segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Museus Cervejeiros: O Museu da Cerveja de Lisboa


Como alguns dos meus leitores talvez já saibam, acabo de passar por um estágio de dois meses na capital portuguesa. Foi um estágio profissional, ligado à minha pesquisa de doutorado, mas é claro que aproveitei as brechas do trabalho acadêmico para conhecer um pouco da cultura cervejeira lusitana. Ainda pretendo fazer um relato completo do que há para se ver e fazer em relação a cervejas em Lisboa, mas quero pôr o carro na frente dos bois por um momento para falar de outro assunto que muito me interessa: museus.

Museologia e museus temáticos

Prédio da primeira fábrica da Bohemia no Brasil, 
reformulado para abrigar o Museu Bohemia Experience.
Fonte: pauloratto.com.br
Museus vinculados à cerveja têm aparecido ao redor do mundo nos últimos anos, e o Brasil não ficou de fora desse fenômeno. Recentemente, tivemos a inauguração de uma grande instituição museológica mantida pela AB-InBev na antiga fábrica da Bohemia, em Petrópolis/RJ: o Museu Bohemia Experience (veja aqui um relato feito por Rodrigo Lemos, do blog BeerArchitecture, sobre a visita ao museu). Em Blumenau, existe ainda o Museu da Cerveja, administrado pela Prefeitura de Blumenau (veja aqui um vídeo feito pelo Brejas sobre o museu). Essas instituições, bem como outras semelhantes que existem no exterior, estão vinculado a uma grande tendência cultural de finais do século XX e início do XXI, que é o fortalecimento dos museus temáticos, que apresentam informações sobre história, cultura, tecnologia e artes, tudo em torno de um tema específico – no caso, nosso amado fermentado de cevada.

Ao contrário do que muita gente pensa, museus não são depósitos de velharias para a gente matar o tempo e ver coisas pitorescas antes de partir para alguma outra atração turística mais descolada. Já atuei profissionalmente em instituições museológicas (mais especificamente, no Museu Afro Brasil) e posso assegurar que museus são instituições complexas, com várias importantes funções sociais para além do Turismo. Os problemas (conceituais e práticos) ligados à montagem e manutenção de museus e exposições museológicas são complexos o bastante para que exista uma ciência exclusivamente dedicada a eles, a Museologia. Pois bem: é justamente à luz de alguns princípios da Museologia que pretendo analisar dois museus cervejeiros que tive a oportunidade de visitar recentemente, começando pelo Museu da Cerveja de Lisboa.

A visita ao museu

Fachada do Museu da Cerveja, na bela arcada 
da Praça do Comércio, com mesas na calçada.
Fonte: acervo pessoa
O Museu da Cerveja abriu suas portas na capital portuguesa muito recentemente, em junho de 2012. Segundo o que se lê no site da instituição, pretende ser um “espaço de celebração da [...] riqueza histórica” da “tradição e patrimônio cervejeiro dos Países de Língua Oficial Portuguesa”. O site não nos dá informações precisas, mas o museu parece ser uma instituição privada com apoio financeiro de parceiros ligados à Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja. A instalação do museu integrou um grande plano de revitalização turística da área da Praça do Comércio, no centro de Lisboa, bem às margens do rio Tejo.

O espaço museológico, propriamente dito, ocupa apenas o piso superior, enquanto o térreo e a parte externa, nas calçadas da Praça do Comércio, são dedicados a um restaurante e cervejaria. A exposição divide-se em três núcleos: no primeiro, temos alguns painéis informativos, com textos e imagens, a respeito da história da cerveja em Portugal. Somos informados acerca da produção e do consumo de cervejas no país desde a época do povoamento celta até os dias atuais. Encontram-se expostos alguns poucos artefatos, em sua maioria equipamentos ligados à produção e consumo de cerveja nos séculos XIX e XX, doados pelas cervejarias portuguesas.

