Como alguns dos meus leitores talvez já saibam, acabo de
passar por um estágio de dois meses na capital portuguesa. Foi um estágio
profissional, ligado à minha pesquisa de doutorado, mas é claro que aproveitei
as brechas do trabalho acadêmico para conhecer um pouco da cultura cervejeira
lusitana. Ainda pretendo fazer um relato completo do que há para se ver e fazer
em relação a cervejas em Lisboa, mas quero pôr o carro na frente dos bois por
um momento para falar de outro assunto que muito me interessa: museus.
Museologia e museus
temáticos
Prédio da primeira fábrica da Bohemia no Brasil,
reformulado para abrigar o Museu Bohemia Experience.
Fonte: pauloratto.com.br |
Ao contrário do que muita gente pensa, museus não são depósitos
de velharias para a gente matar o tempo e ver coisas pitorescas antes de partir
para alguma outra atração turística mais descolada. Já atuei profissionalmente
em instituições museológicas (mais especificamente, no Museu Afro Brasil) e posso assegurar que museus são
instituições complexas, com várias importantes funções sociais para além do
Turismo. Os problemas (conceituais e práticos) ligados à montagem e manutenção
de museus e exposições museológicas são complexos o bastante para que exista
uma ciência exclusivamente dedicada a eles, a Museologia. Pois bem: é justamente
à luz de alguns princípios da Museologia que pretendo analisar dois museus
cervejeiros que tive a oportunidade de visitar recentemente, começando pelo
Museu da Cerveja de Lisboa.
A visita ao museu
Fachada do Museu da Cerveja, na bela arcada
da
Praça do Comércio, com mesas na calçada.
Fonte: acervo pessoa |
O espaço museológico, propriamente dito, ocupa apenas o piso
superior, enquanto o térreo e a parte externa, nas calçadas da Praça do
Comércio, são dedicados a um restaurante e cervejaria. A exposição divide-se em
três núcleos: no primeiro, temos alguns painéis informativos, com textos e
imagens, a respeito da história da cerveja em Portugal. Somos informados acerca
da produção e do consumo de cervejas no país desde a época do povoamento celta
até os dias atuais. Encontram-se expostos alguns poucos artefatos, em sua
maioria equipamentos ligados à produção e consumo de cerveja nos séculos XIX e
XX, doados pelas cervejarias portuguesas.
Vitrines com garrafas antigas e materiais
publicitários de cervejas portuguesas.
Fonte: thebeerstyles.com |
Por fim, a visita termina com uma constrangedora e
fantasiosa recriação de uma cervejaria monástica medieval. Um educador do museu
fantasiado de hábito monástico nos recebe à entrada e nos conduz a um ambiente pequeno
e escuro, onde, ao lado da estátua de cera de um monge, somos apresentados aos
ingredientes da cerveja sobre uma escrivaninha: “malte claro”, “malte escuro” e
um vidro com lúpulos em flor, cujo aroma pode ser sentido pelo visitante. O
educador que orienta a visita ainda nos apresenta réplicas de equipamentos
usados na produção de cervejas no período e, por fim, serve de uma chopeira em
forma de barril uma pequena porção de uma cerveja exclusiva do museu.
Ao sair desse ambiente, descemos as escadas para nos
encontramos novamente no bar/restaurante, onde se podem apreciar os chopes
exclusivos do museu e outras cervejas portuguesas, brasileiras e angolanas em
garrafa e lata, tudo acompanhado de um cardápio composto majoritariamente por
peixes e frutos do mar.
Problemas conceituais
Para um profissional de museus com formação como sommelier
de cervejas, é difícil saber por onde começar a apontar os problemas do Museu
da Cerveja. Em primeiro lugar, salta aos olhos a pobreza do acervo material:
alguns poucos equipamentos produtivos de pequeno porte, garrafas e materiais promocionais
(uma vasta parte dos quais é atual) em número pouco representativo, sobretudo em
relação aos outros países além de Portugal, e um ambiente (a adega monástica)
composto totalmente por réplicas, algumas de duvidosa fidelidade histórica.
Recriação de uma cervejaria monástica medieval.
Não
dá para ver bem como eram feitas
as cervejas na Idade Média?
Fonte: lifestyle.publico.pt |
À parte as informações equivocadas, também há problemas
conceituais graves na idealização da exposição. É evidente que existiu, em
algum momento, uma consultoria história para a composição dos painéis informativos
(principalmente no primeiro núcleo), mas não encontrei informações sobre a
curadoria do museu, nem durante a visita, nem no site da instituição. Os
núcleos expositivos não têm um fio condutor claro e não se ligam de forma
consistente entre si: temos vitrines de cervejas de todos os países lusófonos (desproporcionalmente
representados), informações históricas exclusivamente a respeito de Portugal e
a recriação de uma cervejaria monástica que está longe de ser uma
particularidade portuguesa – e muito menos dos países lusófonos.
Primeiro núcleo do museu, com os painéis
informativos.
O acervo material aqui é apenas ilustrativo.
