quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Cerveja e artes plásticas: Os vários canecos de Juan Gris

Sim, eu sei que eu já coloquei o 
“Homem no café” (1914) de Juan Gris 
na última matéria. Mas o que é um 
clássico senão aquilo que 
merece ser sempre revisto?

Na última matéria deste blog, falamos um pouco sobre os homens no café do pintor espanhol Juan Gris, e pudemos ver como a mudança no sentimento expresso pelo pintor correspondeu igualmente a uma mudança na bebida figurada em cada uma das duas obras. Na pintura de 1912, a taça de martini indicava a elegância e o complicado jogo do “ver-e-ser-visto” da alta sociedade; na composição elaborada dois anos depois, o enfoque do pintor nos sentimentos interiores harmonizou não mais com o elegante martini, mas com um imponente caneco de cerveja. Do ponto de vista de um artista buscando a expressão dos sentimentos, foi um dos maiores elogios à cerveja que eu já vi no mundo das artes.

Há alguns pequenos detalhes da pintura de 1914, porém, que poderiam nos causar alguma perplexidade. Mas talvez a comparação com um outro caneco de cerveja de Juan Gris ajude a esclarecer melhor o assunto. É isso mesmo: o cubista espanhol deve ter sido um baita apreciador do nobre líquido, porque este figura em todo o seu esplendor, esbanjando farta e invejável espuma, em mais de um de suas pinturas. O que pode nos intrigar no “Homem no café” de 1914, a princípio, é a situação à qual Gris associou a bebida. Temos um distinto senhor trajando cartola e casaca, lendo um jornal num café chique, bebendo sozinho sua cerveja. É contraintuitivo: estamos acostumados a encarar a cerveja como uma bebida alegre, descontraída, para reuniões agradavelmente barulhentas, cheias de gente e pontuadas de gargalhadas fáceis e maravilhosamente gratuitas. A sobriedade e a introspeção do “Homem no café” de Juan Gris pode nos espantar: sozinho, lendo seu jornal de cartola, ele não corresponde à imagem mais comum que fazemos do bebedor de cerveja.

Claro que a cerveja também pode ser uma companhia perfeita para um momento de quietude e introspecção como aquele retratado por Gris. Alguns tipos de cerveja, como a clássica barleywine ao pé da lareira numa noite fria, quase imploram para que você pare tudo o que está fazendo e pense um pouco sobre os rumos da vida. Mas cadê a alegria e o espírito lúdico que acompanham a cerveja e seus bebedores há milênios? Claro que Gris, como bom apreciador da bebida que era, não deixou de contemplar também esse aspecto. Vejamos, por exemplo, uma natureza-morta de 1913 chamada “Copo de cerveja e cartas de baralho”: 

Juan Gris – Copo de cerveja e
cartas de baralho (1913)
Fonte: http://en.wikipedia.org

A alegria que associamos à cerveja está indicada nessa pintura. Mais uma vez, como comentamos a respeito da pintura de 1914, não vemos a cena completa, e sobretudo não vemos as pessoas que deveriam estar aí. O objetivo do pintor não era nos mostrar um grupo de bebedores em torno de uma mesa de baralho, mas praticamente nos fazer sentirmos dentro da cena. É como se estivéssemos olhando para os mesmos objetos que os jogadores. A centralidade é claramente da caneca, e aqui Gris explorou todas as possibilidades visuais do copo: vemos a caneca completa bem ao centro e, tanto acima quanto à sua direita, vemos o colarinho branco do alto, o perfil da caneca e o contorno da espuma, traçados com uma linha. O contraste da dureza reta da caneca com as curvas da espuma é explorado à farta pela troca de perspectivas e pelos perfis contornados, característico do cubismo.

Mas é na parte esquerda da tela que vemos os acessórios do alegre jogo: os naipes do baralho e a boca do cachimbo mostram um momento tipicamente masculino de reunião e descontração. A parede azulejada do ambiente transmite vida e alegria pela sua cor intensa, e também sugere um encontro fora de casa e das preocupações das tarefas cotidianas. Ah, agora sim!, uma situação mais próxima daquela à qual primeiramente associamos a cerveja, não é? Agora tudo faz sentido!

Menos uma coisa. A cor da cerveja. A esta altura, já entendemos que Gris brinca com as bebidas para simbolizar sentimentos associados a cada uma das cenas que ele quer retratar, o que é um exemplo eloquente de “pensar com o copo” (como já comentei aqui). Mas por essa não estávamos esperando. A cena solitária e introspectiva da tela de 1914 retrata uma cerveja clara, enquanto a cena coletiva e lúdica da pintura de 1913 mostra uma cerveja escura. Normalmente associamos momentos de introspecção a cervejas mais escuras e pesadas – eu mesmo falei de barleywines agora há pouco. Será que Gris tinha um conhecimento limitado de cervejas e acabou “errando na cor”?