Vitrines com garrafas antigas e materiais 
publicitários de cervejas portuguesas.
Fonte: thebeerstyles.com
A segunda parte da visita mostra algumas marcas de cerveja dos países de língua portuguesa, com vitrines em que são expostos garrafas, rótulos e artigos publicitários antigos e contemporâneos. O maior destaque vai para as cervejas de Portugal, mas existe uma vitrine para cada um dos países de língua oficial portuguesa, cada um mostrando uma marca representativa do país. A marca escolhida para representar o Brasil foi a Bohemia, numa vitrine que mostra alguns rótulos atuais do portfolio da cervejaria. Antes que me perguntem, nem sinal de cervejas artesanais – nem brasileiras, nem portuguesas, nem tampouco de nenhum outro lugar do mundo. Aliás, o acervo contempla apenas e tão-somente as grandes cervejarias industriais do século XX. Apesar de recente, o Museu da Cerveja ignora completamente aquele que talvez seja o mais interessante capítulo da história da cultura cervejeira nas últimas décadas.

Por fim, a visita termina com uma constrangedora e fantasiosa recriação de uma cervejaria monástica medieval. Um educador do museu fantasiado de hábito monástico nos recebe à entrada e nos conduz a um ambiente pequeno e escuro, onde, ao lado da estátua de cera de um monge, somos apresentados aos ingredientes da cerveja sobre uma escrivaninha: “malte claro”, “malte escuro” e um vidro com lúpulos em flor, cujo aroma pode ser sentido pelo visitante. O educador que orienta a visita ainda nos apresenta réplicas de equipamentos usados na produção de cervejas no período e, por fim, serve de uma chopeira em forma de barril uma pequena porção de uma cerveja exclusiva do museu.

Ao sair desse ambiente, descemos as escadas para nos encontramos novamente no bar/restaurante, onde se podem apreciar os chopes exclusivos do museu e outras cervejas portuguesas, brasileiras e angolanas em garrafa e lata, tudo acompanhado de um cardápio composto majoritariamente por peixes e frutos do mar.

Problemas conceituais

Para um profissional de museus com formação como sommelier de cervejas, é difícil saber por onde começar a apontar os problemas do Museu da Cerveja. Em primeiro lugar, salta aos olhos a pobreza do acervo material: alguns poucos equipamentos produtivos de pequeno porte, garrafas e materiais promocionais (uma vasta parte dos quais é atual) em número pouco representativo, sobretudo em relação aos outros países além de Portugal, e um ambiente (a adega monástica) composto totalmente por réplicas, algumas de duvidosa fidelidade histórica.

Recriação de uma cervejaria monástica medieval. 
Não dá para ver bem como eram feitas 
as cervejas na Idade Média?
Fonte: lifestyle.publico.pt
Mas isso é só o começo. Sem dúvida, o núcleo mais problemático do museu é a dita “adega monástica”. O ambiente escuro não nos permite enxergar o acervo, e a exposição do pobre educador fantasiado é confusa e cheia de informações incorretas, mostrando que a formação e o treinamento dos educadores estão longe de ser preocupações do museu. Durante a visita, o educador tentou me convencer de algumas informações que revolucionariam meu entendimento da história da cerveja, se eu tivesse lhes dado crédito. Por exemplo, aprendi que o lúpulo era responsável pelo cheiro de álcool da cerveja, que as cervejas medievais atingiam o espantoso teor de 40% de álcool ao final da fermentação, e que depois precisavam ser destiladas para poderem atingir um teor alcoólico final de 20% (!!!). Uma quantidade assustadora de informações estapafúrdias para uma parte da visita que não durou 15 minutos. A única pergunta que eu fiz ficou sem resposta: durante a degustação de cerveja ao final da visita, fui informado de que eu estava provando a “Cerveja do Museu Bohemia”. Notando que se tratava na verdade de uma Vienna lager bem frutada (falarei mais sobre a cerveja adiante), perguntei se o educador sabia me explicar o porquê do nome “Bohemia”. Continuo até agora assolado por essa dúvida cruel.

