domingo, 15 de setembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XI: A feira da fruta

“Entrei na feira da fruta, pra ver 
o que a feira da fruta tem...”
Fonte: olhares.sapo.pt
As lambics de frutas são geralmente o primeiro contato que temos com o mundo das cervejas de fermentação espontânea – tanto é que muita gente confunde “lambic” com “fruit beer”. Já sabemos que isso não é exato: existem tanto lambics sem frutas (e na última parte desta matéria tivemos a oportunidade de “beber” seis delas) quanto cervejas de frutas que não são lambics. Mas o fato é que as frutas são parte inevitável do imaginário coletivo sobre as exóticas cervejas de fermentação espontânea do vale do rio Senne. Se, no caso das gueuzes, as diferenças entre uma marca e outra refletem principalmente as particularidades do terroir e as preferências do blender, o mesmo não ocorre necessariamente com as lambics de frutas. Nelas, a fruta adiciona novas camadas de informação sobre a cerveja-base, o que significa que, em grande medida, as características de cada fruta vão influenciar de forma determinante o caráter final do produto. Mas depende da habilidade do produtor e do blender extrair da fruta aquilo que ele quer em sua cerveja. Alguns exemplos deixarão isso claro.

Antecedentes históricos

Fatores históricos ajudam a explicar por que as cervejas com frutas ficaram tão fortemente associadas às lambics. Arqueólogos sugerem que as primeiras cervejas da história, ainda na Antiguidade, provavelmente eram feitas com a adição de frutas ou flores. Isso tinha um objetivo bastante prático: como não se conhecia bem o processo de fermentação e nem as leveduras responsáveis por transformar um caldo de cereais em cerveja, a fermentação era feita de forma “espontânea”, sem inoculação direta de leveduras (como ocorre até hoje nas lambics). Nesse contexto, frutas maduras eram frequentemente adicionadas para iniciar a fermentação, já que elas geralmente possuíam leveduras selvagens em suas cascas e acabavam por inocular o mosto.

O uso das frutas em outros tipos de cervejas quase desapareceu com os desenvolvimentos tecnológicos que levaram à criação das ales e lagers. Disseminada durante a Idade Média, a prática de retirar a espuma que se forma no topo da cerveja em processo de fermentação (que é constituída basicamente de leveduras) e adicioná-la ao mosto recém-preparado tornou a adição de frutas desnecessária. Além disso, em terras germânicas, a Lei de Pureza de 1516, na Baviera, proibiu o uso de frutas na fabricação de cervejas em território bávaro. Vimos que, hoje em dia, a fermentação das lambics também ocorre de forma independente das frutas – elas só entram quando a cerveja já está totalmente fermentada. Ainda assim, permanece a ligação histórica entre frutas e fermentação espontânea.

Na região de Bruxelas, diferentemente do que aconteceu em todo o restante da Europa, as cervejas continuaram a ser feitas sem inoculação de fermento, e a adição de frutas continuou sendo apreciada pelos produtores e consumidores. É possível traçar claramente os antecedentes das atuais lambics de frutas pelo menos até o século XIX. As lambics eram normalmente servidas direto dos barris nos chamados cafés, que compravam a cerveja dos produtores e a vendiam ao público. Na época, a produção e o consumo eram extremamente regionalizados. Devido às dificuldades de transporte e acondicionamento, bebia-se praticamente apenas a cerveja produzida em cada localidade. No caso das lambics, era comum que só houvesse uma única cerveja disponível no café: a lambic do produtor local. Para variar um pouco a oferta de cervejas, os proprietários dos cafés adicionavam frutas aos barris, dando origem às fruit lambics.

