sábado, 15 de dezembro de 2012

Degustação de barris: Brewdog e Jura


Degustações temáticas são sempre desafiadoras, instrutivas e divertidas. Nós, aficionados por cervejas, já estamos acostumados a diversas possibilidades: degustações verticais de várias safras de um mesmo rótulo, degustações horizontais de vários rótulos da mesma cervejaria, degustações horizontais de vários rótulos do mesmo estilo. As possibilidades são diversas. Convenhamos que já existe alguma coisa de neurótico nessas degustações mais “correntes”. Mas, no dia 03 de dezembro, tive a oportunidade de participar de um evento que, para mim, era novidade: uma degustação de barris.

Mas este barril de Bordeaux é uma iguaria!
Fonte: thepetwiki.com
Que diabos é isso? É sabido que uma das mais cultuadas tendências internacionais no mundo cervejeiro são as cervejas envelhecidas em barris de madeira. Algumas usam barris novos, especialmente confeccionados para maturar cerveja, outras usam barris já empregados na maturação de outras bebidas alcoólicas, como bourbon (um clássico da escola americana), vinho branco e tinto, uísque, Calvados, vinho do Porto, e por aí vamos. O mais comum é vermos barris de carvalho, mas os cervejeiros têm experimentado com outras madeiras menos tradicionais – e podemos dizer que o Brasil tem se destacado no emprego da umburana, uma das nossas madeiras mais típicas. Há todo um horizonte de possibilidades abertas.

A inventiva cervejaria escocesa Brewdog lançou, recentemente, dois rótulos envelhecidos em madeira: a Paradox Jura, uma potente imperial stout, e a Bitch Please, uma barley wine feita em parceria com os americanos da 3 Floyds. Essas duas cervejas têm uma coisa em comum: são maturadas em barris de carvalho usados anteriormente para envelhecer os uísques escoceses Jura. Ocorre que temos disponíveis, no mercado brasileiro, alguns rótulos do uísque Jura. A ideia, proposta e organizada por Paulo Almeida, do Empório Alto dos Pinheiros, e orientada por Fernando Gurgel, da Casa Flora (importadora dos uísques Jura) e por Gilberto Tarantino, da Tarantino Multibeer (importador das cervejas Brewdog), era uma degustação comparada dos uísques Jura e das Brewdog maturadas nos barris da mesma destilaria. O desafio? Tentar encontrar possíveis similaridades decorrentes do uso dos mesmos barris, e quem sabe arriscar quais rótulos do uísque Jura haviam sido maturados nos barris que depois foram usados pela Brewdog.

As respostas não foram definitivas. Alguns palpites aqui ou ali, mas nenhuma certeza. Como historiador de profissão, eu me habituei a pensar que, na verdade, as perguntas que fazemos e os caminhos pelos quais elas nos levam são mais importantes do que as respostas que tentamos dar a elas. Para mim, portanto, a degustação mostrou-se uma grande oportunidade para questionar algumas convicções correntes e pensar nas diversas possibilidades do uso da madeira e dos ainda pouco compreendidos intercâmbios entre cervejas e outras bebidas alcoólicas. Roberto Fonseca, do blog do B.O.B., também esteva lá e escreveu suas impressões sobre a degustação. Para não repetir o que ele já disse, quero compartilhar com meus leitores os questionamentos que a degustação suscitou em mim.

Os uísques da Ilha de Jura

Alguns single malts da destilaria Jura.
Fonte: beveragemedia.com
Começamos a noite por três uísques da destilaria Jura. Uísques, de maneira geral, têm algumas similaridades importantes com nossas amadas cervejas, pois são bebidas destiladas produzidas também à base de malte de cevada. Na fabricação de um uísque, um fermentado de cevada (similar a uma cerveja sem lúpulo) é destilado para dar origem a uma bebida que depois matura durante alguns anos em barris de madeira, apurando aromas e sabores. Existem uísques blendados, que levam outros grãos além da cevada para padronizar e suavizar o sabor, e os prestigiados single malts, que são produzidos a partir de uma única destilação, usando exclusivamente malte de cevada. Quando temos destilados de malte de cevada de várias destilarias, misturados para criar a bebida final, o produto é chamado simplesmente de pure malt (ou ainda vatted).

Pois bem, a Jura é uma destilaria fundada em 1810, que produz apenas uísques single malt. Na degustação, tivemos a oportunidade de provar três rótulos: o Jura 10 Anos Origin, o Jura 16 Anos Diurachs Own e o Jura Prophecy. Esse último é produzido usando 100% de maltes turfados, isto é, feitos pelo método escocês tradicional, em fornos alimentados com turfa (um tipo de solo de matéria vegetal), que dão um sabor defumado ao grão. Todos eles possuem algumas características comuns do terroir. Como a destilaria fica na pequena Ilha de Jura, a maresia impregna os barris de sal e iodo, características que se transferem aos uísques, dando-lhes um sólido paladar salgado (mais acentuado conforme cresce o tempo de envelhecimento).

Apesar das características comuns, as diferenças entre os rótulos são muito perceptíveis, mesmo para um leigo como eu. O Origin é o mais suave e acessível de todos: sensação gentil, com aroma evidente de mel, sabor de madeira suave, um toque abaunilhado que vai se desenvolvendo com o tempo e o álcool muito bem ocultado. O Diurachs Own, meu preferido da noite, mostra-se mais marcante e complexo: aromas intensos de baunilha, mel e especiarias, talvez até algo frutado, sabor mais acentuado de madeira e um paladar salgado e picante, com álcool mais presente. O Prophecy, para mim, foi uma absoluta surpresa: aroma e sabor pesadamente defumados, lembrando lenha queimada e bacon, e forte gosto salgado. Único, mas achei que o peso da defumação do malte turfado acabou encobrindo um pouco a elegante complexidade do 16 Anos.

As cervejas da Brewdog

A degustação temática prosseguiu com dois rótulos da Brewdog. Inicialmente, a proposta era degustar apenas a imperial stout Brewdog Paradox Jura. Por sugestão da equipe da Tarantino, abriu-se na sequência a barleywine Brewdog/3 Floyds Bitch Please. Ambas são maturadas em barris da destilaria de Jura. Vejamos um pouco sobre cada uma.