À parte as informações equivocadas, também há problemas conceituais graves na idealização da exposição. É evidente que existiu, em algum momento, uma consultoria história para a composição dos painéis informativos (principalmente no primeiro núcleo), mas não encontrei informações sobre a curadoria do museu, nem durante a visita, nem no site da instituição. Os núcleos expositivos não têm um fio condutor claro e não se ligam de forma consistente entre si: temos vitrines de cervejas de todos os países lusófonos (desproporcionalmente representados), informações históricas exclusivamente a respeito de Portugal e a recriação de uma cervejaria monástica que está longe de ser uma particularidade portuguesa – e muito menos dos países lusófonos.

Primeiro núcleo do museu, com os painéis informativos. 
O acervo material aqui é apenas ilustrativo.
Fonte: sabores.sapo.pt
Por fim, há a questão de como o acervo material é abordado. Ora, o foco de um museu deve ser sempre o seu acervo material – seus objetos. Nós vivemos em uma sociedade em que os objetos possuem uma imensa importância, e os museus têm como função primordial suscitar no visitante reflexões e experiências a partir da observação desses objetos, deslocados de seu contexto original. Todo bom museu tem algo a nos dizer, uma história a contar ou uma reflexão a propor por meio dos objetos. Se os objetos não forem o centro dessa experiência, o museu perde toda sua função e se torna redundante: podemos aprender as mesmas informações ou ter a mesma experiência lendo um livro ou assistindo a um documentário, por exemplo. Os objetos, em sua materialidade, constituem aquilo que apenas um museu pode nos oferecer, sua particularidade. Ocorre que, no Museu da Cerveja, os objetos são meramente figurativos, ilustrativos. Na melhor das hipóteses, as informações estão quase todas nos textos dos painéis e no relato do guia, e o acervo material é um mero coadjuvante. Em alguns casos, a exposição nem nos permite enxergá-los a contento!

Nos momentos mais problemáticos, os objetos servem de “cenografia” para uma tentativa de recriar uma experiência histórica (as cervejarias monásticas medievais) de forma caricatural e pitoresca. Um dos museólogos que mais respeito, Ulpiano Meneses (que foi responsável pelo projeto atual do excelente Museu Paulista, vulgarmente conhecido como Museu do Ipiranga), alertou veementemente para os perigos e os problemas conceituais dos chamados living museums, que tentam recriar cenograficamente períodos do passado para dar aos visitantes a ilusória sensação de “viajar no tempo”. Ora, nós somos indivíduos do presente, com os valores da nossa época, de modo que essa tentativa de “sentir a experiência” de épocas passadas só pode resultar em uma grotesca mistificação da história. Não existe atalho de volta ao passado; a única coisa que nos resta é tentar compreender o passado por meio do conhecimento – e os objetos podem nos ajudar nessa tarefa. (para quem tiver interesse, um excelente artigo do Ulpiano em que ele explora essa questão pode ser acessado clicando aqui)

O bar e restaurante

No piso térreo, o visitante termina (ou começa) sua visita num espaço amplo e moderno em que pode se sentar ao balcão ou às mesas para beber uma cerveja e apreciar receitas portuguesas, principalmente frutos do mar. O destaque vai para os chopes da casa, chamados de “Cerveja do Museu” e produzidos com exclusividade para a instituição pela Sociedade Central de Cervejas, a mesma que produz os rótulos da marca Sagres. Há três estilos: Clara, Escura, e Bohemia. Trata-se, respectivamente, de uma American standard lager, uma American dark lager (que os portugueses normalmente chamam de “stout”) e uma Vienna lager. A Cerveja do Museu Bohemia é a mesma da degustação ao final da visita ao museu, e no bar pode-se apreciá-la em doses mais generosas. O mais interessante é o copo do chope: sua superfície interna é moldada na forma da boca de uma garrafa de cerveja, de modo que, quando o chope é servido, parece que há uma garrafa de ponta cabeça dentro do copo! O visual é curioso, além de que a dupla camada de vidro protege o chope contra a variação de temperatura. Boa sacada.

