quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: As cervejas do museu da Cantillon


Na última matéria deste blog, falamos um pouco sobre a visita ao extraordinário Museu Bruxelense da Gueuze, que se localiza no interior da fábrica da cervejaria Cantillon. O museu nos dá a oportunidade tanto de conhecer os métodos tradicionais de produção de lambics (quase abandonados ao longo do século XX pela maioria das cervejarias) quanto de provar, em um ambiente alegre e autêntico, algumas das verdadeiras obras-primas criadas pela Cantillon, servidas direto dos barris ou de garrafas ainda sem rótulos. Pode-se dizer inclusive que a degustação é imprescindível para entendermos toda a proposta do museu. A “excentricidade” das instalações (se comparadas às assépticas fábricas de ales e lagers) é o reflexo perfeito da forte personalidade das cervejas. Não à toa, o tíquete inclui duas porções para degustar, à escolha do visitante – uma à entrada, outra ao final.

Quando fiz a visita, cinco rótulos eram oferecidos aos visitantes do museu: Cantillon Lambic (uma lambic pura e jovem, com um ano de maturação), Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio (uma gueuze tradicional, sem adoçantes), Cantillon Faro (uma versão adoçada da gueuze), Cantillon Kriek 100% Lambic Bio (com adição de cerejas) e Cantillon Rosé de Gambrinus (com adição de framboesas). Três lambics sem frutas, e duas com frutas, portanto. Apenas uma dela, a Faro, é adoçada. Todas elas são produzidas integralmente a partir de cervejas de fermentação espontânea, sem adição ou blendagem com ales.

As lambics sem frutas

A sugestão é que se comece a visita com a lambic jovem (pura, servida de uma jarra de cerâmica) para depois provar a gueuze e entender a diferença entre os dois estilos. Enquanto a lambic jovem provém de um único barril e tem apenas um ano de maturação, a gueuze é o resultado de uma mistura de lambics de diferentes barris, com diferentes estágios de maturação.

Fonte:
http://beervana.blogspot.com.br/2011/11/cantillon.html

Estilo: lambic – unblended
Teor alcoólico: 5%
Aparência: cor alaranjada profunda, com certa turbidez. Não forma absolutamente nenhuma espuma, apenas algumas bolhas indicando a viscosidade do líquido.
Aromas: mostra equilíbrio entre características doces de malte e de maturação e os traços de fermentação espontânea. O malte ainda é evidente: uma certa doçura de mel e xarope se mistura a uma sensação doce lembrando plástico, indicando oxidação. Em contraste, elementos da fermentação espontânea já se mostram claramente com notas animais, de couro, uma sensação acética sólida e o aroma terroso característico do terroir da Cantillon.
Paladar: doce, amargo e ácido apresentam-se em equilíbrio. A sensação de doçura é bem mais intensa que na gueuze, enquanto a acidez se destaca no começo e depois vai se atenuando. A surpresa fica por conta de um amargor tânico destacado, que se desenvolve no final. Terá resultado de um barril em especial?
Sensação na boca: única, diferente de qualquer outra bebida que eu já tenha provado. O corpo é leve, mas sua textura é lisa e um tanto oleosa, e ela tem uma forte, mas elegante sensação adstringente de taninos.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A lambic simples, sem blend, da Cantillon é servida diretamente de jarros da cerâmica, à temperatura ambiente e sem nenhuma carbonatação. Sua rusticidade reflete o ambiente genuinamente despojado, mas um tanto sacralizado, da cervejaria. A doçura residual é perceptível, bem mais que em uma gueuze, com os evidentes taninos dos lúpulos e da madeira criando um equilíbrio diferente com uma acidez ainda suave. A absoluta falta de carbonatação, aliada à forte adstringência tânica, cria uma sensação muito curiosa, diferente de qualquer outra cerveja que eu já tenha tomado.