Fonte: 1001oel.com

Estilo: (barrel-aged) American imperial stout
Teor alcoólico: 15%
Aparência: líquido preto, grosso, totalmente opaco, com licorosidade visível e um creme de desempenho razoável se considerarmos seu alto teor alcoólico
Aromas: no nariz destacam-se primeiro os lúpulos, de perfil americano e frutado, remetendo a maracujá e manga. Depois aparecem as características do barril: algum coco, defumado suave, sabor de carvalho e uma baunilha que vai se tornando deliciosamente mais intensa à medida que a temperatura aumenta, ao lado de um aroma de cereja ao marrasquino. O torrado do malte não é tão intenso quanto se espera, mas café, queimado e caramelo estão lá. A longa maturação contribui com um sutil oxidado lembrando couro. Sobre isso tudo, predomina uma licorosidade intensa do álcool, lembrando melaço e gim.
Paladar: a doçura é uma pancada, dando à cerveja ares de licor, mas um forte salgado de maresia lhe dá equilíbrio, junto com o correto amargor final. Seu final é quente e picante, um pouco intenso demais.
Sensação na boca: o corpo é grosso, com textura licorosa e de xarope que chega a ser um pouco enjoativa com o tempo. Não é uma cerveja para se beber em quantidade. Uma certa adstringência trai a passagem pela madeira.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Paradox Jura faz parte de uma linha especial da Brewdog, composta por imperial stouts com passagem por barris de madeira oriundos de diferentes destilarias escocesas. A versão de 2012 foi feita com teor alcoólico mais elevado, chegando a impressionantes 15%, e foi maturada durante 9 meses nos barris da Jura. O rótulo apresenta um interessante texto falando sobre a história dos barris: feitos de carvalho americano, eles foram primeiramente usados para a fabricação de bourbon, depois adquiridos pela destilaria Jura, usados para envelhecer uísque e, finalmente, adquiridos pela Brewdog. Mas não se afirma quanto tempo o uísque Jura passou dentro do barril. A madeira é clara, mas não dominante: além de um leve defumado turfado, ela contribui com notas sólidas de baunilha que, combinadas à licorosidade e à sensação doce e xaroposa da cerveja, dão à bebida ares de sobremesa. O torrado do malte é claro, mas também secundário diante da forte doçura. Sua evolução na taça é notável: com o tempo, a baunilha e o frutado vão se abrindo e deixando-a elegante e bem-resolvida. É uma cerveja para se beber lentamente, que vai se tornando mais íntima a cada gole.

Fonte: brewtiful.com

Estilo: (barrel-aged) American barleywine
Teor alcoólico: 11.5%
Aparência: coloração marrom-alaranjada escura, com bastante opacidade e creme de baixa formação, mas boa persistência
Aromas: imensa complexidade de aromas. É uma das cervejas mais complexas que já degustei, com um monte de sensações sobrepostas, gerando até excesso de informação, já que nem todas elas se integram sempre em perfeita harmonia. Predominam as sensações do malte, com caramelo, castanhas e um intenso defumado de turfa. Os lúpulos, ecléticos, trazem um frutado norte-americano (manga) e tons herbais e picantes ingleses. O estágio de 8 meses pela madeira traz impressões de xarope, mel, plástico, couro, madeira queimada e iodo. Por fim, notas frutadas lembrando banana juntam-se a uma sensação salgada de tomates secos. Rústica, singularíssima.
Paladar: um pouco chapado demais para o estilo, com amargor predominante (sobretudo no final, de forma até um tanto agressiva) e uma singular sensação salgada, extremamente intensa.
Sensação na boca: tem corpo intenso e textura cremosa, com sensação de “substância”, que preenche a boca devido ao salgado.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Bitch Please é uma reinterpretação “escocesa” do estilo barleywine, tipicamente inglês. Isso se deve não apenas ao uso dos barris de scotch whisky, mas sobretudo devido ao uso abundante de malte turfado, que lhe dá uma intensa rusticidade e uma assertiva sensação defumada e salgada. Também leva toffee e biscoito doce na receita. Mas não deixe esses ingredientes “meigos” te enganarem: a Bitch Please é uma cerveja extremamente masculina, viril, até áspera e estúpida talvez, transbordando personalidade. Ela não te deixa indiferente, é como se ficasse “chamando para o pau” a cada novo gole. Claro que, com isso, ela perde elegância e sofisticação (o que mais me incomoda é que nem sempre as sensações se integram harmoniosamente, antes brigando umas com as outas ao longo da degustação), mas não creio que sua proposta seja ser “sofisticada”. Vide seu nome, bitch.

Qual é o barril? Três goles, maestro!

Afinal de contas, os barris usados pela Brewdog haviam sido usado antes para envelhecer qual (ou quais) dos uísques Jura? Algumas respostas foram sugeridas, insinuadas pelos vários participantes da degustação. Mas, repito, acredito que seja um dos casos em que fazer a pergunta é mais interessante do que tentar (temerariamente) respondê-la. Ora, nossos sentidos podem facilmente nos induzir ao erro nesse caso. É tentador estabelecer uma correlação entre o intenso abaunilhado da Paradox Jura e do Jura 16 Anos Diurachs Own, bem como entre a defumação da Bitch Please e do Jura Prophecy. Mas isso realmente significa que a Paradox foi parar nos barris do 16 Anos, e que os barris do Prophecy acabaram recebendo a Bitch Please?

Barris usados da destilaria de Jura. Será que 
algum desses foi parar na Brewdog?
Fonte: http://www.flickr.com/photos/50506404@N02
Mais devagar com o andor. Nesse caso, de fato o santo é de barro. Hoje em dia, com a moda das “barrel-aged beers”, há um certo marketing que superexplora a relação entre a cerveja e os barris. Isso ocorre, em parte, porque a influência da madeira na maturação da cerveja é complexa e diversificada, um pouco difícil de entender para o consumidor comum. Dizer que uma cerveja maturada em barris de uísque vai ter “gosto de uísque” é um atalho mais rápido, uma correlação analógica de fácil compreensão; porém, muito enganosa. Vejamos o porquê.

Em primeiro lugar, porque há diversas maneiras de se reutilizar um barril. Algumas cervejarias recebem os barris ainda encharcados da bebida que estava lá antes e o preenchem imediatamente com suas cervejas. Nesses casos, o sabor da bebida anterior realmente irá se integrar com mais força à cerveja. Mas isso significa que a madeira, em si, fica em segundo plano, pois a maturação da bebida anterior já extraiu a maior parte das substâncias químicas presentes na madeira. Para potencializar as trocas químicas entre a madeira e a cerveja, algumas cervejarias “renovam” o barril, raspando a parte interna e recompondo a tosta para que a madeira esteja mais “fresca”. Outras cervejarias, ainda, preferem limitar a interferência entre a madeira e a cerveja, optando por limpar e sanitizar o barril antes do uso, sem revitalizar a madeira.