O espetáculo das cerejeiras em flor 
na região de Schaarbeek, em Bruxelas.
Fonte: http://www.panoramio.com/photo/10551222
Tradicionalmente, usavam-se as frutas cultivadas na região de Bruxelas, que então era famosa pelos amplos pomares de cerejas azedas da região de Schaarbeek, hoje quase extintos. Daí o fato de as lambics terem ficado historicamente associadas às cerejas: é claro que a fruta complementa de forma admirável o perfil das cervejas locais, mas a sua disponibilidade foi o fator crucial. Receitas tradicionais normalmente são explicadas pela disponibilidade regional de insumos e ingredientes, e certamente é o caso aqui. Hoje em dia, com a urbanização da região de Bruxelas e o quase desaparecimento dos pomares de Schaarbeek, os produtores passaram a recorrer a cerejas cultivadas no norte do país e na Polônia, mas a Schaarbeek ainda carrega uma certa aura de prestígio.

A partir do século XX, os cafés especializados em lambics começaram a se tornar cada vez mais escassos diante da concorrência de cervejas inglesas, alemãs e de abadia, e a tarefa da produção de lambics de frutas passou do dono do café para o próprio produtor. Alguns donos de cafés abandonaram o serviço ao público e se tornaram blenders independentes, comprando o mosto das cervejarias para fermentá-lo, maturá-lo, adicionar frutas e blendar por conta própria.

A rainha das frutas: a cereja

Atualmente são produzidas lambics com uma grande variedade de frutas; contudo, a cereja ainda é a opção tradicional e mais disseminada, dando origem às chamadas “kriek lambics” (“lambics de cerejas”). Cerejas dão diversas contribuições a uma lambic, além do óbvio aroma. Sua cor é intensa, tingindo a cerveja e tornando-a muito chamativa, semelhante a um vinho rosé. Elas possuem um equilíbrio perfeito entre doçura e acidez. A doçura fornece açúcares para uma nova fermentação, ampliando a complexidade da lambic. A acidez da fruta, por sua vez, provém principalmente do ácido málico, que possui sabor um pouco “áspero”, mas que é metabolizado pelas bactérias láticas durante a chamada fermentação malolática para dar origem ao ácido lático (o mesmo que já predomina na lambic), de paladar mais agradável, complementando a acidez natural da própria cerveja.

Além disso, as cascas e caroços da cereja possuem boa concentração de taninos, que dão à cerveja mais corpo e permanência na boca. Por fim, compostos químicos naturalmente presentes na fruta (sobretudo no caroço) dão origem a aromas característicos de amêndoas cruas, marzipã e canela, que aumentam a complexidade aromática. Contudo, a presença da fruta normalmente tende a encobrir alguns aromas mais sutis e discretos da lambic, de modo que ela pode acabar perdendo um pouco em complexidade de aromas animais e esterificados, em relação a uma gueuze. Contribui para isso o fato de que os produtores normalmente reservam as lambics de maior complexidade aromática para a produção da gueuze.

Apesar de estarmos falando da mesma fruta, nem toda kriek lambic é igual. Algumas enfatizam mais o aroma da fruta, enquanto outras o apresentam de forma apenas complementar ao lado dos aromas animais das Brettanomyces. Algumas são mais gentis no paladar, enquanto outras são intensamente ácidas e tânicas. De modo geral, as kriek lambics tradicionais (“oude” ou “vieille”), que são produzidas sem adição de açúcar ou adoçantes e que não são pasteurizadas, tendem a apresentar um aroma de frutas mais equilibrado com os traços aromáticos animais e frutados típicos de lambics, enquanto as versões adoçadas tendem a exibir um aroma mais forte (e por vezes enjoativo, passando uma impressão de artificialidade) da fruta.  Quatro versões tradicionais, sem adoçantes, nos ajudarão a entender o leque de possibilidades oferecidas pelo estilo.

Uma kriek lambic especialmente gentil e com presença marcante da fruta, mesmo não sendo adoçada, é a Girardin Kriek 1882. Apresenta muita cereja no aroma, com impressão também de morangos maduros, sobre notas secundárias de canela, couro cru, estábulo e amêndoas cruas, tudo com ótima tipicidade. Destaca-se uma presença marcante de baunilha advinda do carvalho, que se une ao malte para criar uma impressão de pão-de-ló. Delicado, o aroma lembra o de um donut de cereja. A acidez é apenas mediana, bem contida, equilibrada por uma sutil doçura, com um final tendendo ao neutro, com poucos taninos (como ocorre com a gueuze da cervejaria). Não impressiona pela potência, mas pela delicadeza e sutileza de aromas, sendo uma opção muito acessível e palatável, boa para quem não está acostumado com a força da acidez das lambics tradicionais.

