquele aroma “animal” ou de couro das Brettanomyces, leve amadeirado, um sutil
toque caprílico.
Sabor: doçura e
acidez, medianas, se equilibram, com um forte suporte salgado ao fundo. O
amargor é bem suave. Discreta e suave perto da versão Grand Cru.
Sensação na boca: o corpo médio traz textura cremosa, com
pouca sensação de aquecimento.
A versão “jovem” da Rodenbach é feita com apenas um quarto
da cerveja envelhecida em tonéis de carvalho; por isso, seu perfil de fermentação
espontânea e envelhecimento ainda é bem suave, insinuando-se de forma discreta
por trás das características frutadas, maltadas e torradas da receita de base.
Por conta disso, acaba sendo uma cerveja de grande complexidade, mas mantendo
sua suavidade e uma alta drinkability.
Veja aqui a avaliação completa.
Veja aqui a avaliação completa.
Rodenbach Grand Cru
Teor alcoólico:
6.0% ABV
Aparência: coloração avermelhada-amarronzada profunda, quase violeta, transparente, com espuma de volume mediano e boa persistências.
Aroma: profundo e maduro; a primeira coisa que se nota são as características de fermentação espontânea e envelhecimento, com aromas animais e de couro bem presentes (das Brettanomyces), junto com algo de vinagre de vinho tinto, amêndoas e um amadeirado perceptível. O frutado ainda se mantém expressivo com morango e uvas, ao lado dos fenóis apimentados que trazem uma “agudeza” ao aroma. O malte também é expressivo e traz as mesmas sensações de caramelo, castanhas e achocolatado. Enorme complexidade e profundidade de aromas, que surpreende pela forma como características de ales e de fermentação espontânea se encontram integradas num conjunto harmônico.
Aroma: profundo e maduro; a primeira coisa que se nota são as características de fermentação espontânea e envelhecimento, com aromas animais e de couro bem presentes (das Brettanomyces), junto com algo de vinagre de vinho tinto, amêndoas e um amadeirado perceptível. O frutado ainda se mantém expressivo com morango e uvas, ao lado dos fenóis apimentados que trazem uma “agudeza” ao aroma. O malte também é expressivo e traz as mesmas sensações de caramelo, castanhas e achocolatado. Enorme complexidade e profundidade de aromas, que surpreende pela forma como características de ales e de fermentação espontânea se encontram integradas num conjunto harmônico.
Sabor: alta
acidez e sensação salgada, típicas de cervejas de fermentação espontânea, são
bem equilibradas pela doçura do malte. O amargor é pouco perceptível.
Sensação na boca:
o corpo é mediano e tem textura aveludada, com alta carbonatação. Já traz um
certo aquecimento alcoólico, ressaltado pela picância fenólica.
Tudo neste rótulo parece dizer que esta cerveja é como o “irmão
mais velho” da Rodenbach: mais intensa e madura, segura de sua personalidade,
sem ter de recorrer tanto à doçura do malte para atingir um equilíbrio peculiar
e encantador. Todas as características da irmã mais jovem reaparecem, mas de
forma mais intensa, já que ela tem uma proporção muito maior da cerveja
envelhecida em carvalho no blend. Só perde em drinkability. Durante o gole, ela
te faz viajar entre as fronteiras das ales e lambics, integrando rusticidade e
sofisticação.
Não me espantaria se descobrisse que esta foi a cerveja deu aos
insetos e cobras a “vida longa” dos tukuna!
Veja aqui a avaliação completa.
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