Além disso, o sabor e aroma da madeira é apenas uma das características adicionadas à cerveja pela maturação em barris. Alguns barris possuem maior ocorrência de fungos e bactérias residentes que podem ocasionar características ácidas à cerveja. A madeira também acelera a oxigenação da cerveja, de modo que muitas vezes a transformação mais evidente não veio da madeira em si, mas da oxidação do líquido. Os resultados finais do processo serão totalmente diferentes conforme as características do barril e os métodos empregados pela cervejaria. Às vezes, a bebida que estava lá anteriormente tem influência pequena no resultado final.

É aí que podemos adotar um saudável ceticismo em relação ao alcance de uma “degustação de barris”. Para mim, a experiência foi mais interessante para mostrar um universo aberto de possíveis do que para chegar a uma única conclusão fechada. É verdade que uma característica comum a todas as bebidas da noite com certeza proveio dos barris: a sensação de salgado, que não é da madeira em si, mas da maresia da Ilha de Jura. Para além disso, resta o inefável e indefinível mistério. A baunilha da Paradox é a mesma baunilha do Jura 16 Anos? Sem dúvida, mas essa é uma característica do carvalho, e não exclusivamente do uísque: dois barris totalmente diferentes podem adicionar o mesmo aroma às duas bebidas, independentemente. Mas o defumado da Bitch Please é igualzinho ao do Jura Prophecy! Sim, sem dúvida; contudo, o rótulo da Brewdog informa claramente que a Bitch Please é produzida usando malte turfado como ingrediente – o mesmo malte turfado que dá o aroma defumado ao uísque. Portanto, a similaridade aí vem da matéria-prima, e não necessariamente do barril. Voltamos, portanto, à estaca zero. Mas tudo bem, porque a jornada já nos recompensou abundantemente!

Esclarecimento: a degustação foi gratuita, e O Cru e o Maltado participou a convite do Empório Alto dos Pinheiros.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Visita à fábrica da Wäls



Nosso anfitrião Tiago Carneiro, eu, minha 
querida Amanda e meu amigo Bruno na entrada da Wäls.
Fonte: acervo pessoal
Aproveitei o último feriadão do dia 15 de novembro para viajar a Belo Horizonte a convite de um grande amigo de infância que as vicissitudes da vida separaram de mim no colegial. Como, por coincidência, esse meu amigo faz cerveja em casa, achei que o reencontro seria a oportunidade perfeita para conhecermos a fábrica da Wäls – que foi eleita no início de 2012 como a melhor cervejaria da América do Sul no South Beer Cup e que, sem fazer muito mistério, é uma das minhas cervejarias nacionais preferidas.

A Wäls iniciou suas atividades em 1999, produzindo chopes para uma rede de bares e lanchonetes da família Carneiro, proprietária também da cervejaria. Por muitos anos, a Wäls produziu apenas o clássico dueto de American lagers, uma clara e uma escura. Uma primeira tentativa de produzir estilos mais ousados, ainda no início da década de 2000, não teve boa receptividade do público. Era preciso esperar o momento oportuno, aquele em que, para parafrasear Maquiavel, a inegável virtù dos Carneiro encontraria a fortuna de um mercado mais receptivo à variedade cervejeira. O momento chegou em 2007, quando a cervejaria se alçou em grande estilo ao mercado das cervejas artesanais com o lançamento da Wäls Dubbel. Na época, tratava-se de uma receita pioneira, a primeira do estilo no Brasil, e uma das poucas então produzidas em terras tupiniquins seguindo estilos belgas.

De lá para cá, o portfolio da cervejaria não parou de aumentar: os antigos chopes deram lugar a duas lagers de personalidade, a Wäls Bohemian Pilsen e a X-Wäls, hoje responsáveis pela maior parte das vendas da cervejaria. A linha belga se enriqueceu com a Wäls Trippel, a Wäls Quadruppel, a Wäls Brut (provavelmente a mais ambiciosa das produções da cervejaria) e, mais recentemente, a Wäls Witte e a Wäls 42. No início de 2012, surgiu ainda, em parceria com os cervejeiros caseiros da Dum, do Paraná, a muito aguardada Wäls Petroleum, que faturou medalha de ouro no South Beer Cup. E não parou por aí: a Wäls está preparando para o final de 2012 ou início de 2013 o lançamento de mais um rótulo, desta vez em colaboração com a Brooklyn Brewery, de Nova Iorque: a Saison de Caipira, que levou caldo de cana na composição e que será vendida simultaneamente no Brasil e nos EUA. De dois para dez rótulos, em 5 anos. E não param os experimentos para possíveis novas cervejas.

Os tanques de fermentação e maturação da Wäls.
Fonte: acervo pessoal
Babação de ovo à parte, vou contar o que pude conferir na visita à fábrica. Pois bem: no dia 17 de novembro, pleno sabadão de feriado prolongado, pela manhã (o que, para um ser notívago como eu, equivale a dizer “de madrugada”), partimos meu amigo e eu, e mais nossas queridíssimas cônjuges, em busca das instalações da Wäls, num bairro industrial próximo ao Campus Pampulha da UFMG. Achar a fábrica sem GPS não foi a tarefa mais fácil do mundo, já que ela não tem letreiro nenhuma na fachada; mas, uma vez que o portão se abriu e fomos recebidos com incrível hospitalidade por Tiago Carneiro, tranquilizamo-nos e aproveitamos a jornada.

Tiago, anfitrião à moda mineira, foi nos guiando por todas as partes da fábrica, desde os setores produtivos até os espaços onde a Wäls está projetando novas instalações para receber seu sedento público. A cervejaria conta com um equipamento de brassagem com capacidade para 20 hectolitros (2.000 litros) e 17 tanques de fermentação e maturação com a mesma capacidade – além, é claro, do maquinário para envase, rotulagem e pasteurização. Isso resulta em uma produção média de 35 mil litros por mês, somando todos os rótulos.

A taberna da Wäls, quase pronta!
Fonte: acervo pessoa
A surpresa ficou por conta do que vimos no piso inferior. A Wäls está reformando o prédio e montando uma adega para receber o público num ambiente rústico, lembrando uma taberna. O plano é abrir a cervejaria aos sábados para servir chope Wäls e apetitosos quitutes no almoço, como joelho de porco. O ambiente deve ficar pronto dentro de aproximadamente três meses. Vale lembrar que, além desse espaço a ser inaugurado futuramente, a Wäls serve todo o seu portfólio de chopes em dois bares da marca em Belo Horizonte: o Empório Serafina (que eu pude conhecer e está bem legal) e o Stadt Jever. A taberna da fábrica virá para se somar a esses dois.

