sábado, 3 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: o Museu Bruxelense da Gueuze

Fachada da Cantillon, com a porta do 
museu no canto esquerdo.
Fonte: acervo pessoal

A cidade de Bruxelas é destino quase obrigatório de todo turista cervejeiro por conta de ser a capital e maior cidade da Bélgica, espécie de nirvana para muitos apreciadores do nobre fermentado de cevada – entre os quais, admito, eu me incluo. A escola cervejeira belga produz uma miríade de estilos cervejeiros (a própria palavra “estilo” parece fora de lugar diante de tanta diversidade), desde as cervejas trapistas produzidas no silêncio reverente das abadias até as saisons mais rústicas e camponesas. Todos eles podem ser encontrados em Bruxelas, para o deleite do cervoturista sedento.

Mas o que nem todo visitante sabe é que existe uma família de cervejas exclusiva da região do vale do rio Senne, onde está encravada a cidade de Bruxelas. Trata-se das lambics, as apaixonantes cervejas de fermentação espontânea da escola belga. Para alguns iniciados ao mundo das cervejas especiais, a palavra “lambic” parece designar qualquer cerveja com fermentação espontânea, sem adição de leveduras. No entanto, o termo Lembeek também corresponde ao nome de um pequeno afluente do rio Senne e de uma vila na região de Bruxelas, sendo uma denominação de origem protegida. Isso significa que apenas as cervejas de fermentação espontânea produzidas naquela região podem reivindicar legitimamente a denominação “lambics”, o que as torna talvez as cervejas mais tradicionais da cosmopolita Bruxelas.

E não é que a cidade tem um museu inteiramente dedicado a elas? Trata-se do MuseuBruxelense da Gueuze (Musée Bruxellois de la Gueuze), que nada mais é do que a denominação da instituição museológica mantida por um dos mais tradicionais produtores de lambics: a cervejaria Cantillon. Um museu criado e mantido pela Cantillon, então? Se você está pensando em um salão com vitrines, equipamentos antigos e fora de uso e legendas explicativas, está enganado. O Museu Bruxelense da Gueuze nada mais é do que a própria fábrica da Cantillon.

Nova Museologia, ecomuseus e museus comunitários

Mas desde quando uma fábrica pode ser um museu? Museu não é lugar de guardar coisas antigas? Na verdade, o Museu Bruxelense da Gueuze pode ser considerado um exemplo daquilo que, em Museologia, chamamos muitas vezes de “ecomuseu”. Mas que diabos é isso? Será que é um museu ecológico, uma espécie de viveiro com plantas e bichinhos e espécies em risco de extinção? Não é nada disso. Vejamos.

Os ecomuseus fizeram parte de um grande movimento de renovação na Museologia mundial ocorrido entre os anos 1960 e 1970. A contundente crítica dos intelectuais da época às instituições e modos de pensar tradicionais não poderia deixar de tomar como alvo os museus, considerados então espaços elitistas de celebração da história oficial dos “grandes homens” – um modo mais pomposo de dizer que muitos museus não passavam de lugares conservadores ocupados de babar ovo para os “poderosos” de antanho. Onde estavam o povo comum e a vida das pessoas de verdade?

Os ecomuseus começaram a chegar também 
ao Brasil no século XXI. Acima, a renda de bilros 
de Florianópolis no Museu do 
Folclore de São José dos Campos.
Fonte: http://www.ovale.com.br
A Nova Museologia das décadas de 1960 e 1970 desenvolveu-se em torno de uma seção da UNESCO chamada ICOFOM (Comitê Internacional para a Museologia) e propôs novos tipos de museus que, ao invés de celebrar antepassados ilustres em vitrines empoeiradas, conseguisse representar as tradições seculares e a cultura viva do povo comum. O termo “ecomuseu” acabou se tornando uma espécie de denominação genérica para indicar esses novos experimentos museológicos. Apesar de sua variedade, tinham alguns princípios comuns: em primeiro lugar, compartilhavam a ideia de que a cultura de um povo era algo vivido no dia a dia, e não algo que pudesse ser imobilizado em uma vitrine. Hábitos, celebrações, formas de trabalho, alimentação e lazer – nada disso cabe em prateleiras. Em segundo lugar, todos entendiam que essa cultura não podia ser tirada do seu ambiente natural e cultural (daí o nome ecomuseu): era preciso levar as pessoas para conhecê-la nos locais efetivamente ocupados pelas comunidades. Em vez de prédios pomposos, os ecomuseus se instalaram em aldeias, centros comunitários, onde quer que as tradições culturais continuem sendo vivenciadas cotidianamente pelas pessoas. Patrimônio imaterial e comunidade residente, tais eram as linhas de força do projeto neomuseológico.

