domingo, 15 de fevereiro de 2015

A explosão selvagem de 2014

Depois de ler os votos publicados na enquete organizada pelo Roberto Fonseca sobre a cena cervejeira de 2014 no Brasil (para quem não viu, fica a indicação de leitura), consolidei minha impressão de que o ano que passou foi um momento de intenso despertar do público brasileiro pelas cervejas selvagens – as sour ales e seus subestilos, desde as arquiclássidas (e arquiclassudas) lambics belgas até as descompromissadas e refrescantes Berliner Weisse. Produtores, profissionais, especialistas e amantes inveterados de cerveja estão definitivamente com os radares ligados para esse estilo cervejeiro, e há previsões bastante concretas de que, em 2015, teremos pelo menos alguns lançamentos de sour ales de cervejarias brasileiras. Quando escrevi aqui sobre cervejas selvagens produzidas no Brasil, há pouco mais de um ano, o cenário era um deserto desolador. Hoje, as coisas estão mudando.

Desafios do azedume no Brasil

Diante desse cenário de consolidação das sour ales no Brasil, levanto algumas questões a respeito da possibilidade de que esses estilos consigam ganhar mercado no Brasil nos próximos anos. A primeira delas diz respeito à aceitação do público. Há um entusiasmo dos especialistas em relação às sours, mas não sei até que ponto o público em geral está receptivo a tanto azedume. Há alguns dias li uma reportagem da Folha de S. Paulo, na qual Alessandro Oliveira, cervejeiro da Way Beer, afirmou que parte dos consumidores tem estranhado as sours lançadas pela cervejaria. Em suas palavras: “tem gente que manda e-mail para nós dizendo que comprou cerveja estragada, azeda”. Há uma monumental tarefa de educação do consumidor pela frente, se quisermos que as sour ales desenvolvam potencial de mercado no Brasil ao ponto de se tornarem algo mais do que lançamentos para um nicho minúsculo. Tenho a impressão de que o público bebedor de vinhos (acostumado a valorizar bebidas ácidas) é um mercado a se explorar. Na Europa, uma boa parte dos entusiastas tradicionais de lambics e sour ales belgas vem da comunidade dos enófilos, e não dos bebedores de cerveja. É algo a se pensar para o marketing das nossas cervejarias.


A segunda questão (que está relacionado com a primeira) diz respeito ao preço. Já cansei de dizer aqui: sour ales são estilos difíceis de se fabricar, demandam uma boa dose de tentativa e erro, requerem longos tempos de maturação e fermentação e geralmente necessitam de barris de madeira. Tudo isso encarece o produto. Há cervejarias que repassarão integralmente os custos ao consumidor, e aí é batata que as suas sours chegarão às prateleiras numa faixa de preços incompatível com o mercado, ainda mais em um ano em que se acena com a possibilidade de recessão e retração do consumo. A mineira Falke comercializa desde 2011 uma sour ale com jabuticaba – a Falke Vivre Pour Vivre –, mas ela chega ao mercado custando acima de R$ 200. Quem é que provou, sinceramente? (eu já!) Aqueles que já provaram, comprariam de novo? Duvido muito. Se a receita se repetir, esses lançamentos podem ser um tiro no pé, monumentais elefantes brancos nos empórios que certamente vão demandar muito mais esforço para vender do que o famoso elefantinho rosa belga (desculpe, não resisti). Outras cervejarias provavelmente encararão as despesas extras como um investimento para a valorização da marca (o que, cá para mim, parece uma estratégia de mercado mais consistente para quem tem condições), e tentarão colocar suas sours no mercado com um preço apenas marginalmente superior ao de seus rótulos mais elaborados e intensos. É esperar para ver, mas o fato é que, a depender dos preços, vai ser ainda mais difícil que esses rótulos atinjam o público médio. O Brasil já tem excelentes sours belgas clássicas a preços acessíveis, e não sei se é inteligente cobrar muito mais por sour nacionais.