Ao lado desse novo espaço, pudemos conferir a cave onde é feita a maturação da Wäls Brut. Num ambiente escuro, com temperatura e umidade constantes (devido ao fato de ser subterrâneo), descansam 4 mil garrafas da Brut em pupitres. Elas se encontram em diversos estágios de sua longa maturação de 1 ano com leveduras de champagne – algumas recém-engarrafadas, outras próximas do momento fatídico da expelição e da finalização do processo, e outras ainda maturando sobre leveduras há muito mais de um ano, verdadeiras Wäls Brut millésimés guardadas como tesouro pelos irmãos Carneiro.

A cave onde maturam as Wäls Brut nos pupitres. 
Durmam com os anjos; vemos vocês daqui a 12 meses.
Fonte: acervo pessoa
Tivemos a oportunidade de degustar e revisitar a Wäls Brut durante a visita. Quem acompanha o blog desde o início sabe que esta é uma cerveja da qual já falamos aqui. Desde seu lançamento até o presente, seu processo de produção sofreu algumas alterações, a mais importante das quais foi a ampliação do tempo de maturação sobre leveduras de 9 para 12 meses. Comparando mentalmente a nova Brut com aquela que eu já havia degustado antes, achei incrível a diferença que esses 3 meses a mais fizeram.

Não era a ocasião para uma avaliação detalhada da cerveja, mas foi fácil perceber que ela ficou decididamente mais ácida, ainda mais seca, e com aromas mais pronunciados da levedura de champagne, trazendo algo de notas animais lembrando couro e toques caprílicos e amendoados perceptíveis (chega a lembrar ligeiramente uma lambic, mas sem acidez lática e acética) ao lado dos aromas florais, frutados e de especiarias do estilo, estes menos acentuados do que antes. Se antes ela ficava mais próxima do perfil de outras bières brut, agora a Wäls definitivamente está fazendo uma cerveja de personalidade única, diferente de tudo o que há no mercado. Para quem a provou na época do seu lançamento, realmente vale a pena uma nova degustação. Acho até que uma versão millésimé, com 18 ou 24 meses de maturação sobre leveduras, talvez não seja uma má ideia para um futuro mais ou menos próximo.

Seis caixinhas de surpresas!
Fonte: acervo pessoal
Outra surpresa da visita ficou por conta desses seis barris que você vê na imagem ao lado. A Wäls adquiriu recentemente alguns barris de carvalho antes usados para maturar uísques escoceses single malt, e começou a fazer alguns experimentos com esses barris. Tiago Carneiro aposta que as cervejas envelhecidas em barris possam ser um horizonte futuro para a Wäls, e os barris que pudemos degustar trazem prospectos promissores. Provamos três experimentos da cervejaria: uma Wäls Quadruppel envelhecida em barril por quase um ano, uma Wäls Petroleum que está no barril por mais ou menos 3 meses, e um blend de várias ales mais fracas com adição de avelãs, que foi maturado em carvalho.

O blend com avelãs acabou sendo atropelado pela madeira e pela oxidação: talvez uma receita-base mais potente possa aguentar melhor o tranco. A Petroleum do barril mantinha ainda seu forte perfil de torrado, mas tinha se transmutado completamente nos três meses de madeira: adquiriu uma acidez lática forte, que a desequilibrou um pouco, e desenvolveu um intenso aroma lembrando acetona, que para mim remeteu à Duchesse de Bourgogne, uma Flanders red ale que adquire as mesmas características depois de maturar em carvalho. O maior destaque ficou por conta da Quadruppel envelhecida: ela mantinha ainda a forte doçura caramelada e frutada da cerveja-base, mas havia sido enriquecida por características intensas de oxidação e guarda: muito vinho do Porto e ameixas no aroma, madeira, algo de molho shoyu ou molho inglês e acético. No paladar, tornou-se solidamente salgada e acética. Eu a tomei com gosto assim mesmo, pura, mas entendo que é uma experiência radical, para pequenas doses. Segundo Tiago, estuda-se a possibilidade de utilizá-la como parte de um blend, para atenuar suas sensações mais extremas sem perder sua complexidade. Pelo menos para este fã de cervejas envelhecidas, promete!

Provando a Saison de Caipira direto do tanque.
Fonte: acervo pessoal
Ao final, Tiago nos apresentou uma última surpresa antes de irmos. Ocorre que o mais novo projeto da Wäls havia sido brassado exatamente uma semana antes da nossa visita. Trata-se da Saison de Caipira, produzida em parceria com a Brooklyn Brewery. A cerveja leva caldo de cana na composição e será, portanto, um fermentado misto de grãos e cana-de-açúcar. Inclusive, enquanto estávamos lá, Tiago estava transmitindo informações sobre o andamento da cerveja para Garret Oliver, mestre-cervejeiro da Brooklyn e corresponsável pela produção. A fermentação estava sendo finalizada naqueles dias, e nós pudemos prová-la direto “da teta da vaca”, ainda sem maturação. Foi possível sentir um aroma esterificado bem característico do fermento belga da Brooklyn, que lembra algo entre tutti-frutti e dama-da-noite, ao lado de um aroma inconfundível de caldo de cana. A atenuação parece ter ido bem, de modo que ela estava menos doce do que eu esperava. Aguardo ansioso pelo lançamento, entre dezembro e janeiro.

Ficou com vontade de conhecer também a fábrica da Wäls? A cervejaria tem um programa de recepção de grupos de visitantes: basta se cadastrar no site e agendar a visita!

Esclarecimento: todas as degustações realizadas durante a visita foram cortesia do fabricante.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: As cervejas do museu da Cantillon


Na última matéria deste blog, falamos um pouco sobre a visita ao extraordinário Museu Bruxelense da Gueuze, que se localiza no interior da fábrica da cervejaria Cantillon. O museu nos dá a oportunidade tanto de conhecer os métodos tradicionais de produção de lambics (quase abandonados ao longo do século XX pela maioria das cervejarias) quanto de provar, em um ambiente alegre e autêntico, algumas das verdadeiras obras-primas criadas pela Cantillon, servidas direto dos barris ou de garrafas ainda sem rótulos. Pode-se dizer inclusive que a degustação é imprescindível para entendermos toda a proposta do museu. A “excentricidade” das instalações (se comparadas às assépticas fábricas de ales e lagers) é o reflexo perfeito da forte personalidade das cervejas. Não à toa, o tíquete inclui duas porções para degustar, à escolha do visitante – uma à entrada, outra ao final.

