Fachada da Cantillon, com a porta do
museu no canto
esquerdo.
Fonte: acervo pessoal |
A cidade de Bruxelas é destino quase obrigatório de todo
turista cervejeiro por conta de ser a capital e maior cidade da Bélgica,
espécie de nirvana para muitos apreciadores do nobre fermentado de cevada –
entre os quais, admito, eu me incluo. A escola cervejeira belga produz uma
miríade de estilos cervejeiros (a própria palavra “estilo” parece fora de lugar
diante de tanta diversidade), desde as cervejas trapistas produzidas no
silêncio reverente das abadias até as saisons mais rústicas e camponesas. Todos
eles podem ser encontrados em Bruxelas, para o deleite do cervoturista sedento.
Mas o que nem todo visitante sabe é que existe uma família
de cervejas exclusiva da região do vale do rio Senne, onde está encravada a
cidade de Bruxelas. Trata-se das lambics, as apaixonantes cervejas de
fermentação espontânea da escola belga. Para alguns iniciados ao mundo das
cervejas especiais, a palavra “lambic” parece designar qualquer cerveja com
fermentação espontânea, sem adição de leveduras. No entanto, o termo Lembeek
também corresponde ao nome de um pequeno afluente do rio Senne e de uma vila na
região de Bruxelas, sendo uma denominação de origem protegida. Isso significa
que apenas as cervejas de fermentação espontânea produzidas naquela região
podem reivindicar legitimamente a denominação “lambics”, o que as torna talvez
as cervejas mais tradicionais da cosmopolita Bruxelas.
E não é que a cidade tem um museu inteiramente dedicado a
elas? Trata-se do MuseuBruxelense da Gueuze (Musée Bruxellois de la Gueuze), que nada
mais é do que a denominação da instituição museológica mantida por um dos mais
tradicionais produtores de lambics: a cervejaria Cantillon. Um museu criado e
mantido pela Cantillon, então? Se você está pensando em um salão com vitrines,
equipamentos antigos e fora de uso e legendas explicativas, está enganado. O
Museu Bruxelense da Gueuze nada mais é do que a própria fábrica da Cantillon.
Nova Museologia, ecomuseus
e museus comunitários
Mas desde quando uma fábrica pode ser um museu? Museu não é
lugar de guardar coisas antigas? Na verdade, o Museu Bruxelense da Gueuze pode
ser considerado um exemplo daquilo que, em Museologia, chamamos muitas vezes de
“ecomuseu”. Mas que diabos é isso? Será que é um museu ecológico, uma espécie
de viveiro com plantas e bichinhos e espécies em risco de extinção? Não é nada
disso. Vejamos.
Os ecomuseus fizeram parte de um grande movimento de
renovação na Museologia mundial ocorrido entre os anos 1960 e 1970. A
contundente crítica dos intelectuais da época às instituições e modos de pensar
tradicionais não poderia deixar de tomar como alvo os museus, considerados
então espaços elitistas de celebração da história oficial dos “grandes homens”
– um modo mais pomposo de dizer que muitos museus não passavam de lugares
conservadores ocupados de babar ovo para os “poderosos” de antanho. Onde estavam
o povo comum e a vida das pessoas de verdade?
Os ecomuseus começaram a chegar também
ao Brasil no
século XXI. Acima, a renda de bilros
de Florianópolis no Museu do
Folclore de
São José dos Campos.
Fonte: http://www.ovale.com.br |
A Nova Museologia das décadas de 1960 e 1970 desenvolveu-se
em torno de uma seção da UNESCO chamada ICOFOM (Comitê Internacional para a
Museologia) e propôs novos tipos de museus que, ao invés de celebrar
antepassados ilustres em vitrines empoeiradas, conseguisse representar as
tradições seculares e a cultura viva do povo comum. O termo “ecomuseu” acabou
se tornando uma espécie de denominação genérica para indicar esses novos
experimentos museológicos. Apesar de sua variedade, tinham alguns princípios
comuns: em primeiro lugar, compartilhavam a ideia de que a cultura de um povo
era algo vivido no dia a dia, e não algo que pudesse ser imobilizado em uma
vitrine. Hábitos, celebrações, formas de trabalho, alimentação e lazer – nada
disso cabe em prateleiras. Em segundo lugar, todos entendiam que essa cultura
não podia ser tirada do seu ambiente natural e cultural (daí o nome ecomuseu): era preciso levar as pessoas
para conhecê-la nos locais efetivamente ocupados pelas comunidades. Em vez de
prédios pomposos, os ecomuseus se instalaram em aldeias, centros comunitários,
onde quer que as tradições culturais continuem sendo vivenciadas cotidianamente
pelas pessoas. Patrimônio imaterial e comunidade residente, tais eram as linhas
de força do projeto neomuseológico.