Ainda mais se essas cervejas nacionais estiverem muito abaixo do nível das belgas clássicas que temos no Brasil. O que me leva à minha terceira preocupação: qual será o padrão de qualidade dos nossos lançamentos de sours nos próximos dois anos? Sabemos que há cervejarias que já estão se preparando há algum tempo para o desafio e terão condições de oferecer produtos maduros. Mas também haverá um monte de gente que vai decidir pegar o bonde andando e irá lançar produtos sem expertise e sem o tempo de maturação adequada. Ora, uma obra-prima belga como uma gueuze demora pelo menos 3 anos e meio para ficar pronta. Se uma cervejaria brasileira quisesse lançar uma gueuze em 2015 (pode esquecer, não tem a menor condição), deveria ter começado a produzir talvez antes de 2012. Há estilos que ficam prontos mais rapidamente, mas quase nunca com menos de 1 ano, exceto os mais simples (como Berliner Weisse). Será que teremos lançamentos oportunistas com cervejas que ainda não estarão totalmente maduras, mas que serão vendidas como se fossem produtos de luxo? Ponho minha mão no fogo como teremos. E isso não será nada bom para a imagem das sours nacionais diante do público. A conjunção dos três fatores pode ser explosiva, a curto e médio prazo, num cenário de retração do consumo: resistência dos consumidores, preços altos e concorrência com belgas melhores e mais baratas. A coisa pode azedar.

“Pô, garçom, isso me custou mais que uma 
Cantillon Grand Cru Bruocsella!”
Mas nem tudo são previsões apocalípticas. Algumas cervejarias nacionais têm dado sinais de que estão enfrentando com peito aberto o desafio de produzir boas cervejas selvagens e lançá-las a preços razoáveis. Na verdade, escrevo esta matéria para falar sobre elas e fazer um balanço das sour ales lançadas no mercado nacionais em 2014. A partir daí, talvez seja possível discutir tendências, possibilidades e horizontes para a selvageria no Brasil. Abstenho-me de comentar as cervejas que ainda não foram lançadas comercialmente, de modo que me focarei apenas no que realmente chegou às prateleiras.

Mezzo selvaggio

Começo com as “menos selvagens” das selvagens lançadas comercialmente em 2014. Estou falando dos experimentos da cervejaria Tupiniquim com leveduras do gênero Brettanomyces. A estreante micro gaúcha se valeu da expertise de seus parceiros estrangeiros (a dinamarquesa Evil Twin e a norteamericana Stillwater) com cervejas com adição de Brettanomyces para lançar no mercado dois interessantes lançamentos colaborativos. Ambos foram fermentados integralmente com Brettanomyces, desde a fermentação primária até a refermentação na garrafa. Nesse contexto, as Brettanomyces se comportam de forma semelhante às Saccharomyces tradicionais, adicionando uma levíssima acidez acética e sutis aromas “exóticos” (um frescor frutado diferente, talvez um acento animal leve). As Brettanomyces demoram mais ou menos 6 meses para começar a se manifestar de forma mais clara (deixando a cerveja mais seca e com aroma animal e frutado intenso), de modo que seria preciso esperar para que essas cervejas manifestem um perfil claro de Bretta. Inclusive, há quem diga que as leveduras vendidas pelos maiores fornecedores para a produção desses estilos de “Brett ales” na verdade são Saccharomyces. Tudo isso para dizer que as selvagens da Tupiniquim têm um pezinho bem tímido no lado da selvageria. O que já é suficiente no cenário que vivemos.

Fonte: www.ocontadordecervejas.com.br
O primeiro lançamento selvagem da marca foi a excelente Tupiniquim/Evil Twin Lost in Translation IPA Brett. Já falei sobre essa cerveja aqui antes, então não quero me alongar, mas acho que foi o rótulo mais interessante que a cervejaria já lançou até o momento, do meu ponto de vista. Tem a vantagem de ser uma IPA de boa qualidade (o que já é um mérito por essas bandas), seca, com amargor limpo e afiado e com bons aromas herbais (verbena) e frutados (manga, mamão, limão). As Bretta contribuem com um suave toque exótico que remete a uvas verdes, couro de sapateiro e borracha defumada. Ótima pedida. A segunda boa cerveja “semisselvagem” da marca foi a Tupiniquim/Stillwater Saison de Caju, saison inteiramente fermentada com Brettanomyces e produzida com adição de polpa de caju e manga. Acho que essa foi a primeira saison nacional que provei que saiu realmente fiel ao estilo. Amarela clara e opaca na taça, com espuma nababescamente alta e muito persistente. No aroma, frutas, terroso e especiarias em equilíbrio, como preconiza o estilo. Na ala das frutas, a manga é bem mais evidente que o caju (o que, de certa forma, torna o nome da cerveja um pouco estranho), e sentem-se também abacaxis maduros, laranja e damascos secos trazidas pela levedura. Terroso e pimenta-do-Reino em boa intensidade trazem o tradicional contraponto do estilo. Um pouquinho de pão branco do malte, um tiquinho de untuosidade de DMS. O paladar é bem seco, com acidez expressiva na boca e um final amargo, terroso, típico do estilo. O corpo é mediano e a adstringência é perceptível. Contudo, as Brettanomyces aqui ficaram bem apagadas, quase imperceptíveis. Talvez – e eu digo talvez – um toque de borracha defumada ao fundo, lembrando a Lost in Translation. Ou estaria eu sugestionado? Não importa: o fato é que o perfil de Bretta é muito sutil, de modo que é melhor encará-la como uma saison bem feita. Acredito que, depois de uns 6 meses na garrafa, as danadas das Brettanomyces vão começar a aparecer.