Quando fiz a visita, cinco rótulos eram oferecidos aos visitantes do museu: Cantillon Lambic (uma lambic pura e jovem, com um ano de maturação), Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio (uma gueuze tradicional, sem adoçantes), Cantillon Faro (uma versão adoçada da gueuze), Cantillon Kriek 100% Lambic Bio (com adição de cerejas) e Cantillon Rosé de Gambrinus (com adição de framboesas). Três lambics sem frutas, e duas com frutas, portanto. Apenas uma dela, a Faro, é adoçada. Todas elas são produzidas integralmente a partir de cervejas de fermentação espontânea, sem adição ou blendagem com ales.

As lambics sem frutas

A sugestão é que se comece a visita com a lambic jovem (pura, servida de uma jarra de cerâmica) para depois provar a gueuze e entender a diferença entre os dois estilos. Enquanto a lambic jovem provém de um único barril e tem apenas um ano de maturação, a gueuze é o resultado de uma mistura de lambics de diferentes barris, com diferentes estágios de maturação.

Fonte:
http://beervana.blogspot.com.br/2011/11/cantillon.html

Estilo: lambic – unblended
Teor alcoólico: 5%
Aparência: cor alaranjada profunda, com certa turbidez. Não forma absolutamente nenhuma espuma, apenas algumas bolhas indicando a viscosidade do líquido.
Aromas: mostra equilíbrio entre características doces de malte e de maturação e os traços de fermentação espontânea. O malte ainda é evidente: uma certa doçura de mel e xarope se mistura a uma sensação doce lembrando plástico, indicando oxidação. Em contraste, elementos da fermentação espontânea já se mostram claramente com notas animais, de couro, uma sensação acética sólida e o aroma terroso característico do terroir da Cantillon.
Paladar: doce, amargo e ácido apresentam-se em equilíbrio. A sensação de doçura é bem mais intensa que na gueuze, enquanto a acidez se destaca no começo e depois vai se atenuando. A surpresa fica por conta de um amargor tânico destacado, que se desenvolve no final. Terá resultado de um barril em especial?
Sensação na boca: única, diferente de qualquer outra bebida que eu já tenha provado. O corpo é leve, mas sua textura é lisa e um tanto oleosa, e ela tem uma forte, mas elegante sensação adstringente de taninos.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A lambic simples, sem blend, da Cantillon é servida diretamente de jarros da cerâmica, à temperatura ambiente e sem nenhuma carbonatação. Sua rusticidade reflete o ambiente genuinamente despojado, mas um tanto sacralizado, da cervejaria. A doçura residual é perceptível, bem mais que em uma gueuze, com os evidentes taninos dos lúpulos e da madeira criando um equilíbrio diferente com uma acidez ainda suave. A absoluta falta de carbonatação, aliada à forte adstringência tânica, cria uma sensação muito curiosa, diferente de qualquer outra cerveja que eu já tenha tomado.

Fonte:
http://www.flickr.com/photos/brostad

Estilo: lambic – gueuze
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração amarela queimada, com alta turbidez e um ótimo creme abundante e persistente, deixando marcas.
Aromas: maduros, com traços animais, terrosos e frutados das leveduras selvagens que se misturam a um elegante perfil de envelhecimento. Animal, terroso e amêndoas cruas predominam, com sensações secundárias de mofo, madeira seca (dos barris?), pêras verdes (dando um inusitado frescor frutado) e notas de mel ou xarope. O aroma de malte quase desapareceu, mas ainda há algo lembrando aveia, bem seco, indicando o trigo.
Paladar: decididamente seco e ácido, mas não de forma agressiva. Amargor e doçura também se fazem presentes em segundo plano, equilibrando-se mutuamente. Saliva a boca.
Sensação na boca: como deve ser uma boa gueuze – corpo bem seco e leve, com uma perceptível adstringência de taninos equilibrada com a acidez e o amargor. A maturação mais longa arredonda-lhe os taninos e seca-lhe o corpo, se compararmos com a lambic pura, tornando-a mais elegante.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A gueuze da Cantillon é feita a partir de um blend de lambics com 1, 2 e 3 anos de maturação em barris de carvalho. Possui paladar seco e adstringente na medida, com acidez marcante, salivando a boca. Grande amplitude aromática, em que as notas animais, terrosas e frutadas da cepa nativa de leveduras selvagens se mesclam admiravelmente a um perfil de maturidade elegante e bem integrado. Servida na própria cervejaria, mostrou-se ainda mais envolvente após a visita. Marcante sem exageros. Elegante, precisa, impecável.


A comparação entre a lambic jovem e a gueuze é muito instrutiva e mostra o trabalho que o produtor de lambics precisa fazer para aprimorar seu produto. A diferença mais marcante é a doçura residual, muito mais elevada na lambic pura. Isso é normal, pois as leveduras selvagens demoram alguns anos para consumir todos os açúcares da cerveja. Além da doçura, a versão jovem mostra taninos mais amargos, atenuando a percepção da acidez. Por não ser carbonatada, a jovem ainda tem uma sensação radicalmente diferente na boca. Já a gueuze mostra acidez mais limpa e consistente, doçura já bem mais suave (apenas o suficiente para equilibrar a acidez) e os taninos amaciados pelo tempo e pelo blend. Além disso, a amplitude aromática da gueuze é mais impressionante, sobretudo no perfil de fermentação espontânea e de oxidação. A lambic jovem é uma experiência única e imperdível, mostrando acidez mais equilibrada e fácil de “encarar” para quem não está acostumado ao estilo, enquanto a gueuze, mais desafiadora ao paladar, mostra toda a elegância de uma lambic bem maturada.

As lambics com frutas

A degustação ao final da visita ainda me permitiu comparar as características trazidas à cerveja pelas duas frutas mais frequentemente usadas como aditivos na produção de lambics: cerejas (na Cantillon Kriek 100% Lambic Bio) e framboesas (na Cantillon Rosé de Gambrinus). A Cantillon não emprega suco nem aromatizante de frutas, usando apenas frutas frescas. Ambos os rótulos são fabricados a partir de blends de lambics de diferentes idades, misturadas a uma quantidade de fruta equivalente a 200 g por litro do produto final. Normalmente, adicionam-se 300 g da fruta a cada litro de uma lambic de um ano e meio de idade, adicionando-se depois mais lambic jovem para ocasionar a refermentação na garrafa.