O resgate de uma tradição bruxelense

A cervejaria Cantillon foi fundada em 1900, mas o Museu Bruxelense da Gueuze só foi aberto ao público no ano de 1978. Seu objetivo é salvaguardar uma das tradições populares mais enraizadas na região da Bélgica: a produção e o consumo de lambics segundo técnicas seculares. Ao longo dos anos 1960, a produção tradicional de lambics vinha sendo seriamente ameaçada pela concentração de capitais na indústria cervejeira, que tirava de cena as cervejarias familiares em prol de grandes conglomerados industriais com procedimentos padronizados de produção, que estavam adaptando as particularíssimas lambics ao gosto de consumidores globalizados. Como resultado, as lambics que não desapareceram estavam se convertendo gradualmente em versões atenuadas e adoçadas do estilo (como as que, ainda hoje, dominam o mercado belga).

A Belle-Vue, da AB-InBev, é emblemática do 
processo de adaptação industrial das gueuzes.
Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com
Esse processo ocorreu de forma mais ou menos intensa com todos os estilos cervejeiros no século XX. Mas no caso das heterodoxas lambics, havia agravantes. Ora, a maioria esmagadora das cervejas consumidas em todo o mundo é produzida pela adição de alguma espécie de levedura ao mosto (um preparado líquido à base de água, grãos e lúpulo), seguindo-se uma fermentação realizada por essas leveduras para a produção de álcool. As lambics não recebem adição deliberada de leveduras. Em vez disso, o mosto é deixado fermentar naturalmente pela ação de bactérias e leveduras presentes na atmosfera. Em bom português, a lambic é uma cerveja que o produtor “deixa estragar”, e daí seu gosto desafiadoramente azedo. Para paladares acostumados a produtos pasteurizados e ao rígido controle sanitário da era industrial, as lambics são um tapa na cara. E, como são fermentadas espontaneamente, o produtor precisa abdicar desapegadamente de uma parte importante do controle sobre o processo, o que parece insano diante dos padrões de padronização da produção industrial.

As lambics bruxelenses dependiam de um delicado entrelaçamento de fatores: uma sensibilidade gastronômica pré-industrial, um hábito popular típico de uma região, um grau limitado de concentração de capitais e uma estrutura familiar tradicional comandando a produção. Tudo isso estava ameaçado de extinção na segunda metade do século XX. A Nova Museologia se apresentou então como recurso promissor para preservar um produto regional, unindo em torno dele seus produtores e seus consumidores. Daí nasceu o Museu Bruxelense da Gueuze, com o objetivo de resgatar e difundir uma tradição regional e, ao mesmo tempo, mantê-la viva. Para isso, nada melhor do que um ecomuseu.

A visita ao museu

O nome “Museu Bruxelense da Gueuze” faz referência ostensiva a um dos subestilos de cerveja dentro da família das lambics. As gueuzes são cervejas produzidas a partir do blend de lambics puras de diferentes estágios de maturação (cervejas de um, dois e três anos de idade, no caso da Cantillon), que são envasadas para ocasionar uma segunda fermentação na garrafa. Contudo, a Cantillon produz outros estilos de lambics, que também estão igualmente representados em seu museu, pelo que ele poderia, tranquilamente, ser chamado de Museu Bruxelense da Lambic.