Fonte: sabores.sapo.pt
|
Nos momentos mais problemáticos, os objetos servem de
“cenografia” para uma tentativa de recriar uma experiência histórica (as
cervejarias monásticas medievais) de forma caricatural e pitoresca. Um dos
museólogos que mais respeito, Ulpiano Meneses (que foi responsável pelo projeto
atual do excelente Museu Paulista, vulgarmente conhecido como Museu do
Ipiranga), alertou veementemente para os perigos e os problemas conceituais dos
chamados living museums, que tentam
recriar cenograficamente períodos do passado para dar aos visitantes a ilusória
sensação de “viajar no tempo”. Ora, nós somos indivíduos do presente, com os
valores da nossa época, de modo que essa tentativa de “sentir a experiência” de
épocas passadas só pode resultar em uma grotesca mistificação da história. Não
existe atalho de volta ao passado; a única coisa que nos resta é tentar
compreender o passado por meio do conhecimento – e os objetos podem nos ajudar
nessa tarefa. (para quem tiver interesse, um excelente artigo do Ulpiano em que
ele explora essa questão pode ser acessado clicando aqui)
O bar e restaurante
No piso térreo, o visitante termina (ou começa) sua visita
num espaço amplo e moderno em que pode se sentar ao balcão ou às mesas para
beber uma cerveja e apreciar receitas portuguesas, principalmente frutos do
mar. O destaque vai para os chopes da casa, chamados de “Cerveja do Museu” e
produzidos com exclusividade para a instituição pela Sociedade Central de
Cervejas, a mesma que produz os rótulos da marca Sagres. Há três estilos: Clara,
Escura, e Bohemia. Trata-se, respectivamente, de uma American standard lager, uma
American dark lager (que os portugueses normalmente chamam de “stout”) e uma
Vienna lager. A Cerveja do Museu Bohemia é a mesma da degustação ao final da
visita ao museu, e no bar pode-se apreciá-la em doses mais generosas. O mais
interessante é o copo do chope: sua superfície interna é moldada na forma da
boca de uma garrafa de cerveja, de modo que, quando o chope é servido, parece
que há uma garrafa de ponta cabeça dentro do copo! O visual é curioso, além de
que a dupla camada de vidro protege o chope contra a variação de temperatura.
Boa sacada.
Cerveja do Museu Bohemia.
O copo de cerâmica você
ganha
ao comprar o tíquete para o museu.
Será que você reconhece os rótulos
na
prateleira superior, ao fundo?
Fonte: acervo pessoal |
Depois de ver a variedade de países representados na
exposição, é um pouco frustrante saber que você não vai poder degustar cervejas
de todos os países lusófonos no bar. O cardápio apresenta rótulos portugueses,
angolanos e brasileiros (entre os brasileiros, Skol e Brahma). Eu aproveitei a
oportunidade para degustar, acho que pela primeira vez na vida, uma cerveja
africana, produzida em Angola, e para conseguir o primeiro rótulo africano da
minha coleção. Para mim foi um momento emocionante, já que minha atividade
profissional sempre se ligou a temas de história da África (e de Angola em
especial), mas a verdade é que a cerveja estava sofrível. Problemas de
transporte? Não só: havia claros problemas do processo produtivo também. Nunca
mais vou reclamar da qualidade das cervejas industriais brasileiras.
Uma salada indigesta
de lusofonia e capitalismo
Quando observamos que o foco do Museu da Cerveja não é nem
oferecer informações históricas consistentes e nem explorar um acervo material,
torna-se claro que seu objetivo primordial é outro: vender cerveja. Espero não
estar sendo leviano demais, mas minha impressão sincera é a de que, pelo menos por
enquanto, o museu é uma espécie de “maquiagem cultural” para uma cervejaria
e restaurante para turistas numa região de Lisboa em processo de valorização
comercial. Para o restaurante, a montagem de uma instituição museológica
oferece benefícios fiscais e oportunidades de parcerias privadas. Para as
cervejarias, o espaço expositivo funciona como propaganda para suas marcas. Ambos
ganham: quem sai perdendo, além do visitante, evidentemente, é a cultura
cervejeira e a boa Museologia.
As noções de “lusofonia” e de integração cultural dos países
de língua portuguesa, conceitos da moda no campo da gestão pública da cultura,
ajudam a criar essa maquiagem cultural e reforçam a vocação turística da
cervejaria. Aliás, a denominação oficial do museu, com nome-e-sobrenome, é
Museu da Cerveja dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Há planos, inclusive,
de que sejam abertas filiais em outros países de língua portuguesa –
nomeadamente, em São Paulo (Brasil) e em Maputo (Moçambique). A lusofonia, sem
dúvida, é ótimo pretexto para explorar oportunidades de investimento e
franquias internacionais. Infelizmente, no caso do Museu da Cerveja, ela não se
faz acompanhar da possibilidade de explorar experiências históricas, culturais,
e nem mesmo gastronômicas, dos outros países-irmãos falantes do idioma de
Camões. Uma pena, pois seria um conceito bastante interessante.
Na próxima parte desta matéria, apresentarei um contraponto
ao Museu da Cerveja, falando um pouco sobre a proposta curatorial dos chamados
ecomuseus a partir da visita que fiz ao extraordinário Museu Bruxelense da
Gueuze. Não perca!
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