Fonte: calgarybeerdrinkers.wordpress.com

Estilo: fruit lambic (cereja)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração vermelha-rosada intensa e profunda, totalmente opaca, com creme rosado de curta duração.
Aromas: bebida bem jovem e fresca, os aromas da fruta mostram-se bastante vívidos, com cerejas frescas e frutas vermelhas, mas sem aquela sensação de bala de cereja de outros rótulos adoçados. Notas de amêndoas cruas e marzipã, com sensação mineral, também são intensas e quebram a doçura da fruta com elegância. Animal e madeira denunciam a fermentação espontânea, mas de forma mais discreta que nas lambics sem frutas. Por fim, seu toque mais característico ficou por conta de um vívido sabor de canela ao final do gole – talvez uma mistura do sabor da fruta com aquele terroso típico das Cantillon. Excelente, surpreendente.
Paladar: ela começa intensamente ácida, implacável, e depois fecha o gole com um equilíbrio perfeito entre a acidez residual, uma doçura de especiarias e um amargor tânico gentil. Mais um ponto para ela.
Sensação na boca: o corpo é leve e a textura é crocante, seca, com adstringência de taninos clara mas não agressiva.

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A kriek “regular” da Cantillon é feita com adição de cerejas azedas inteiras a uma lambic de um ano e meio de idade, misturando-se depois um terço de lambic jovem para potencializar a fermentação secundária. Frutas, maturação e especiarias se complementam em perfeito equilíbrio, com os aromas de fermentação espontânea mais discretos. Tem paladar com personalidade, bem ácido no início, conduzindo a um final equilibrado entre acidez, amargor de taninos e doçura. Impecável, é difícil achar defeitos nela. Para mim, foi o ponto alto das degustações da visita – e devo dizer que, até hoje, nenhuma fruit lambic me encantou mais que ela.

Fonte: sheltonbrothers.info

Estilo: fruit lambic (framboesa)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: sedutora coloração vermelha escura, com nuances arroxeadas, mais intensa que a kriek. Tem alguma transparência e um creme de pouca duração.
Aromas: as características da fruta (aromas de framboesa, de frutas vermelhas e até de cereja, embora ela não leve cerejas na composição), presentes mas não predominantes,  convivem com traços rústicos da fermentação espontânea (terroso marcante, animal, apimentado, vinagre e mostarda). Um certo aroma amendoado complementa o quadro. Bem mais rústica que a kriek, com as características de lambic já se sobressaindo às da fruta.
Paladar: a acidez predomina do início ao fim, com uma suave doçura de fruta, lembrando geleia, que chega ao final para lhe dar equilíbrio. Há pouco amargor.
Sensação na boca: tem corpo leve, com textura crocante e terrosa. Apesar de razoavelmente seca, tem poucos taninos se comparada à Kriek, o que a torna um pouco mais ingênua e fácil de beber, contrastando bem com a rusticidade do aroma. Para uma lambic tradicional, não adoçada, tem paladar acessível e amigável.

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A Rosé de Gambrinus é uma cerveja excepcional por ser, ao mesmo tempo, uma lambic rústica, tradicional e sem concessões, mas também fácil de beber e acessível (para o padrão da Cantillon, pelo menos). Tem intensas características de fermentação espontânea (acético, lático, animal, terroso), mas não mostra taninos tão firmes e consistentes quanto a Kriek, o que lhe dá uma sensação mais leve na boca.


Uma vez que ambas são feitas a partir dos mesmíssimos procedimentos (blends com idades equivalentes e a mesma quantidade de frutas), as grandes diferenças entre essas duas cervejas evidenciam bem a personalidade de cada fruta. O paladar da framboesa (acidez, doçura) parece mais intenso, enquanto as cerejas têm mais taninos, resultando em uma cerveja mais seca, tânica e estruturada. Também as cerejas parecem criar uma interessante harmonia com os tons terrosos das leveduras, resultando em uma deliciosa sensação de especiarias. O resultado é que a Rosé de Gambrinus parece mais alegre e fácil de beber, enquanto a Kriek parece mais elegante e sóbria.

Infelizmente, eu tinha horário para pegar um trem e não tive tempo para provar todos os rótulos. Ficou faltando a Faro, uma lambic sem frutas adoçada com caramelo e açúcar cândi. Como é o estilo que menos me agrada entre os 5 oferecidos, teve de ficar para uma próxima. Não importa – está aí um belo motivo para voltar à fábrica da Cantillon numa outra oportunidade!

sábado, 3 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: o Museu Bruxelense da Gueuze

Fachada da Cantillon, com a porta do 
museu no canto esquerdo.
Fonte: acervo pessoal

A cidade de Bruxelas é destino quase obrigatório de todo turista cervejeiro por conta de ser a capital e maior cidade da Bélgica, espécie de nirvana para muitos apreciadores do nobre fermentado de cevada – entre os quais, admito, eu me incluo. A escola cervejeira belga produz uma miríade de estilos cervejeiros (a própria palavra “estilo” parece fora de lugar diante de tanta diversidade), desde as cervejas trapistas produzidas no silêncio reverente das abadias até as saisons mais rústicas e camponesas. Todos eles podem ser encontrados em Bruxelas, para o deleite do cervoturista sedento.

Mas o que nem todo visitante sabe é que existe uma família de cervejas exclusiva da região do vale do rio Senne, onde está encravada a cidade de Bruxelas. Trata-se das lambics, as apaixonantes cervejas de fermentação espontânea da escola belga. Para alguns iniciados ao mundo das cervejas especiais, a palavra “lambic” parece designar qualquer cerveja com fermentação espontânea, sem adição de leveduras. No entanto, o termo Lembeek também corresponde ao nome de um pequeno afluente do rio Senne e de uma vila na região de Bruxelas, sendo uma denominação de origem protegida. Isso significa que apenas as cervejas de fermentação espontânea produzidas naquela região podem reivindicar legitimamente a denominação “lambics”, o que as torna talvez as cervejas mais tradicionais da cosmopolita Bruxelas.

E não é que a cidade tem um museu inteiramente dedicado a elas? Trata-se do MuseuBruxelense da Gueuze (Musée Bruxellois de la Gueuze), que nada mais é do que a denominação da instituição museológica mantida por um dos mais tradicionais produtores de lambics: a cervejaria Cantillon. Um museu criado e mantido pela Cantillon, então? Se você está pensando em um salão com vitrines, equipamentos antigos e fora de uso e legendas explicativas, está enganado. O Museu Bruxelense da Gueuze nada mais é do que a própria fábrica da Cantillon.

Nova Museologia, ecomuseus e museus comunitários

Mas desde quando uma fábrica pode ser um museu? Museu não é lugar de guardar coisas antigas? Na verdade, o Museu Bruxelense da Gueuze pode ser considerado um exemplo daquilo que, em Museologia, chamamos muitas vezes de “ecomuseu”. Mas que diabos é isso? Será que é um museu ecológico, uma espécie de viveiro com plantas e bichinhos e espécies em risco de extinção? Não é nada disso. Vejamos.