O simpático bar e espaço de degustação 
à entrada do museu.
Fonte: acervo pessoal
O museu não está no centro turístico de Bruxelas, mas chega-se a ele com facilidade depois de uma caminhada de dez minutos a partir da estação central de trens (Gare du Midi). O primeiro choque para o visitante começa na entrada. O museu está instalado no mesmo prédio da fábrica da Cantillon, sendo que não existe uma entrada específica para visitantes, e as portas da cervejaria ficam fechadas durante boa parte do dia. Isso significa que, quando finalmente encontramos o endereço, podemos ter a impressão de que o museu está fechado e que perdemos a viagem. Basta, contudo, abrir a pesada porta para ser recebido no interior (exceto, é claro, se for domingo, dia em que a cervejaria não abre mesmo).

Para o amante de lambics, esse primeiro momento é uma espécie de epifania. Assim que entramos no interior escuro do prédio, os aromas animais e de couro das leveduras selvagens saturam deliciosamente nossas narinas. Parece que estamos dentro de um copo de lambic. À entrada, paga-se uma taxa de 6 euros pela visita. Na verdade, o preço do ingresso é quase simbólico, uma vez que inclui duas degustações incluídas e um livreto explicativo, essencial para se aproveitar a visita. À entrada, normalmente se dá ao recém-chegado uma pequena porção da lambic jovem da cervejaria, servida de um jarro de cerâmica à temperatura ambiente (como nas telas de Bruegel que já comentamos aqui). Ao final da visita, uma pequena porção da gueuze exemplifica na prática a diferença entre os estilos.

É possível sentar-se e apreciar a degustação inicial em um pequeno bar montado à entrada da cervejaria, com antigos barris de madeira servindo como mesas. Em pouco tempo, um dos funcionários da cervejaria apresenta-se para conduzir a visitação para pequenos grupos, em francês e em inglês. Minha visita foi conduzida por Louis-Phillipe, cujo entusiasmo pelas lambics que produzia era evidente em sua fala. Há uma pequena explicação sobre as lambics na cozinha de brassagem da cervejaria, em meio ao equipamento da Cantillon, e o visitante é deixado à vontade para percorrer as instalações por conta própria, sozinho ou em pequenos grupos. Eu aproveitei a oportunidade para também bater um papo com o produtor e presenteá-lo com uma cerveja brasileira. Sabendo que a madeira é um dos elementos essenciais da produção de lambics, resolvi dar-lhe uma cerveja que representasse uma de nossas madeiras típicas, pelo que escolhi a ótima 3 Lobos Bravo Imperial Porter, maturada em barris de umburana.

Lambics a perder de vista descansando 
nos barris da Cantillon!
Fonte: acervo pessoal
Podem-se visitar todas as instalações da cervejaria, incluindo o equipamento de brassagem, as câmaras de fermentação aberta e de maturação em barris de carvalho, a linha de envase e a cave onde se faz a refermentação e a maturação em garrafa. Três coisas me causaram uma forte impressão durante a visita. Em primeiro lugar, ver quão pequena é a fábrica. A Cantillon é uma referência na produção de lambics. Suas cervejas são desejadas e elogiadas mundialmente pelos apreciadores. Apesar disso tudo, a fábrica parece espantosamente pequena, mesmo para os padrões microcervejeiros. Produção em pequena escala, à qual se somam os longos tempos de maturação necessários para uma boa lambic. As cervejas da Cantillon demoram pelo menos 2 anos e meio para ficarem prontas, o que obviamente compromete boa parte do espaço livre. No interior da câmara de maturação, uma placa de madeira estampa um lema que não poderia ser mais apropriado: “Le temps ne respecte pas ce qui se fait sans lui.” Ou seja: “o tempo não respeita aquilo que é feito sem ele.” Na verdade, é a falta de espaço para maturar a cerveja durante todo esse tempo o que impede o aumento na produção da Cantillon.

