Na transição da Idade Média para a época moderna, a região
de Flandres (que atualmente corresponde a parte da Bélgica e Holanda)
participou ativamente de uma das mais vigorosas transformações na pintura europeia,
desenvolvendo o que veio a ser conhecido como a “escola flamenga” de pintura. Embora
seja normalmente reconhecida como parte do Renascimento europeu, a escola
flamenga difere bastante da arte italiana da época. Sua pintura tornou-se
conhecida pelo seu detalhismo exuberante e pela maior atenção ao ambiente e à
paisagem circundante. Como resultado, em vez de se ater a algumas figuras
importantes, a pintura flamenga muitas vezes produziu grandes painéis de
inigualável riqueza de detalhes e informações sobre o modo de vida da época.
Ora, todos nós, apreciadores de cerveja, estamos carecas de
saber que, além de ser o berço da escola flamenga, essa parte da Europa também
é uma das mais tradicionais regiões produtoras de cerveja do mundo. Não
espanta, portanto, que a cerveja tenha sido figurada com alguma frequência nas
obras de arte da época. Partiremos hoje da obra de um pintor chamado Pieter Bruegel
(também conhecido como Brueghel, o Velho, já que seu filho também veio a se tornar
pintor) para refletir um pouco sobre o papel da cerveja e dos alimentos de
forma geral na cultura europeia da época. Bruegel é autor de uma série de
representações da vida camponesa do período – alguns afirmam que ele chegava a
se vestir como camponês para poder frequentar eventos populares e observar
melhor! E, como não poderia deixar de ser, a cerveja aparece em algumas dessas
representações.
Cerveja e festa
Pieter Brueguel – O casamento camponês (1568)
Fonte: http://www.ibiblio.org |
Tomemos como exemplo O
casamento camponês, de 1568. Essa pintura é notável por vários motivos. Observe-se
especialmente a solução da composição, feita de forma assimétrica com
perspectiva em dois pontos de fuga, o que consegue ao mesmo tempo criar um
amplo espaço para os convivas do lado esquerdo sem esconder as personagens
sentadas à mesa. A noiva, figura principal do evento, é destacada de forma
sutil e natural pelo tecido verde pendendo atrás dela. Mas o verdadeiro
protagonista do quadro é o povo, com sua disposição de aproveitar ao máximo a
festa, conversando alegremente, ouvindo música e comendo e bebendo o que, na
época, era uma raríssima fartura alimentar. Aliás, não é assim até hoje?
Conheço algumas pessoas que só vão a casamentos para comer e beber – e,
evidentemente, depois falar mal da comida e da bebida pela qual foram à festa.
Pieter Brueguel – O
casamento camponês (1568)
-
detalhe
Fonte: http://www.ibiblio.org |
O observador atento já terá visto a cerveja na cena. Há
alguns jarros e canecos de cerâmica sobre a mesa – lembremo-nos de que não era
costume usar vidro nos copos de cerveja antes do século XIX. E, principalmente,
há a figura no canto inferior esquerdo, enchendo um jarro pequeno a partir de
um grande cântaro. A cena evoca as representações pictóricas das bodas de Canaã,
durante as quais se atribuiu a Cristo o milagre de transformar água em vinho.
Esse aí sabia das coisas. Aliás, numa primeira olhadela, pensaríamos se tratar
de vinho o que está representado n’ O
casamento camponês. Mas a cor do líquido indica claramente que era a
cerveja que abastecia a animada festa popular.
Assim, à temperatura ambiente, em jarros abertos,
possivelmente sem carbonatação? É, assim mesmo. Existem alguns lugares
tradicionais na região de Bruxelas, na Bélgica, em que você ainda pode dar a
sorte de encontrar a cerveja sendo servida dessa maneira: nas cervejarias que
produzem lambics e em alguns cafés em que elas são servidas “à tradicional”. Na
cervejaria Cantillon, por exemplo, a lambic simples (mas não a gueuze e nem as
com frutas) é servida exatamente dessa forma: em jarros de barro, à temperatura
ambiente e sem carbonatação. Aliás, é provável que a cerveja que tenha sido
figurada na pintura seja uma cerveja de fermentação espontânea, como as
lambics, que eram muito mais comuns na época do que são hoje – para a minha
infelicidade, diga-se de passagem, já que sou um amante inveterado do estilo.
Cerveja e fartura
Diante disso, devemos encarar a possibilidade de que outras
bebidas servidas em jarros de cerâmica nas pinturas de Bruegel e de outros mestres
flamengos fossem também cerveja. Outra cena em que isso é sugerido é a tela A colheita do milho, pintada por Bruegel
alguns anos antes, em 1565:
Pieter Brueguel – A colheita do milho (1565)
Fonte: http://upload.wikimedia.org |
A composição, mais uma vez assimétrica, se divide mais ou
menos na metade pela árvore em primeiro plano. À esquerda dela, uma elaborada
paisagem dos campos flamengos com uma aldeia ao fundo; à direita, na parte
inferior, alguns trabalhadores rurais descansam e fazem uma refeição. Um deles,
de camisa vermelha, sorve avidamente um líquido de um grande cântaro como
aqueles que vimos n’ O casamento camponês.