Fonte:
http://www.flickr.com/photos/brostad

Estilo: lambic – gueuze
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração amarela queimada, com alta turbidez e um ótimo creme abundante e persistente, deixando marcas.
Aromas: maduros, com traços animais, terrosos e frutados das leveduras selvagens que se misturam a um elegante perfil de envelhecimento. Animal, terroso e amêndoas cruas predominam, com sensações secundárias de mofo, madeira seca (dos barris?), pêras verdes (dando um inusitado frescor frutado) e notas de mel ou xarope. O aroma de malte quase desapareceu, mas ainda há algo lembrando aveia, bem seco, indicando o trigo.
Paladar: decididamente seco e ácido, mas não de forma agressiva. Amargor e doçura também se fazem presentes em segundo plano, equilibrando-se mutuamente. Saliva a boca.
Sensação na boca: como deve ser uma boa gueuze – corpo bem seco e leve, com uma perceptível adstringência de taninos equilibrada com a acidez e o amargor. A maturação mais longa arredonda-lhe os taninos e seca-lhe o corpo, se compararmos com a lambic pura, tornando-a mais elegante.

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A gueuze da Cantillon é feita a partir de um blend de lambics com 1, 2 e 3 anos de maturação em barris de carvalho. Possui paladar seco e adstringente na medida, com acidez marcante, salivando a boca. Grande amplitude aromática, em que as notas animais, terrosas e frutadas da cepa nativa de leveduras selvagens se mesclam admiravelmente a um perfil de maturidade elegante e bem integrado. Servida na própria cervejaria, mostrou-se ainda mais envolvente após a visita. Marcante sem exageros. Elegante, precisa, impecável.


A comparação entre a lambic jovem e a gueuze é muito instrutiva e mostra o trabalho que o produtor de lambics precisa fazer para aprimorar seu produto. A diferença mais marcante é a doçura residual, muito mais elevada na lambic pura. Isso é normal, pois as leveduras selvagens demoram alguns anos para consumir todos os açúcares da cerveja. Além da doçura, a versão jovem mostra taninos mais amargos, atenuando a percepção da acidez. Por não ser carbonatada, a jovem ainda tem uma sensação radicalmente diferente na boca. Já a gueuze mostra acidez mais limpa e consistente, doçura já bem mais suave (apenas o suficiente para equilibrar a acidez) e os taninos amaciados pelo tempo e pelo blend. Além disso, a amplitude aromática da gueuze é mais impressionante, sobretudo no perfil de fermentação espontânea e de oxidação. A lambic jovem é uma experiência única e imperdível, mostrando acidez mais equilibrada e fácil de “encarar” para quem não está acostumado ao estilo, enquanto a gueuze, mais desafiadora ao paladar, mostra toda a elegância de uma lambic bem maturada.

As lambics com frutas

A degustação ao final da visita ainda me permitiu comparar as características trazidas à cerveja pelas duas frutas mais frequentemente usadas como aditivos na produção de lambics: cerejas (na Cantillon Kriek 100% Lambic Bio) e framboesas (na Cantillon Rosé de Gambrinus). A Cantillon não emprega suco nem aromatizante de frutas, usando apenas frutas frescas. Ambos os rótulos são fabricados a partir de blends de lambics de diferentes idades, misturadas a uma quantidade de fruta equivalente a 200 g por litro do produto final. Normalmente, adicionam-se 300 g da fruta a cada litro de uma lambic de um ano e meio de idade, adicionando-se depois mais lambic jovem para ocasionar a refermentação na garrafa.

Fonte: calgarybeerdrinkers.wordpress.com

Estilo: fruit lambic (cereja)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração vermelha-rosada intensa e profunda, totalmente opaca, com creme rosado de curta duração.
Aromas: bebida bem jovem e fresca, os aromas da fruta mostram-se bastante vívidos, com cerejas frescas e frutas vermelhas, mas sem aquela sensação de bala de cereja de outros rótulos adoçados. Notas de amêndoas cruas e marzipã, com sensação mineral, também são intensas e quebram a doçura da fruta com elegância. Animal e madeira denunciam a fermentação espontânea, mas de forma mais discreta que nas lambics sem frutas. Por fim, seu toque mais característico ficou por conta de um vívido sabor de canela ao final do gole – talvez uma mistura do sabor da fruta com aquele terroso típico das Cantillon. Excelente, surpreendente.
Paladar: ela começa intensamente ácida, implacável, e depois fecha o gole com um equilíbrio perfeito entre a acidez residual, uma doçura de especiarias e um amargor tânico gentil. Mais um ponto para ela.
Sensação na boca: o corpo é leve e a textura é crocante, seca, com adstringência de taninos clara mas não agressiva.