O resgate de uma
tradição bruxelense
A cervejaria Cantillon foi fundada em 1900, mas o Museu
Bruxelense da Gueuze só foi aberto ao público no ano de 1978. Seu objetivo é
salvaguardar uma das tradições populares mais enraizadas na região da Bélgica:
a produção e o consumo de lambics segundo técnicas seculares. Ao longo dos anos
1960, a produção tradicional de lambics vinha sendo seriamente ameaçada pela
concentração de capitais na indústria cervejeira, que tirava de cena as
cervejarias familiares em prol de grandes conglomerados industriais com
procedimentos padronizados de produção, que estavam adaptando as
particularíssimas lambics ao gosto de consumidores globalizados. Como
resultado, as lambics que não desapareceram estavam se convertendo gradualmente
em versões atenuadas e adoçadas do estilo (como as que, ainda hoje, dominam o
mercado belga).
A Belle-Vue, da AB-InBev, é emblemática do
processo
de adaptação industrial das gueuzes.
Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com |
Esse processo ocorreu de forma mais ou menos intensa com
todos os estilos cervejeiros no século XX. Mas no caso das heterodoxas lambics,
havia agravantes. Ora, a maioria esmagadora das cervejas consumidas em todo o
mundo é produzida pela adição de alguma espécie de levedura ao mosto (um
preparado líquido à base de água, grãos e lúpulo), seguindo-se uma fermentação
realizada por essas leveduras para a produção de álcool. As lambics não recebem
adição deliberada de leveduras. Em vez disso, o mosto é deixado fermentar
naturalmente pela ação de bactérias e leveduras presentes na atmosfera. Em bom
português, a lambic é uma cerveja que o produtor “deixa estragar”, e daí seu
gosto desafiadoramente azedo. Para paladares acostumados a produtos
pasteurizados e ao rígido controle sanitário da era industrial, as lambics são
um tapa na cara. E, como são fermentadas espontaneamente, o produtor precisa
abdicar desapegadamente de uma parte importante do controle sobre o processo, o
que parece insano diante dos padrões de padronização da produção industrial.
As lambics bruxelenses dependiam de um delicado
entrelaçamento de fatores: uma sensibilidade gastronômica pré-industrial, um
hábito popular típico de uma região, um grau limitado de concentração de
capitais e uma estrutura familiar tradicional comandando a produção. Tudo isso
estava ameaçado de extinção na segunda metade do século XX. A Nova Museologia
se apresentou então como recurso promissor para preservar um produto regional,
unindo em torno dele seus produtores e seus consumidores. Daí nasceu o Museu
Bruxelense da Gueuze, com o objetivo de resgatar e difundir uma tradição
regional e, ao mesmo tempo, mantê-la viva. Para isso, nada melhor do que um
ecomuseu.
A visita ao museu
O nome “Museu Bruxelense da Gueuze” faz referência ostensiva
a um dos subestilos de cerveja dentro da família das lambics. As gueuzes são cervejas produzidas a partir
do blend de lambics puras de diferentes estágios de maturação (cervejas de um,
dois e três anos de idade, no caso da Cantillon), que são envasadas para
ocasionar uma segunda fermentação na garrafa. Contudo, a Cantillon produz
outros estilos de lambics, que também estão igualmente representados em seu
museu, pelo que ele poderia, tranquilamente, ser chamado de Museu Bruxelense da
Lambic.
O simpático bar e espaço de degustação
à entrada do
museu.
Fonte: acervo pessoal
|
O museu não está no centro turístico de Bruxelas, mas
chega-se a ele com facilidade depois de uma caminhada de dez minutos a partir
da estação central de trens (Gare du Midi).