Selvageria germânica

Outra cervejaria que andou brincando com estilos selvagens foi a tradicionalíssima e germaníssima Abadessa, também do Rio Grande do Sul. Em 2014, a micro gaúcha lançou comercialmente sua versão para o estilo Gose, estilo selvagem tipicamente associado à região de Leipzig, na Alemanha (clique aqui para saber mais sobre esse estilo pouco conhecido e que quase foi extinto). A Abadessa Gose já havia sido lançada em 2013, mas não tinha sido engarrafada e distribuída comercialmente devido a pendências com o registro da cerveja. Em 2014, ela finalmente chegou aos empórios. A microcervejaria apostou numa interpretação suave do estilo, que potencializasse sua drinkability e sua refrescância, distante da acidez mais acentuada que parece ter sido marca das versões mais tradicionais dos séculos XVIII e XIX. A Abadessa Gose não fermenta com bactérias láticas para desenvolver sua acidez. Em vez disso, recebe adição de ácido lático já pronto, apenas para “ajustar” a acidez desejada, o que faz com que o azedinho fique bem suave. Como é típico do estilo, ela também recebe sal e sementes de coentro.

Essa bruxa me dá medo. 
De um jeito errado.
Fonte: cervejasartesanaisdobrasil.blogspot.com
O resultado é ao mesmo tempo sutil e surpreendente. Na taça, a Abadessa Gose mostra um dourado radioso, levemente esbranquiçado, e alguma turbidez. Na boca, abre com uma leve doçura de malte e desenvolve uma acidez suave e refrescante, um firme amargor de lúpulos e um apetitoso toque salgado, tudo se alternando na boca e se equilibrando sem que nada sobressaia. No aroma, muito pão branco, floral de lúpulo nobre (pareceu-me a variedade Saaz com seu perfume de camomila), o cítrico-apimentado das sementes de coentro e um frutadinho que lembra banana verde, tudo em harmonia. A persistência na boca é muito alta e agradável (como é uso ocorrer nas cervejas da Abadessa, aliás), com sabor rico de pão branco e sensação seca, amarga, ácida, levemente salgada, extremamente apetitosa. Apesar do corpo mediano, o sal preenche a boca e dá volume. Parece uma Münchner Helles com sal, coentro e uma leve acidez. Não espere um exemplar extremo ou marcante do estilo: a Abadessa Gose é uma cerveja sutil e equilibrada, talvez um pouco conservadora, sim, mas com um enorme poder de abrir o apetite. Imagino imediatamente esta cerveja sendo servida como aperitivo em uma festa numa tarde de calor.

Frutas tropicais

De todos os lançamentos selvagens do ano de 2014, talvez o que mais tenha chamado a atenção do público e da mídia especializada foi a linha Sour me Not, da microcervejaria curitibana Way Beer. Também, pudera. São 3 rótulos de sour ales inclementemente ácidas, com receitas parecidas, mas diferenciando-se pela adição de diferentes frutas: morango, acerola e graviola. A Way mexeu com o imaginário do público brasileiro, mostrou que as cervejarias brasileiras estão antenadas com a tendência internacional das sour ales e, de quebra, ainda provou que é possível oferecer rótulos do estilo a preços acessíveis: a linha Sour me Not custa em torno de R$ 15 cada garrafinha. OK, não são sour ales de produção tão complicada quanto lambics. Todas têm a mesma receita de base, de um baixo teor alcoólico de 3.5%, com fermentação mista com leveduras comuns do gênero Saccharomyces e bactérias láticas do gênero Lactobacillus, sem Brettanomyces e sem passagem por madeira. E todas levam adição de polpa de frutas, claro.