A associação com a cerveja é sugerida pela própria cena: estamos em uma região
produtora de grãos, e não de uvas, e é provável que o recipiente de barro
contenha um pouco da produção cervejeira local. Um dos trabalhadores dorme
tranquilamente à esquerda da árvore, talvez levemente amortecido pelo álcool.
A cerveja infinita, fluindo caudalosa como um rio, fazia
parte dos sonhos de fartura típicos da cultura camponesa da Idade Média e do
início da época moderna. Nas duas telas que vimos, a cerveja está associada a momentos
de alegria e de abundância: num caso, uma festa de casamento, comemoração e
ocasião de beber e comer à vontade. No outro, a época da colheita, que marca um
momento de alegria e de otimismo pela chegada de mais alimento, prometendo fartura
à mesa durante os meses seguintes. A cerveja, como bebida por excelência ligada
aos grãos, ao cultivo e à mesa, marca presença nessas cenas de alegre e
inocente comilança.
Uma sombria
ambiguidade
Em várias regiões da Europa medieval, acreditava-se na
existência de um país fantástico chamado Cocanha,
a terra da abundância. Descrições da época mostram o país da Cocanha como uma
espécie de paraíso terrestre, em que o leite, o vinho e o mel corriam em
riachos, a comida caía dos céus nas bocas das pessoas e as árvores abundavam
com frutos. Em uma cultura camponesa marcada pela ameaça real da fome e da
carestia (as crônicas da época relatam diversos anos de grande mortandade pela
falta de alimentos), o país da Cocanha simbolizava uma compreensão carnal,
imediata e material da felicidade e do paraíso. Um mundo sem preocupações, em
que o gozo era lei inevitável. Até por isso, esse mito foi visto com alguma
ambiguidade pelos teólogos da Igreja – os quais, cada vez mais, passaram a defender
a mensagem de que a verdadeira salvação da alma implicava abandonar os prazeres
da carne. No século XVI, a região de Flandres tinha uma forte presença de
protestantes, para os quais a mensagem do ascetismo e da negação do corpo era
ainda mais importante do que para os católicos.
Nesse contexto cultural, não é de estranhar que a “cerveja
abundante” dos sonhos camponeses fosse vista com alguma reserva, principalmente
pela cultura erudita da época. Não propriamente por causa do álcool (como
ocorre hoje), mas porque ela se misturava a utopias carnais e materiais que
pareciam ameaçadoras do ponto de vista religioso.
Pieter Brueguel – O país da Cocanha (1567)
Fonte: http://upload.wikimedia.org |
A representação de Bruegel do país da Cocanha, que você vê
acima, mostra exatamente essa ambiguidade. Vemos em primeiro plano três homens
deitados: da esquerda para a direita, um camponês, um cavaleiro e um padre,
simbolizando os três estados da sociedade. Acima deles, uma mesa com comida e
jarros deitados, presumivelmente já consumidos pelos três convivas. Animais
abatidos jazem pelo cenário, e uma infinidade de tortas está sobre uma mesa.
Até as montanhas, ao fundo, parecem feitas de alguma guloseima semelhante a
creme ou geleia.
Contudo, há algo de sombrio na representação da cena: as
cores são escuras e as figuras aparecem com um ar levemente patético
(especialmente notável no soldado ao fundo, com a boca aberta esperando que a
comida caia do céu). Mais que isso: deitadas, em torpor, elas parecem ter
esquecido suas atribuições e responsabilidades: a Bíblia do padre está sacrilegamente
jogada no chão à sua esquerda, bem como a luva e a lança do cavaleiro também
jazem inúteis ao seu lado.
Pieter Brueguel – O triunfo da morte (1562) -
Detalhe
Fonte: http://www.ibiblio.org |
O tom da cena aqui não é de alegria: é quase de condenação,
lembrando a representação de Bruegel do Triunfo
da Morte, de 1562, em que a morte e os cavaleiros do apocalipse atacam
implacavelmente os homens bebendo, tocando música e jogando gamão (veja ao lado
um detalhe da obra). Em todas essas cenas, nota-se o fascínio exercido nos
homens dessa época pela abundância de comida e bebida, mas também,
simultaneamente, os seus potenciais perigos para a alma. A morte ronda essas
cenas de alegre e inocente divertimento como uma espécie de lembrete
onipresente do pecado e da futilidade da carne mortal. Mesmo as cenas
camponesas que vimos acima – O casamento
camponês e A colheita do trigo –
têm algo de patético, de irônico, uma perturbadora falta de identidade entre o
pintor e a cena que ele retrata.
Encontramo-nos aqui nos albores de uma era em que a
abnegação, o controle do corpo e a disciplina seriam cada vez mais exigidos, à
medida que o prazer gratuito e descompromissado passaria a ser visto com crescente
desconfiança. E a cerveja, com sua remissão a sonhos de fartura, seu efeito
entorpecente e sua presença em celebrações da abundância, passaria a estar sob
a vigilância dos olhos da moralidade. Sombrio prenúncio dos nossos tempos
modernos.
Não é à toa que a gula é um pecado capital. Bom texto.
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