Lindemans Kriek Cuvée René.
Fonte: www.pbase.com
Já a 3 Fonteinen Oude Kriek é quase o oposto disso: intensa, avassaladora, muito ácida, pode assustar quem está acostumado com fruit lambics docinhas com açúcar e aspartame. O aroma traz em primeiro plano uma forte rusticidade animal (com estábulo e caprílico), sendo que a cereja aparece de forma complementar, sobre toques acéticos e amendoados suaves. A acidez é mordaz, inclemente, e ela finaliza muito seca, com taninos aparentes.

A Lindemans Kriek Cuvée René (único rótulo tradicional que podemos encontrar no mercado brasileiro), por sua vez, é um bom exemplo de kriek lambic em que os traços da fruta são mais sutis, predominando no aroma as notas florais e esterificadas (raspas de limão e uvas verdes), ao lado de uma boa complexidade abaunilhada, mentolada, amendoada e de mofo. A acidez é intensa, com um amargor tânico moderado conduzindo a um final mais neutro.

Por fim, a Cantillon Kriek 100% Lambic é uma cerveja que exibe abundantemente o caráter amendoado e de especiarias doces comum à kriek: canela, amêndoas cruas e marzipã chegam a ultrapassar os aromas de cereja e frutas vermelhas, dando à cerveja um buquê muito elegante e sofisticado. Notas animais e de madeira completam a paleta aromática. A acidez é intensa, mas o final longo e bem estruturado desenvolve uma encantadora doçura de especiarias e deixa um equilibrado amargor tânico na boca. Uma kriek notável.

Outras frutas

Por muito tempo, a produção comercial de lambics de frutas ficou restrita às tradicionais cerejas. Não espanta, considerando o grau de respeito à tradição que caracteriza os produtores de lambics. Contudo, o final do século XX trouxe um novo horizonte de frutas, dando origem a deliciosos experimentos que continuam até hoje. As framboesas, usadas ocasionalmente desde o início do século XX pelos donos de cafés, foram as primeiras a serem usadas pelos produtores nas versões engarrafadas. Logo se seguiram as uvas (gerando verdadeiros híbridos entre lambics e vinhos), o cassis, o pêssego, o morango, o damasco, a ameixa e até mesmo experimentos comerciais com frutas tropicais como banana e abacaxi. Cada fruta possui características peculiares e dá contribuições diferentes à lambic.

O rótulo da Rosé de Gambrinus ilustra o típico joie de 
vivre belga. Mas o desenho não é tão claro: minha 
namorada me perguntou o que a moça pelada estava 
fazendo no colo de uma senhora com rouge.
Fonte: vimeo.com
A framboesa, mais disseminada entre os produtores, é bem exemplificada pela Cantillon Rosé de Gambrinus, uma lambic que já levou um pouco de cerejas e baunilha em algumas safras, mas hoje é produzida exclusivamente com framboesa. O aroma é uma mescla de rusticidade animal e terrosa com a delicadeza da framboesa e das frutas vermelhas (chega a parecer que ela leva cerejas). Amêndoas cruas, pimenta, acético e mostarda terminam e compor essa intrigante mescla. A acidez predomina na boca, mas conduz a um final em que aparece uma graciosa doçura lembrando geleia de frutas. Amargor e taninos são suaves devido às características da framboesa, bem menos tânica do que a cereja, o que resulta em uma lambic insuspeitadamente refrescante e fácil de beber. As lambics de framboesa, no geral, tendem a ser mais amigáveis ao paladar que as de cerejas devido à menor concentração de taninos.