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A kriek “regular” da Cantillon é feita com adição de cerejas azedas inteiras a uma lambic de um ano e meio de idade, misturando-se depois um terço de lambic jovem para potencializar a fermentação secundária. Frutas, maturação e especiarias se complementam em perfeito equilíbrio, com os aromas de fermentação espontânea mais discretos. Tem paladar com personalidade, bem ácido no início, conduzindo a um final equilibrado entre acidez, amargor de taninos e doçura. Impecável, é difícil achar defeitos nela. Para mim, foi o ponto alto das degustações da visita – e devo dizer que, até hoje, nenhuma fruit lambic me encantou mais que ela.

Fonte: sheltonbrothers.info

Estilo: fruit lambic (framboesa)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: sedutora coloração vermelha escura, com nuances arroxeadas, mais intensa que a kriek. Tem alguma transparência e um creme de pouca duração.
Aromas: as características da fruta (aromas de framboesa, de frutas vermelhas e até de cereja, embora ela não leve cerejas na composição), presentes mas não predominantes,  convivem com traços rústicos da fermentação espontânea (terroso marcante, animal, apimentado, vinagre e mostarda). Um certo aroma amendoado complementa o quadro. Bem mais rústica que a kriek, com as características de lambic já se sobressaindo às da fruta.
Paladar: a acidez predomina do início ao fim, com uma suave doçura de fruta, lembrando geleia, que chega ao final para lhe dar equilíbrio. Há pouco amargor.
Sensação na boca: tem corpo leve, com textura crocante e terrosa. Apesar de razoavelmente seca, tem poucos taninos se comparada à Kriek, o que a torna um pouco mais ingênua e fácil de beber, contrastando bem com a rusticidade do aroma. Para uma lambic tradicional, não adoçada, tem paladar acessível e amigável.

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A Rosé de Gambrinus é uma cerveja excepcional por ser, ao mesmo tempo, uma lambic rústica, tradicional e sem concessões, mas também fácil de beber e acessível (para o padrão da Cantillon, pelo menos). Tem intensas características de fermentação espontânea (acético, lático, animal, terroso), mas não mostra taninos tão firmes e consistentes quanto a Kriek, o que lhe dá uma sensação mais leve na boca.


Uma vez que ambas são feitas a partir dos mesmíssimos procedimentos (blends com idades equivalentes e a mesma quantidade de frutas), as grandes diferenças entre essas duas cervejas evidenciam bem a personalidade de cada fruta. O paladar da framboesa (acidez, doçura) parece mais intenso, enquanto as cerejas têm mais taninos, resultando em uma cerveja mais seca, tânica e estruturada. Também as cerejas parecem criar uma interessante harmonia com os tons terrosos das leveduras, resultando em uma deliciosa sensação de especiarias. O resultado é que a Rosé de Gambrinus parece mais alegre e fácil de beber, enquanto a Kriek parece mais elegante e sóbria.

Infelizmente, eu tinha horário para pegar um trem e não tive tempo para provar todos os rótulos. Ficou faltando a Faro, uma lambic sem frutas adoçada com caramelo e açúcar cândi. Como é o estilo que menos me agrada entre os 5 oferecidos, teve de ficar para uma próxima. Não importa – está aí um belo motivo para voltar à fábrica da Cantillon numa outra oportunidade!

4 comentários:

  1. Quando visitei a fábrica, eles estavam servindo a kriek do barril. Eu também senti esse toque amendoado e de canela, como se desse para sentir não só a polpa da fruta, mas também o caroço! É minha kriek favorita.