Os ecomuseus fizeram parte de um grande movimento de renovação na Museologia mundial ocorrido entre os anos 1960 e 1970. A contundente crítica dos intelectuais da época às instituições e modos de pensar tradicionais não poderia deixar de tomar como alvo os museus, considerados então espaços elitistas de celebração da história oficial dos “grandes homens” – um modo mais pomposo de dizer que muitos museus não passavam de lugares conservadores ocupados de babar ovo para os “poderosos” de antanho. Onde estavam o povo comum e a vida das pessoas de verdade?

Os ecomuseus começaram a chegar também 
ao Brasil no século XXI. Acima, a renda de bilros 
de Florianópolis no Museu do 
Folclore de São José dos Campos.
Fonte: http://www.ovale.com.br
A Nova Museologia das décadas de 1960 e 1970 desenvolveu-se em torno de uma seção da UNESCO chamada ICOFOM (Comitê Internacional para a Museologia) e propôs novos tipos de museus que, ao invés de celebrar antepassados ilustres em vitrines empoeiradas, conseguisse representar as tradições seculares e a cultura viva do povo comum. O termo “ecomuseu” acabou se tornando uma espécie de denominação genérica para indicar esses novos experimentos museológicos. Apesar de sua variedade, tinham alguns princípios comuns: em primeiro lugar, compartilhavam a ideia de que a cultura de um povo era algo vivido no dia a dia, e não algo que pudesse ser imobilizado em uma vitrine. Hábitos, celebrações, formas de trabalho, alimentação e lazer – nada disso cabe em prateleiras. Em segundo lugar, todos entendiam que essa cultura não podia ser tirada do seu ambiente natural e cultural (daí o nome ecomuseu): era preciso levar as pessoas para conhecê-la nos locais efetivamente ocupados pelas comunidades. Em vez de prédios pomposos, os ecomuseus se instalaram em aldeias, centros comunitários, onde quer que as tradições culturais continuem sendo vivenciadas cotidianamente pelas pessoas. Patrimônio imaterial e comunidade residente, tais eram as linhas de força do projeto neomuseológico.

O resgate de uma tradição bruxelense

A cervejaria Cantillon foi fundada em 1900, mas o Museu Bruxelense da Gueuze só foi aberto ao público no ano de 1978. Seu objetivo é salvaguardar uma das tradições populares mais enraizadas na região da Bélgica: a produção e o consumo de lambics segundo técnicas seculares. Ao longo dos anos 1960, a produção tradicional de lambics vinha sendo seriamente ameaçada pela concentração de capitais na indústria cervejeira, que tirava de cena as cervejarias familiares em prol de grandes conglomerados industriais com procedimentos padronizados de produção, que estavam adaptando as particularíssimas lambics ao gosto de consumidores globalizados. Como resultado, as lambics que não desapareceram estavam se convertendo gradualmente em versões atenuadas e adoçadas do estilo (como as que, ainda hoje, dominam o mercado belga).

A Belle-Vue, da AB-InBev, é emblemática do 
processo de adaptação industrial das gueuzes.
Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com
Esse processo ocorreu de forma mais ou menos intensa com todos os estilos cervejeiros no século XX. Mas no caso das heterodoxas lambics, havia agravantes. Ora, a maioria esmagadora das cervejas consumidas em todo o mundo é produzida pela adição de alguma espécie de levedura ao mosto (um preparado líquido à base de água, grãos e lúpulo), seguindo-se uma fermentação realizada por essas leveduras para a produção de álcool. As lambics não recebem adição deliberada de leveduras. Em vez disso, o mosto é deixado fermentar naturalmente pela ação de bactérias e leveduras presentes na atmosfera. Em bom português, a lambic é uma cerveja que o produtor “deixa estragar”, e daí seu gosto desafiadoramente azedo. Para paladares acostumados a produtos pasteurizados e ao rígido controle sanitário da era industrial, as lambics são um tapa na cara. E, como são fermentadas espontaneamente, o produtor precisa abdicar desapegadamente de uma parte importante do controle sobre o processo, o que parece insano diante dos padrões de padronização da produção industrial.

As lambics bruxelenses dependiam de um delicado entrelaçamento de fatores: uma sensibilidade gastronômica pré-industrial, um hábito popular típico de uma região, um grau limitado de concentração de capitais e uma estrutura familiar tradicional comandando a produção. Tudo isso estava ameaçado de extinção na segunda metade do século XX. A Nova Museologia se apresentou então como recurso promissor para preservar um produto regional, unindo em torno dele seus produtores e seus consumidores. Daí nasceu o Museu Bruxelense da Gueuze, com o objetivo de resgatar e difundir uma tradição regional e, ao mesmo tempo, mantê-la viva. Para isso, nada melhor do que um ecomuseu.

A visita ao museu

O nome “Museu Bruxelense da Gueuze” faz referência ostensiva a um dos subestilos de cerveja dentro da família das lambics. As gueuzes são cervejas produzidas a partir do blend de lambics puras de diferentes estágios de maturação (cervejas de um, dois e três anos de idade, no caso da Cantillon), que são envasadas para ocasionar uma segunda fermentação na garrafa. Contudo, a Cantillon produz outros estilos de lambics, que também estão igualmente representados em seu museu, pelo que ele poderia, tranquilamente, ser chamado de Museu Bruxelense da Lambic.

O simpático bar e espaço de degustação 
à entrada do museu.
Fonte: acervo pessoal
O museu não está no centro turístico de Bruxelas, mas chega-se a ele com facilidade depois de uma caminhada de dez minutos a partir da estação central de trens (Gare du Midi). O primeiro choque para o visitante começa na entrada. O museu está instalado no mesmo prédio da fábrica da Cantillon, sendo que não existe uma entrada específica para visitantes, e as portas da cervejaria ficam fechadas durante boa parte do dia. Isso significa que, quando finalmente encontramos o endereço, podemos ter a impressão de que o museu está fechado e que perdemos a viagem. Basta, contudo, abrir a pesada porta para ser recebido no interior (exceto, é claro, se for domingo, dia em que a cervejaria não abre mesmo).

Para o amante de lambics, esse primeiro momento é uma espécie de epifania. Assim que entramos no interior escuro do prédio, os aromas animais e de couro das leveduras selvagens saturam deliciosamente nossas narinas. Parece que estamos dentro de um copo de lambic. À entrada, paga-se uma taxa de 6 euros pela visita. Na verdade, o preço do ingresso é quase simbólico, uma vez que inclui duas degustações incluídas e um livreto explicativo, essencial para se aproveitar a visita. À entrada, normalmente se dá ao recém-chegado uma pequena porção da lambic jovem da cervejaria, servida de um jarro de cerâmica à temperatura ambiente (como nas telas de Bruegel que já comentamos aqui). Ao final da visita, uma pequena porção da gueuze exemplifica na prática a diferença entre os estilos.