Claro que não. Uma das coisas mais importantes que aprendi como historiador é que, quando estamos vendo documentos do passado e encontramos alguma incongruência com aquilo que pensamos num primeiro momento, provavelmente quem está sendo incongruente somos nós. Estamos pensando com a nossa cabeça do presente para tentar entender o passado – pecado capital que os historiadores pomposamente chamam de “anacronismo”. Essas pequenas surpresas são excelentes oportunidades para entendermos como as pessoas não pensavam como nós antigamente.

Esse solzinho de merda jamais irá
vencer minha stout!
Fonte: blahblahblahscience.com
Vejamos, então. Hoje em dia, nossa principal referência de cervejas claras e douradas são as American lagers (as populares “pilsens”) consumidas aos baldes na praia e no churrasco. São bebidas baratas, populares e associadas a situações de descontração. Já as cervejas escuras podem ter duas associações: na cultura popular, normalmente estão associadas ao consumo feminino na forma das malzbiers. No mundo das cervejas artesanais, as escuras estão associadas normalmente a estilos complexos e sofisticados como Belgian dark strong ale ou Russian imperial stout. As cervejas escuras às vezes até despertam uma certa “soberba” em degustadores iniciantes. Numa mesa de bebedores do pilsen, não é incomum presenciarmos aquele cervochato que pede uma porter ou uma stout e fica se gabando de que ele não bebe “cerveja com cor de mijo”. Basta observar que, no ranking brasileiro do Brejas, se contabilizarmos as 20 cervejas no topo do ranking dos usuários, nada menos que 17 são escuras (o contraste com a cena norte-americana é evidente, mas isso é assunto para outro post). É como se a cor diferenciasse o “bebedor comum” do “iluminado”. Óbvio que isso é uma bobagem do tamanho de um bonde – além de arrogante para burro –, mas é o resultado de uma cultura cervejeira que foi continuamente bombardeada pelo marketing da “loira gelada” e que só agora começa a abrir os olhos para a variedade. Variedade esta que começa pela cor, signo visível e imediato da diferença.

Só que não era nada assim na França do início do século XX, quando Gris pintou suas telas. Na época, ocorria algo mais parecido com o contrário: as cervejas tradicionalmente bebidas pelo povo por séculos haviam sido as mais escuras. Na época, era enorme a popularidade de estilos como as tradicionais dunkel de Munique, as ales escuras da escola franco-belga ou as porters inglesas. O sucesso recente das pale ales inglesas, ao longo do século XIX, já havia resultado em um significativo “clareamento” das cervejas popularmente consumidas (daí o nome “pale” para designá-las), mas ainda estamos falando de cervejas que hoje chamaríamos de “vermelhas”, e não propriamente de claras (na legislação brasileira de rotulagem, uma pale ale tradicional é obrigatoriamente denominada de “cerveja escura”). Em resumo: até o início do século XX, o popular era beber cerveja escura. Cervejas escuras evocavam situações de tabernas e divertimentos proletários – exatamente a sensação transmitida pelo “Copo de cerveja e cartas de baralho” de Juan Gris.

Até por isso, quando as cervejas realmente mais claras, como as pilsner boêmias e alemãs, disseminaram-se pelo mercado europeu na segunda metade do século XIX, foram consideradas bebidas mais refinadas e elegantes. Os finíssimos cristais boêmios eram usados para realçar a bela cor dourada e o aspecto claro e transparente dessas cervejas para um público sofisticado. É só lembrarmos que uma cerveja que hoje nos parece perfeitamente trivial – a belga Stella Artois – foi lançada como uma bebida comemorativa de natal, tamanho o refinamento que se lhe atribuía. Aliás, o marketing da marca tem tentado recentemente – de forma muito bem-feita, por sinal – resgatar essa aura de sofisticação e elegância da cerveja clara. Um exemplo é a propaganda que você vê abaixo, que resgata o caráter originalmente solene da bebida, com música francesa, cenário europeu invernal e claras referências ao champagne:



Diante disso, as pinturas de Juan Gris fazem total sentido. A cena de “Copo de cerveja de cartas de baralho”, mais popularesca e descontraída, figura aquilo que, na época, era visto como uma cerveja mais popular e rústica. Já o elegante “Homem no café”, trajando sua casaca e cartola, de fato parece mais condizente com uma cerveja que carregasse uma aura socialmente mais nobre. Aqui, o contraste entre a cerveja clara e a escura parece simbolizar a diferença entre um espaço popular e possivelmente mais grosseiro e uma situação pública, elegante e de boa impressão.

É inegável que cada estilo de cerveja tem suas características e vocações próprias, prestando-se melhor a algumas situações do que a outras. Mas também é preciso ter a humildade de reconhecer que nossos pensamentos, gostos, preferências e modos de fazer as coisas não são absolutos, e estão mudando a todo momento. Mais uma vez, reitero: as percepções relativas a diferentes bebidas nem sempre – ou antes, quase nunca – estão apenas dentro do copo, objetivamente. Muitas vezes elas são o resultado do infinito trabalho da cultura humana de investir os objetos à sua volta de significado. Vivenciar o significado dessas situações é testemunhar séculos e milênios de transformações do mundo pelo homem. Um brinde à cultura!

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