    Quanto à lambic pura, este ano não consegui gostar da produzida pela Cantillon. Tomei na fábrica e no Moeder Lambic. A da fábrica estava bem melhor, mas ainda assim não achei agradável. Eu estive na Cantillon em 2009 também e me lembro de ter gostado da lambic pura deles. Ouvi dizer que a Cantillon trocou boa parte de seus barris, porque as cervejas estavam ficando ácidas demais. Não sei se é verdade, mas, se for, acho uma pena.

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    1. Olá, Carolina!

      Deve ser muito legal tomar a kriek direto do barril. Será que você a pegou num estágio antes da refermentação com lambic jovem? Ela estava bem carbonatada?

      Quanto à lambic pura, é importante lembrar que elas são servidas de um único barril e de uma única brassagem, de modo que suas características variam muito de brassagem para brassagem, de barril para barril. Esse é um dos motivos pelos quais a maior parte das engarrafadas é blendada, porque é preciso padronizar um pouco o sabor. A lambic pura é uma experiência singular, mas, para mim, não tem a elegância de uma gueuze.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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    2. Alexandre, eu não havia pensado sobre a kriek do barril estar em estágio anterior à adição da lambic jovem. Acho que a Cantillon nem sempre adiciona lambic jovem à sua kriek, não é? Por outro lado, cheguei à conclusão de que eu deduzi que a cerveja era proveniente do barril por causa da jarrinha de cerâmica. Agora já não tenho mais certeza. O que sei com certeza é que tomei, no Moeder Lambic, a Cantillon Cuvée Moeder Lambic, também uma kriek, direto do barril. Gostei mais da Kriek 100% Lambic que tomei na fábrica.

      Quanto à troca dos barris, eu me refiro aos barris mesmo, e não ao seu conteúdo. Ouvi dizer que, nos últimos anos, a Cantillon resolveu comprar barris novos, porque os antigos já estavam muito colonizados. Se isso for verdade, talvez explique por que eu gostei da lambic pura em 2009 e não gostei agora. É que por mais que haja variação entre um barril e outro (como senti entre a lambic que tomei na fábrica e a que tomei no Moeder Lambic), a cerveja que eu me lembro de ter tomado em 2009 era muito mais ácida. Mas também não descarto a possibilidade de estar sugestionada pela informação. Sem contar que, em 2009, lambic era meio novidade pra mim e eu posso ter achado a cerveja muito mais ácida do que acharia hoje.

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    3. Olá, Carolina!

      A Cantillon tem dois rótulos com cerejas: a Kriek 100% Lambic Bio e a Lou Pepe Kriek. Na primeira, adiciona-se lambic jovem antes de engarrafar para ocasionar refermentação. Na segunda, adiciona-se apenas um licor açucarado, para o mesmo fim. Portanto, é possível, sim, que você tenha bebido uma sem blendar!

      Quanto aos novos barris, não sabia da informação. O que sei é que a Cantillon sempre troca parte dos barris com o tempo, até porque alguns rótulos só são produzidos em barris relativamente novos (como os da linha Lou Pepe). De qualquer forma, sempre há alguns barris que saem mais tânicos, outros mais ácidos. Certas variações são naturais. A arte de blendar serve, entre outras coisas, para corrigir esses desvios, o que não ocorre em cervejas como a lambic pura ou a Grand Cru Bruocsella (que eu infelizmente não consegui provar!). Teria de ver se, na média, as lambics da Cantillon ficaram menos ácidas de 2009 para cá - eu não faço a menor ideia, até porque minha primeira visita foi esse ano!

      Agora, eu também acho que a impressão de acidez vai caindo à medida que a gente se acostuma com o estilo. Talvez seja mais ou menos como o amargor: no começo eu não conseguia ver uma IPA como adocicada, hoje reconheço que várias realmente o são. Assim como que achava que um rótulo como a Boon Kriek (minha primeira lambic) era ácido, e hoje vejo o quão doce ela é!

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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