O primeiro choque para o visitante começa na entrada. O museu está instalado no
mesmo prédio da fábrica da Cantillon, sendo que não existe uma entrada
específica para visitantes, e as portas da cervejaria ficam fechadas durante
boa parte do dia. Isso significa que, quando finalmente encontramos o endereço,
podemos ter a impressão de que o museu está fechado e que perdemos a viagem.
Basta, contudo, abrir a pesada porta para ser recebido no interior
(exceto, é claro, se for domingo, dia em que a cervejaria não abre mesmo).
Para o amante de lambics, esse primeiro momento é uma
espécie de epifania. Assim que entramos no interior escuro do prédio, os aromas
animais e de couro das leveduras selvagens saturam deliciosamente nossas
narinas. Parece que estamos dentro de um copo de lambic. À entrada, paga-se uma
taxa de 6 euros pela visita. Na verdade, o preço do ingresso é quase simbólico, uma vez que inclui duas degustações incluídas e um livreto
explicativo, essencial para se aproveitar a visita. À entrada, normalmente se dá
ao recém-chegado uma pequena porção da lambic jovem da cervejaria, servida de
um jarro de cerâmica à temperatura ambiente (como nas telas de Bruegel que já
comentamos aqui). Ao final da visita, uma pequena porção
da gueuze exemplifica na prática a diferença entre os estilos.
É possível sentar-se e apreciar a degustação inicial em um
pequeno bar montado à entrada da cervejaria, com antigos barris de madeira
servindo como mesas. Em pouco tempo, um dos funcionários da cervejaria
apresenta-se para conduzir a visitação para pequenos grupos, em francês e em
inglês. Minha visita foi conduzida por Louis-Phillipe, cujo entusiasmo pelas
lambics que produzia era evidente em sua fala. Há uma pequena explicação sobre
as lambics na cozinha de brassagem da cervejaria, em meio ao equipamento da
Cantillon, e o visitante é deixado à vontade para percorrer as instalações por
conta própria, sozinho ou em pequenos grupos. Eu aproveitei a oportunidade para
também bater um papo com o produtor e presenteá-lo com uma cerveja brasileira.
Sabendo que a madeira é um dos elementos essenciais da produção de lambics,
resolvi dar-lhe uma cerveja que representasse uma de nossas madeiras típicas,
pelo que escolhi a ótima 3 Lobos Bravo Imperial Porter, maturada em barris de
umburana.
Lambics a perder de vista descansando
nos barris da
Cantillon!
Fonte: acervo pessoal |
Podem-se visitar todas as instalações da cervejaria,
incluindo o equipamento de brassagem, as câmaras de fermentação aberta e de
maturação em barris de carvalho, a linha de envase e a cave onde se faz a
refermentação e a maturação em garrafa. Três coisas me causaram uma forte
impressão durante a visita. Em primeiro lugar, ver quão pequena é a fábrica. A
Cantillon é uma referência na produção de lambics. Suas cervejas são desejadas
e elogiadas mundialmente pelos apreciadores. Apesar disso tudo, a fábrica
parece espantosamente pequena, mesmo para os padrões microcervejeiros. Produção
em pequena escala, à qual se somam os longos tempos de maturação necessários
para uma boa lambic. As cervejas da Cantillon demoram pelo menos 2 anos e meio para ficarem prontas, o que obviamente
compromete boa parte do espaço livre. No interior da câmara de maturação, uma
placa de madeira estampa um lema que não poderia ser mais apropriado: “Le temps
ne respecte pas ce qui se fait sans lui.” Ou seja: “o tempo não respeita aquilo
que é feito sem ele.” Na verdade, é a falta de espaço para maturar a cerveja durante
todo esse tempo o que impede o aumento na produção da Cantillon.
Esta geringonça mirabolante é a tina de mostura
do
século XIX, ainda em uso na Cantillon.