Fonte: embuscadacervejaperfeita.com
Também não quero me estender especialmente nelas, uma vez que já lhes dediquei uma postagem aqui no blog. Neste momento, só quero fazer um comentário geral sobre a linha e comentar como ela se insere dentro dos lançamentos do ano. A similaridade entre as receitas da linha Sour me Not é bastante notável. Em todas, percebe-se um ataque de acidez lática muito destacada (um pouco agressiva para meu gosto) e uma doçura residual de malte também bem perceptível, sobretudo no final, com doçura notável e sabor de pão doce e baunilha. O jogo entre doce de malte e acidez lática lembra a sensação de uma Berliner Weisse, mas com tudo bem mais intenso. As três também exibiram um aroma lático um pouco estranho, lembrando iogurte ou probiótico, que pode talvez ser explicado pela intensidade da fermentação lática. O aroma da fruta fica em segundo plano, mas nas três ele é perceptível. Dito isso, cada um dos rótulos da linha tem seus destaques. A Way Beer Sour me Not Morango tem doçura um pouco acentuada demais e aroma de fruta passada ou cozida – foi a que menos me agradou das três. A Way Beer Sour me Not Acerola, preferida de muitos, é a mais seca, com acidez firme e refrescante e bons taninos, embora o aroma da fruta seja mais tímido. Mas, para mim, o destaque fica por conta da Way Beer Sour me Not Graviola: a fruta traz boa suculência (e eu adoro graviola) e a sensação de doçura é intermediária entre as outras duas, resultando em equilíbrio.

Blendagem

Um dos traços mais característicos dos estilos belgas de cervejas selvagens é o uso da técnica da blendagem: a mistura entre cervejas maturadas durante períodos de tempo variáveis, em tanques, tonéis, ou barris diferentes. A blendagem é uma técnica que ajuda muito os produtores a oferecerem sour ales equilibradas e complexas em escala comercial, pois permite combinar as características de lotes diferentes (aumentando as camadas de sabor e aroma) e esconder ou minimizar problemas que quase sempre aparecem na imprevisível maturação em madeira. A Wäls tem sido uma das poucas cervejarias a experimentar a blendagem de forma sistemática em suas cervejas ácidas. Até pouco tempo atrás, esses experimentos haviam ficado limitados aos poucos barris da fábrica da cervejaria, sem distribuição comercial. Em dezembro de 2014, isso mudou com o lançamento da Wäls Wild Ale EAP, resultante do blend entre uma dubbel ácida e uma dubbel “normal”, combinando o melhor de ambas.

Para quem não sabe, EAP é a sigla para o famoso Empório Alto dos Pinheiros, um dos mais tradicionais pontos de venda da Wäls aqui em São Paulo. A cerveja foi lançada num lote bastante limitado de apenas 1000 garrafas de 375ml. Segundo a cervejaria, a ideia teria se originado de uma encomenda de Paulo Almeida, proprietário do empório. Não falei a esse respeito nem com ele e nem com os irmãos Carneiro, da Wäls, mas tenho um palpite de como tudo aconteceu. Lá em torno de 2011, quando começaram a vir os chopes da Wäls para São Paulo, lembro-me de uma torneira de Wäls Dubbel, lá no EAP, que estava com problemas. A cerveja havia sofrido uma contaminação bacteriana (não sei se no barril ou na serpentina) e estava extremamente ácida. O Paulo Almeida me ofereceu um copo para eu provar, e eu me recordo vivamente de um comentário que ele fez na época: “Está azeda, mas está gostosa. Se eu oferecesse como uma sour ale, aposto como venderia!” OK, as palavras exatas podem não ter sido essas, mas você entendeu o espírito. Eis que, uns quatro anos depois, cá estamos nós com essa sour dubbel da Wäls feita por encomenda do Paulo.