A Cantillon se destaca na produção de lambics de frutas tradicionais, sem adição de adoçantes. Outra opção interessante da cervejaria é a Cantillon Fou’Foune, produzida com damascos frescos. A fruta adiciona enormes quantidades e taninos e acidez à cerveja; para agravar, a garrafa que eu degustei já tinha 8 anos de guarda, tendo secado ainda mais com o tempo. Vale ressaltar que as safras antigas da Cantillon eram conhecidas pela sua acidez implacável, que se atenuou muito nos anos recentes. O resultado foi simplesmente a cerveja mais ácida, seca e radical que eu já bebi. O aroma dos damascos ainda era claro, mas já havia se atenuado com a guarda, dando mais espaço aos tons animais, amadeirados, torrados (lembrando pipoca queimada e amendoim torrado) e mel, acentuados com o envelhecimento. Terroso, vinagre de vinho branco e algum amendoado complementaram sua ótima complexidade aromática de cerveja envelhecida. Muito ácida e seca, sem absolutamente nenhuma doçura, causando forte sensação de salivação, com uma acidez acética quente e um tanto agressiva. Fico curioso para provar novamente esta cerveja jovem.

Outra cervejaria que apresenta uma ampla gama de lambics de frutas é a Lindemans – que foi pioneira nos experimentos com novas frutas além da cereja. Infelizmente, quase todas são pasteurizadas e adoçadas, mas a maioria ainda exibe um aroma complexo e pleno de Brettanomyces (o que indica que a cervejaria matura sua lambic pelo tempo adequado), oferecendo bastante interesse. Sua Lindemans Pecheresse, feita com adição de pêssegos, apresenta aroma complexo, elegante e bem-acabado, com predomínio da fruta, que lembra compota caseira de pêssego e damasco, sem nenhum traço de artificialidade. Notas animais e um amplo frutado (uvas verdes e peras brancas) aparecem ao lado de toques de baunilha, madeira, castanhas e amêndoas cruas. Na boca, porém, ela decepciona um pouco com uma doçura pesada e enjoativa que lembra calda de pêssego e que se sobrepõe à acidez. O corpo é mediano e licoroso. É um pouco triste saber que essa lambic de ótima vivacidade aromática só é vendida adoçada e pasteurizada – quem sabe a Lindemans não se anima a fazer uma “Oude Pecheresse” no futuro?

A Lindemans Cassis é um testemunho eloquente de como as características da fruta podem afetar o produto final. Produzida com groselha-negra ou cassis, ela na verdade é tão doce quanto a Pecheresse, em termos absolutos, mas a fruta adiciona tanta acidez e um grau tão elevado de taninos que ela se torna mais equilibrada, ousada e intensa na boca. O aroma é menos complexo, mostrando o cassis (com nuances de uvas roxas) claramente predominante sobre toques sutis de limão, mofo, mostarda, amêndoas cruas e alho. O primeiro toque na língua é bem doce, mas logo surge uma intensa acidez e um amargor tânico firme, dando-lhe muita pegada. Fico imaginando quão assertiva pode ser uma lambic com cassis sem adoçantes, bem seca.


Os experimentos com frutas não param por aí, e a cada ano surgem novas variações. Infelizmente, ainda predominam as versões adoçadas, mas também se observa uma tendência de que outras cervejarias tradicionais sigam o exemplo da Cantillon e se aventurem mais e mais no mundo das “oude fruit lambics”. Há todo um horizonte aberto de possibilidades!

domingo, 1 de setembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte X: Comparativo de gueuzes

Nas partes anteriores desta matéria, tivemos a oportunidade de ver em detalhes os complexos métodos de produção das lambics e analisar, ponto a ponto, o perfil sensorial esperado das misteriosas e complexas gueuzes, incluindo sua marcante acidez e seus exóticos aromas animais e frutados. É hora de colocar toda essa teoria na prática, confrontando seis gueuzes para buscar a identidade e o perfil próprio a cada uma delas. A princípio, pode parecer ao degustador de lambics que toda gueuze é mais ou menos parecida, variando apenas a intensidade de alguns parâmetros principais, como a acidez e os aromas animais. Uma comparação atenta, porém, revela que cada produtor, cada blender possui sua identidade e busca preparar um produto final com sua “marca registrada” em meio a todas as possibilidades oferecidas pelo estilo.