Esta geringonça mirabolante é a tina de mostura 
do século XIX, ainda em uso na Cantillon.
Fonte: acervo pessoal
O segundo fator que impressiona na visita é ver a antiguidade do equipamento. Segundo nos explicou Louis-Phillipe, quase todo o maquinário em uso ainda hoje é original da época de abertura da fábrica (a única exceção parece ser a linha de envase). Isso significa que a Cantillon produz suas maravilhosas cervejas usando máquinas do século XIX! Tudo o que se vê lá dentro é um verdadeiro patrimônio histórico plenamente funcional – exatamente o que se espera de um ecomuseu. Por fim, o fator talvez mais chocante da cervejaria são as suas condições sanitárias. Nas produtoras de ales e lagers, acostumamo-nos a ver sempre condições sanitárias quase comparáveis às de um hospital, tamanha a preocupação com possíveis contaminações. Ocorre que “contaminações” são a alma de qualquer lambic, pois a fermentação espontânea depende intimamente dos microorganismos que habitam a cervejaria. Apesar de os equipamentos serem sanitizados regularmente, o prédio em si não parece ser higienizado jamais: a cada canto, em cada buraco e viga do madeiramento, deparamo-nos com exuberantes teias de aranha a nos lembrar por que as lambics são chamadas de cervejas “selvagens”.

Grossas teias de aranha se espalham por todos os cantos, 
brechas e frestas do edifício. E a gente ainda 
bebe as cervejas com prazer mesmo assim!
Fonte: acervo pessoal
A antiguidade do maquinário, a paixão dos funcionários, a reverência ao tempo, o verdadeiro ecossistema que existe dentro do prédio com seus fungos, insetos e bactérias convivendo com os homens, tudo isso dá à fábrica da Cantillon um ar ao mesmo tempo genuinamente despojado (nada ali parece montado com propósitos puramente estéticos) e também extremamente sacralizado. Ao observar a rústica câmara de resfriamento no forro da fábrica, no ponto mais alto do edifício, onde o mosto recebe do ar as leveduras selvagens, não pude evitar sentimento semelhante ao de estar em frente a um altar. No lugar onde um verdadeiro milagre acontece a cada nova brassagem. Um milagre reiterado desde um longínquo passado pré-industrial, e cuidadosamente preservado até hoje apesar de sua vulnerabilidade.

Cultura tradicional e preservação

Ao final da visita, serve-se mais uma taça, desta vez da gueuze. Se, no início, bebemos a lambic jovem – crua, não lapidada –, ao apreciar a gueuze, aprendemos a reverenciar a importância de toda aquela estrutura produtiva e respeitar o que se faz tendo o tempo como aliado. Perdoem-me os católicos pela heresia, mas, para quem é apaixonado pelas lambics, é quase como comungar o mistério do sangue de Cristo na eucaristia. Depois, é quase inevitável que nos estendamos nas simpáticas mesinhas do bar para continuar matutando sobre a maravilha da fermentação selvagem, embalados por mais algumas taças de boa lambic (pagas à parte depois da visita a preços bastante camaradas).

Ao final, eu me peguei pensando, como profissional de museus, o quanto o Museu Bruxelense da Gueuze, apesar de seu insuspeitado formato, cumpre exatamente a promessa de um bom ecomuseu. Temos a oportunidade de observar um patrimônio histórico ainda em uso por pessoas apaixonadas que vivem daquilo e, literalmente, respiram o ar da lambic. Vemos com clareza a distância histórica que separa essa experiência do “nosso” mundo industrial contemporâneo, e compreendemos que o presente ainda pode ser feito a partir de muitos passados acumulados. Melhor ainda, podemos comungar, durante algum tempo, o mistério dessa tradição quase abandonada e aprender a reverenciar seus encantos. Unir praticantes e entusiastas em torno de uma deliciosa tradição – não seria esse o objetivo de qualquer boa instituição cultural?

No próximo post, iremos direto ao cálice sagrado: falarei um pouco sobre as cervejas que podemos apreciar no Museu Bruxelense da Gueuze, só para deixar meus leitores com um pouco mais de água na boca. Não perca!

2 comentários:

  1. Cara, ler esse texto me deixou em extase, vou no final do mês para a Belgica, e a vontade de conhecer lugares como esse só cresce!

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    1. João Paulo, aproveite sua viagem! E não deixe passar a oportunidade de conhecer melhor as lambics do vale do rio Senne, já que aqui no Brasil os preços são bastante altos e a acessibilidade é muito restrita. AS lambics são talvez o maior dos encantos locais da cena cervejeira bruxelense.

      Abraços!

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