É possível sentar-se e apreciar a degustação inicial em um pequeno bar montado à entrada da cervejaria, com antigos barris de madeira servindo como mesas. Em pouco tempo, um dos funcionários da cervejaria apresenta-se para conduzir a visitação para pequenos grupos, em francês e em inglês. Minha visita foi conduzida por Louis-Phillipe, cujo entusiasmo pelas lambics que produzia era evidente em sua fala. Há uma pequena explicação sobre as lambics na cozinha de brassagem da cervejaria, em meio ao equipamento da Cantillon, e o visitante é deixado à vontade para percorrer as instalações por conta própria, sozinho ou em pequenos grupos. Eu aproveitei a oportunidade para também bater um papo com o produtor e presenteá-lo com uma cerveja brasileira. Sabendo que a madeira é um dos elementos essenciais da produção de lambics, resolvi dar-lhe uma cerveja que representasse uma de nossas madeiras típicas, pelo que escolhi a ótima 3 Lobos Bravo Imperial Porter, maturada em barris de umburana.

Lambics a perder de vista descansando 
nos barris da Cantillon!
Fonte: acervo pessoal
Podem-se visitar todas as instalações da cervejaria, incluindo o equipamento de brassagem, as câmaras de fermentação aberta e de maturação em barris de carvalho, a linha de envase e a cave onde se faz a refermentação e a maturação em garrafa. Três coisas me causaram uma forte impressão durante a visita. Em primeiro lugar, ver quão pequena é a fábrica. A Cantillon é uma referência na produção de lambics. Suas cervejas são desejadas e elogiadas mundialmente pelos apreciadores. Apesar disso tudo, a fábrica parece espantosamente pequena, mesmo para os padrões microcervejeiros. Produção em pequena escala, à qual se somam os longos tempos de maturação necessários para uma boa lambic. As cervejas da Cantillon demoram pelo menos 2 anos e meio para ficarem prontas, o que obviamente compromete boa parte do espaço livre. No interior da câmara de maturação, uma placa de madeira estampa um lema que não poderia ser mais apropriado: “Le temps ne respecte pas ce qui se fait sans lui.” Ou seja: “o tempo não respeita aquilo que é feito sem ele.” Na verdade, é a falta de espaço para maturar a cerveja durante todo esse tempo o que impede o aumento na produção da Cantillon.

Esta geringonça mirabolante é a tina de mostura 
do século XIX, ainda em uso na Cantillon.
Fonte: acervo pessoal
O segundo fator que impressiona na visita é ver a antiguidade do equipamento. Segundo nos explicou Louis-Phillipe, quase todo o maquinário em uso ainda hoje é original da época de abertura da fábrica (a única exceção parece ser a linha de envase). Isso significa que a Cantillon produz suas maravilhosas cervejas usando máquinas do século XIX! Tudo o que se vê lá dentro é um verdadeiro patrimônio histórico plenamente funcional – exatamente o que se espera de um ecomuseu. Por fim, o fator talvez mais chocante da cervejaria são as suas condições sanitárias. Nas produtoras de ales e lagers, acostumamo-nos a ver sempre condições sanitárias quase comparáveis às de um hospital, tamanha a preocupação com possíveis contaminações. Ocorre que “contaminações” são a alma de qualquer lambic, pois a fermentação espontânea depende intimamente dos microorganismos que habitam a cervejaria. Apesar de os equipamentos serem sanitizados regularmente, o prédio em si não parece ser higienizado jamais: a cada canto, em cada buraco e viga do madeiramento, deparamo-nos com exuberantes teias de aranha a nos lembrar por que as lambics são chamadas de cervejas “selvagens”.

Grossas teias de aranha se espalham por todos os cantos, 
brechas e frestas do edifício. E a gente ainda 
bebe as cervejas com prazer mesmo assim!
Fonte: acervo pessoal
A antiguidade do maquinário, a paixão dos funcionários, a reverência ao tempo, o verdadeiro ecossistema que existe dentro do prédio com seus fungos, insetos e bactérias convivendo com os homens, tudo isso dá à fábrica da Cantillon um ar ao mesmo tempo genuinamente despojado (nada ali parece montado com propósitos puramente estéticos) e também extremamente sacralizado. Ao observar a rústica câmara de resfriamento no forro da fábrica, no ponto mais alto do edifício, onde o mosto recebe do ar as leveduras selvagens, não pude evitar sentimento semelhante ao de estar em frente a um altar. No lugar onde um verdadeiro milagre acontece a cada nova brassagem. Um milagre reiterado desde um longínquo passado pré-industrial, e cuidadosamente preservado até hoje apesar de sua vulnerabilidade.

Cultura tradicional e preservação

Ao final da visita, serve-se mais uma taça, desta vez da gueuze. Se, no início, bebemos a lambic jovem – crua, não lapidada –, ao apreciar a gueuze, aprendemos a reverenciar a importância de toda aquela estrutura produtiva e respeitar o que se faz tendo o tempo como aliado. Perdoem-me os católicos pela heresia, mas, para quem é apaixonado pelas lambics, é quase como comungar o mistério do sangue de Cristo na eucaristia. Depois, é quase inevitável que nos estendamos nas simpáticas mesinhas do bar para continuar matutando sobre a maravilha da fermentação selvagem, embalados por mais algumas taças de boa lambic (pagas à parte depois da visita a preços bastante camaradas).

Ao final, eu me peguei pensando, como profissional de museus, o quanto o Museu Bruxelense da Gueuze, apesar de seu insuspeitado formato, cumpre exatamente a promessa de um bom ecomuseu. Temos a oportunidade de observar um patrimônio histórico ainda em uso por pessoas apaixonadas que vivem daquilo e, literalmente, respiram o ar da lambic. Vemos com clareza a distância histórica que separa essa experiência do “nosso” mundo industrial contemporâneo, e compreendemos que o presente ainda pode ser feito a partir de muitos passados acumulados. Melhor ainda, podemos comungar, durante algum tempo, o mistério dessa tradição quase abandonada e aprender a reverenciar seus encantos. Unir praticantes e entusiastas em torno de uma deliciosa tradição – não seria esse o objetivo de qualquer boa instituição cultural?

No próximo post, iremos direto ao cálice sagrado: falarei um pouco sobre as cervejas que podemos apreciar no Museu Bruxelense da Gueuze, só para deixar meus leitores com um pouco mais de água na boca. Não perca!