Claro que, como em toda comparação de estilos, o ideal seria degustar todos esses rótulos simultaneamente, lado a lado, para que as particularidades de cada um transparecessem e para que nosso paladar não se enganasse. A acidez que, num dia, pode nos parecer suave, na semana seguinte, em outras condições de paladar, já pode ser percebida como mais agressiva. Contudo, a escassa disponibilidade de cervejas do estilo no Brasil fez com que eu recorresse a notas de degustação tomadas em ocasiões diversas. Portanto, algumas das discrepâncias entre as avaliações refletem as diferentes circunstâncias em que bebi as cervejas, bem como a evolução do meu paladar ao longo do tempo. Quem sabe um dia não tenhamos, no Brasil, um mercado de lambics maduro o bastante para fazer uma degustação horizontal de oude gueuzes (de preferência, sem gastar quase um salário mínimo)? Hoje em dia, 3 dos 6 rótulos listados abaixo já podem ser encontrados no mercado brasileiro, mas os preços nem sempre ajudam. Por fim, vale lembrar que lambics são cervejas altamente sensíveis a variações de safra, de modo que optei por indicar o ano de envase de cada uma das garrafas.

Mas chega de papo furado e vamos abrir as garrafas!

Fonte: 
O público brasileiro está tão acostumado a ter este rótulo “sempre à mão” que nem sempre se dá conta do quanto ele é especial. Trata-se do blend mais ousado da Boon, em que entram nada menos que 95% de lambic forte e madura, envelhecida por 3 anos em grandes tonéis de carvalho, e apenas 5% de lambic jovem. Seu aroma, maduro e elegante, mostra toques amendoados e minerais evidentes (lembrando amêndoas cruas, e não torradas) ao lado de um aroma deliciosamente vívido de cerejas, que chega a lembrar uma kriek lambic. Como tem alto teor alcoólico, ostenta um floral semelhante ao de golden strong ales e um aquecimento ligeiramente perceptível. Tudo isso mesclado a uma impressionante complexidade com estábulo, caprílico, uvas verdes, terroso, apimentado, mel aromático, cravo, defumação e castanhas. A acidez é intensa, não acética, mas o amargor tânico a equilibra num final muito longo, estruturado e mineral. Uma gueuze “de impacto”, com ótima tipicidade. Clique aqui para ver a avaliação completa.