Cerveja do Museu Bohemia. 
O copo de cerâmica você ganha 
ao comprar o tíquete para o museu. 
Será que você reconhece os rótulos 
na prateleira superior, ao fundo?
Fonte: acervo pessoal
Ao final da minha visita, eu pedi um repeteco da Cerveja do Museu Bohemia. Quando vi o nome pela primeira vez, ao entrar, achei que seria uma Bohemian pilsner ou algo próximo disso; contudo, em Portugal, “bohemia” é uma denominação comercial de estilo adotada pelas grandes cervejarias para cervejas que constituem uma interpretação adocicada do estilo Vienna lager. A Cerveja do Museu Bohemia apresentou uma bonita cor acobreada escura, quase idêntica à de uma garrafa âmbar comum (realçando o efeito de ilusionismo do copo), um aroma bem doce, caramelado e frutado (com toques expressivos de maçãs vermelhas) e leve sensação acastanhada dos maltes usados na receita. Mostra-se bem doce, com agradável persistência na boca e um amargor que aparece bem no final e evita que ela se torne muito enjoativa. (veja aqui a avaliação completa) Meus leitores me perdoem a heresia, mas eu preferi a versão servida durante a visita porque ela apresentou uma leve sensação amanteigada de diacetil, que provavelmente indica problemas de higienização da chopeira do piso superior, mas que ressaltou agradavelmente a doçura da cerveja.

Depois de ver a variedade de países representados na exposição, é um pouco frustrante saber que você não vai poder degustar cervejas de todos os países lusófonos no bar. O cardápio apresenta rótulos portugueses, angolanos e brasileiros (entre os brasileiros, Skol e Brahma). Eu aproveitei a oportunidade para degustar, acho que pela primeira vez na vida, uma cerveja africana, produzida em Angola, e para conseguir o primeiro rótulo africano da minha coleção. Para mim foi um momento emocionante, já que minha atividade profissional sempre se ligou a temas de história da África (e de Angola em especial), mas a verdade é que a cerveja estava sofrível. Problemas de transporte? Não só: havia claros problemas do processo produtivo também. Nunca mais vou reclamar da qualidade das cervejas industriais brasileiras.

Uma salada indigesta de lusofonia e capitalismo

Quando observamos que o foco do Museu da Cerveja não é nem oferecer informações históricas consistentes e nem explorar um acervo material, torna-se claro que seu objetivo primordial é outro: vender cerveja. Espero não estar sendo leviano demais, mas minha impressão sincera é a de que, pelo menos por enquanto, o museu é uma espécie de “maquiagem cultural” para uma cervejaria e restaurante para turistas numa região de Lisboa em processo de valorização comercial. Para o restaurante, a montagem de uma instituição museológica oferece benefícios fiscais e oportunidades de parcerias privadas. Para as cervejarias, o espaço expositivo funciona como propaganda para suas marcas. Ambos ganham: quem sai perdendo, além do visitante, evidentemente, é a cultura cervejeira e a boa Museologia.

As noções de “lusofonia” e de integração cultural dos países de língua portuguesa, conceitos da moda no campo da gestão pública da cultura, ajudam a criar essa maquiagem cultural e reforçam a vocação turística da cervejaria. Aliás, a denominação oficial do museu, com nome-e-sobrenome, é Museu da Cerveja dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Há planos, inclusive, de que sejam abertas filiais em outros países de língua portuguesa – nomeadamente, em São Paulo (Brasil) e em Maputo (Moçambique). A lusofonia, sem dúvida, é ótimo pretexto para explorar oportunidades de investimento e franquias internacionais. Infelizmente, no caso do Museu da Cerveja, ela não se faz acompanhar da possibilidade de explorar experiências históricas, culturais, e nem mesmo gastronômicas, dos outros países-irmãos falantes do idioma de Camões. Uma pena, pois seria um conceito bastante interessante.

Na próxima parte desta matéria, apresentarei um contraponto ao Museu da Cerveja, falando um pouco sobre a proposta curatorial dos chamados ecomuseus a partir da visita que fiz ao extraordinário Museu Bruxelense da Gueuze. Não perca!

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