Fonte: acervo pessoal
|
O segundo fator que impressiona na visita é ver a
antiguidade do equipamento. Segundo nos explicou Louis-Phillipe, quase todo o
maquinário em uso ainda hoje é original da época de abertura da fábrica (a
única exceção parece ser a linha de envase). Isso significa que a Cantillon
produz suas maravilhosas cervejas usando máquinas do século XIX! Tudo o que se
vê lá dentro é um verdadeiro patrimônio histórico plenamente funcional –
exatamente o que se espera de um ecomuseu. Por fim, o fator talvez mais
chocante da cervejaria são as suas condições sanitárias. Nas produtoras de ales
e lagers, acostumamo-nos a ver sempre condições sanitárias quase comparáveis às
de um hospital, tamanha a preocupação com possíveis contaminações. Ocorre que
“contaminações” são a alma de qualquer lambic, pois a fermentação espontânea depende intimamente dos microorganismos que habitam a cervejaria. Apesar de os equipamentos serem
sanitizados regularmente, o prédio em si não parece ser higienizado jamais: a
cada canto, em cada buraco e viga do madeiramento, deparamo-nos com exuberantes
teias de aranha a nos lembrar por que as lambics são chamadas de cervejas
“selvagens”.
Grossas teias de aranha se espalham por todos os
cantos,
brechas e frestas do edifício. E a gente ainda
bebe as cervejas com
prazer mesmo assim!
Fonte: acervo pessoal |
A antiguidade do maquinário, a paixão dos funcionários, a
reverência ao tempo, o verdadeiro ecossistema que existe dentro do prédio com
seus fungos, insetos e bactérias convivendo com os homens, tudo isso dá à
fábrica da Cantillon um ar ao mesmo tempo genuinamente despojado (nada ali
parece montado com propósitos puramente estéticos) e também extremamente
sacralizado. Ao observar a rústica câmara de resfriamento no forro da fábrica,
no ponto mais alto do edifício, onde o mosto recebe do ar as leveduras
selvagens, não pude evitar sentimento semelhante ao de estar em frente a um
altar. No lugar onde um verdadeiro milagre acontece a cada nova brassagem. Um
milagre reiterado desde um longínquo passado pré-industrial, e cuidadosamente
preservado até hoje apesar de sua vulnerabilidade.
Cultura tradicional e
preservação
Ao final da visita, serve-se mais uma taça, desta vez da
gueuze. Se, no início, bebemos a lambic jovem – crua, não lapidada –, ao
apreciar a gueuze, aprendemos a reverenciar a importância de toda aquela
estrutura produtiva e respeitar o que se faz tendo o tempo como aliado.
Perdoem-me os católicos pela heresia, mas, para quem é apaixonado pelas
lambics, é quase como comungar o mistério do sangue de Cristo na eucaristia.
Depois, é quase inevitável que nos estendamos nas simpáticas mesinhas do bar
para continuar matutando sobre a maravilha da fermentação selvagem, embalados
por mais algumas taças de boa lambic (pagas à parte depois da visita a preços bastante camaradas).
Ao final, eu me peguei pensando, como profissional de
museus, o quanto o Museu Bruxelense da Gueuze, apesar de seu insuspeitado
formato, cumpre exatamente a promessa de um bom ecomuseu. Temos a oportunidade
de observar um patrimônio histórico ainda em uso por pessoas apaixonadas que
vivem daquilo e, literalmente, respiram o ar da lambic. Vemos com clareza a
distância histórica que separa essa experiência do “nosso” mundo industrial
contemporâneo, e compreendemos que o presente ainda pode ser feito a partir de
muitos passados acumulados. Melhor ainda, podemos comungar, durante algum
tempo, o mistério dessa tradição quase abandonada e aprender a reverenciar seus encantos. Unir praticantes e entusiastas em torno de uma deliciosa tradição –
não seria esse o objetivo de qualquer boa instituição cultural?
No próximo post, iremos direto ao cálice sagrado: falarei um
pouco sobre as cervejas que podemos apreciar no Museu Bruxelense da Gueuze, só
para deixar meus leitores com um pouco mais de água na boca. Não perca!
Cara, ler esse texto me deixou em extase, vou no final do mês para a Belgica, e a vontade de conhecer lugares como esse só cresce!
ResponderExcluirJoão Paulo, aproveite sua viagem! E não deixe passar a oportunidade de conhecer melhor as lambics do vale do rio Senne, já que aqui no Brasil os preços são bastante altos e a acessibilidade é muito restrita. AS lambics são talvez o maior dos encantos locais da cena cervejeira bruxelense.
ExcluirAbraços!