A Cantillon tinha a reputação de fazer as lambics mais azedas da Bélgica, mas suas safras recentes têm se mostrado excepcionalmente balanceadas desde que a cervejaria começou a trocar seus barris antigos por outros novos, reduzindo a incidência de bactérias acéticas. A gueuze, preparada apenas com ingredientes orgânicos, se aproxima muito do perfil de vinho Chardonnay que muitos produtores buscam para suas lambics: acidez moderada, pouco acética, frutado muito acentuado e uma licorosidade voluptuosa e exuberante. A acidez predomina sem excessos, cedendo espaço a um amargor tânico que se prolonga no final ao lado de uma sutil doçura licorosa em segundo plano. O aroma começa rústico, bem animal, terroso e lembrando mostarda. Depois, abre-se um encantador e jovial frutado tropical, com cascas de peras brancas e laranjas, limão siciliano, tudo envolto por sólido perfume de mel. Amêndoas cruas e um traço de pão se prolongam num final longo, amargo e tânico. O corpo é leve e seco como manda o estilo, mas há uma sutil viscosidade licorosa lembrando vinho, além de bons taninos. Elegante e precisa sem extremismos. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: commons.wikimedia.org
A safra 2011 da oude geuze “convencional” da 3 Fonteinen (já que a cervejaria também vende um “Golden Blend” que leva uma inusitada lambic de 4 anos de idade) mostrou-se impactante, ao mesmo tempo encantadora e inclemente. Altíssimos graus de acidez lática e de amargor, castigando o palato, sem nenhuma doçura. É reconhecida pelos aromas cítricos e de carvalho que são sua marca registrada, remetendo vividamente a maracujá fresco e baunilha doce, sobre uma base animal e orgânica acentuada (estábulo, couro cru, caprílico, suor, queijo, mofo e madeira seca). Framboesa e peras são notadas levemente, enquanto o malte e o floral, suaves, se combinam à baunilha para dar uma sutil impressão de pão-de-ló, bolo de maracujá e chá da tarde na casa da vovó. Tem muita nobreza, tipicidade e personalidade, mas eu senti falta de um pouco mais de finesse e delicadeza nesta safra. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.birrandosiimpara.it
A Girardin faz duas gueuzes a partir do mesmo blend: a versão do rótulo preto, mais tradicional, é refermentada na garrafa com leveduras. É uma gueuze bem acética, de aroma típico e equilibrado. Ao lado dos traços animais e de mofo, há um apimentado que se combina ao acético fazendo lembrar salame. Sobre essa base rústica, dançam aromas delicados e perfumados, como amêndoas cruas, violetas, uvas verdes, peras brancas e alguma aveia, fazendo um interessante contraste. Ela tem uma acidez mordaz que ruge ao entrar na boca, mas que decresce e vai se extinguindo em direção a um final curto, tendendo ao neutro, bem mineral e amendoado. O amargor e os taninos apenas medianos, além da ausência total de doçura, reforçam a impressão de que o final fica um pouco “apagado”, desestruturado, mas isso também torna a sensação do gole um pouco mais gentil. Gueuze clássica e típica, de ótimo aroma, sem tanta pegada na boca. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.djibnet.com
Até pouco tempo atrás, a oude gueuze da cervejaria era vendida apenas no café sob o epíteto de “Gueuze sur Lie”, mas hoje ela também é comercializada no mercado com o nome de “Mort Subite Oude Gueuze Naturel”. Trata-se de uma oude gueuze inusitadamente adocicada, em que realmente se sente a doçura residual do malte indicando ou pouco tempo de refermentação na garrafa, ou uma grande quantidade de lambic jovem no blend. Sobre os aromas tipicamente animais do estilo, desenvolvem-se toques mais delicados, cítricos (laranjas maduras), florais (rosas e violetas) e medicinais. Embora a acidez predomine, a doçura é bem mais perceptível do que em outros rótulos, fazendo dela uma gueuze fácil de beber sem torná-la enjoativa como os exemplares adoçados. O corpo também se torna medianamente denso e cremoso em decorrência dos açúcares residuais, e o amargor e taninos são pouco perceptíveis. Boa porta de entrada para quem não está acostumado com o estilo. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.flickr.com
A Oud Beersel é um testemunho do tipo de devoção que as lambics inspiram. Quando a cervejaria fechou as portas em 2002, dois jovens amigos resolveram comprá-la para manter viva sua gueuze favorita, terceirizando a brassagem para a Boon e mantendo a marca como um blender autônomo. A Oude Geuze Vieille é produzida com lúpulos envelhecidos por apenas um a dois anos (em comparação com a média de 3-5 anos de outras cervejarias), o que lhe dá uma inusitada lupulagem, tanto no aroma quanto no amargor. O lúpulo nobre remete a gerânios, limão, pimenta-do-reino, ervas finas e queijo, destacando-se sobre um fundo frutado discreto, em camadas, que equilibra o caráter cítrico (limão, maracujá) e tropical (mamão, melão, tutti-frutti). O perfil animal (couro cru e caprílico) é discreto, e notam-se traços suaves de baunilha, biscoito, violetas e vinagre. O amargor se destaca sobre a acidez moderada e a doçura sutil, mas se trata de um amargor de lúpulo, com poucos taninos, resultando num corpo menos estruturado e num final menos perene. Uma gueuze para amantes de lúpulo. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Se quiséssemos comparar a intensidade das principais características do estilo em cada rótulo, veríamos que cada um tende mais para algumas do que para outras:


Assim, podemos reconhecer a Cantillon pela sua acidez gentil e pelo perfil bem tropical, enquanto a 3 Fonteinen mostra paladar intenso e traços cítricos e amadeirados. A Boon destaca-se pelos traços minerais oxidativos e pelos taninos estruturados; já a Girardin é bem ácida e acética, mas pouco tânica. Enquanto a Mort Subite é a mais adocicada de todas, a Oud Beersel exibe forte amargor e aroma lupulado. A princípio, pode parecer difícil para o degustador reconhecer toda essa diversidade de características das gueuzes. Para quem começou há pouco a apreciar lambics, todas podem parecer mais ou menos semelhantes num primeiro momento, enquanto não nos acostumamos a elas. Todas nos chocam com sua acidez marcante e seus aromas animais, variando apenas a intensidade do choque. Neste caso, a experiência realmente é o melhor dos mestres, mas espero que as informações que tenho oferecido nestas postagens possa ajudar a “guiar” seu aprendizado. Vale repetir o que eu já disse antes: lambics são cervejas que evoluem junto com o degustador.

Podemos agrupar as características de cada gueuze em torno de dois eixos que, juntos, compõem a sua “personalidade”: elas podem ser elegantes (frutadas, amadeiradas, florais), denotando toda a sofisticação de seus métodos produtivos, ou rústicas (animais, orgânicas, acéticas), lembrando bem suas origens rurais. Podem ser marcantes, demandando nossa atenção por meio de sua força bruta, ou podem encantar pela delicadeza e gentileza no paladar. Vejamos, pois:


Alguns leitores – em especial se não estiverem familiarizados com a forma como faço comparativos aqui neste blog – talvez estivessem aguardando que este comparativo incluísse um ranking classificando as gueuzes da “melhor” para a “pior”, talvez para saber qual delas vale mais a pena comprar para provar. Lambics são cervejas caras, de disponibilidade restrita, e nem todo mundo pode ser dar ao luxo de sair comprando a esmo para provar. Ocorre que um tal ranking seria irrelevante, já que “melhor” e “pior” são categorias que só fazem sentido diante de critérios subjetivos de gosto. Claro que, se você realmente quiser saber minhas preferências pessoais, pode conferir a pontuação que dei a cada cerveja nas fichas de avaliação, mas isso é banal e até um pouco frívolo. Mais interessante é tentarmos observar o que cada cerveja pode fazer por nós, para adequarmos nossa seleção às nossas expectativas de degustação e deixar que cada cerveja brilhe com sua luminosidade máxima, no seu momento mais adequado. Se você procura uma gueuze mais amigável, talvez valha a pena começar pela Oud Beersel ou pela Mort Subite; por outro lado, se está procurando uma experiência extrema, pode ter mais satisfação com a 3 Fonteinen. Tudo depende do que queremos a cada momento.


Também seria possível eleger um “paradigma” do estilo e hierarquizar as cervejas de acordo com o grau em que elas se aproximam desse ideal – como se faz em um campeonato cervejeiro, por exemplo. Evito fazer isso por um motivo: desde o início desta série de matérias, tenho insistido no encanto, no mistério e na diversidade das cervejas selvagens. Ao abdicar de estabelecer um “modelo” do que é uma boa gueuze, quero enfatizar essa diversidade intrínseca e incontrolável das lambics, sua variedade desinibida e sua resistência à padronização da era industrial. O produtor e o degustador de lambics não podem ser ater a modelos fixos: pelo contrário, o desafio da cerveja selvagem é justamente alcançar, em cada caso, a melhor expressão de um sabor essencialmente espontâneo e particular, cuja beleza está em sua variedade inapagável. Poucas cervejas talvez sejam mais adequadas do que uma boa gueuze para erguer um brinde à diversidade e à individualidade criativa!