Fonte: untappd.com
A cerveja foi produzida por um método curioso. Sua receita-base foi a medalhista Dubbel da cervejaria. Metade do lote fermentou e maturou durante 3 meses em tanques de aço inox, a temperatura de 0º C, enquanto a outra metade fermentou e maturou em barricas de carvalho durante 3 meses, ganhando acidez. As duas partes foram blendadas na proporção de 1:1 e engarrafadas, e depois passaram aproximadamente 4 anos evoluindo nas garrafas. A Wäls esperou o momento oportuno de lançar comercialmente esse blend, e a hora chegou agora, quando se vive um recrudescimento no interesse por sour ales no país. Há várias coisas interessantes a respeito da produção dessa cerveja. Em primeiro lugar, o fato de ela ter sido feita quando ainda poucos falavam em sour ales no Brasil. Em segundo lugar, o fato (até onde sei, inédito no Brasil) de uma cervejaria envelhecer suas cervejas na garrafa antes de comercializá-las, apresentando um produto que chega ao consumidor com claros sinais de evolução e envelhecimento. Em terceiro lugar – e aqui está o fato mais instigante da cerveja –, é curiosa a forma como se fez a acidificação da metade ácida do blend. Segundo José Felipe Carneiro, cervejeiro da Wäls, não houve adição ou inoculação deliberada de bactérias ou de leveduras do gênero Brettanomyces na fermentação da cerveja: a cerveja recebeu apenas o fermento comum da casa, com leveduras do gênero Saccharomyces. Em vez disso, as barricas de carvalho que maturaram metade do blend foram expostas à microflora local do entorno da cervejaria, adquirindo uma mistura de microorganismos que ocorrem na área, sem controle seletivo do cervejeiro. Quem já visitou a Wäls, em Belo Horizonte, sabe que a cervejaria se localiza num bairro arborizado, próximo ao Campus Pampulha da UFMG, área que propicia a reprodução da microflora no ar. Ou seja: a fermentação lática da Wäls Wild Ale EAP poderia ser chamada de “espontânea”, lembrando os métodos de produção das lambics belgas. Verdadeiramente uma “wild ale”.

Tanto a fermentação “semiespontânea” nas barricas quanto o envelhecimento na garrafa por 4 anos imprimiram sinais claros na cerveja, compondo um conjunto sui generis. Apesar de o método de produção não seguir nenhum estilo definido, o resultado lembra muito um raro estilo belga em decadência, denominado oud bruin ou Flanders brown ale (escrevi sobre elas aqui). A apresentação é caprichada, a começar pela garrafa embrulhada por uma folha de papel que faz as vezes de rótulo – como ocorre com muitas sours belgas tradicionais. Na taça, ela mantém a pose com uma bela coloração ameixa, transparente, e uma espuma farta. No aroma, um estranhamento inicial e muita complexidade que vai se revelando em camadas, com o tempo. O estranhamento é a ausência de sinais evidentes de Brettanomyces – nada daquele aroma animal característico, nem das frutas frescas. Pode-se imaginar que a microflora local da cervejaria talvez não inclua cepas de Brettanomyces. Na sequência, muita licorosidade de malte (caramelo aos montes, achocolatado) e frutas doces (maçãs ao forno, ameixas secas, cerejas ao marrasquino e mamão cristalizado). Lúpulo floral (ainda perceptível depois de tanto envelhecimento!) e toques terrosos e azedos são o contraponto aromático a toda essa doçura. Um perfil muito intenso e definido de evolução e oxidação evidencia claramente os quatro anos da longa maturação: muito vinho do Porto, amêndoas doces, suco de tomate e couro curtido, além de um toque um pouco incômodo de plástico. Na boca, a doçura licorosa predomina, mas há uma acidez bem perceptível e uma sensação salgada-carnuda de umami, típica de boas cervejas envelhecidas. Corpo mediano, terroso, com adstringência sem exagero. O final é um pouco inexpressivo – talvez seu ponto mais fraco. No conjunto, lembrou muito um clássico de guarda do estilo oud bruin: a belga Liefmans Goudenband (que está chegando ao Brasil muito em breve). Esta Wäls Wild Ale EAP consegue atingir o mesmo equilíbrio entre doce, licorosidade, evolução e acidez, mas com mais complexidade aromática. Não é uma sour ale muito agressiva – pelo contrário, a acidez é clara mas é secundária diante do perfil doce e licoroso da dubbel e da guarda. Não deverá assustar quem não está acostumado com a secura da maior parte das sour ales. Ótima receita da Wäls! Apesar das incertezas envolvendo a parceria entre Wäls e AmBev, fica a esperança de que a fusão não interfira na ousadia da micro mineira e a expectativa de que venha mais coisa selvagem bem feita! Uma vez que ela foi lançada apenas em dezembro e eu só consegui prová-la em janeiro, não deu tempo de incluí-la na minha retrospectiva de 2014, mas ela certamente mereceria um lugarzinho lá.

Um balanço – preliminar

O que dizer diante de todos esses lançamentos selvagens de 2014? Em primeiro lugar, parece claro que as cervejarias brasileiras estão começando a se aventurar no universo da selvageria. Mas qual o balanço desses primeiros passos? Como essas sete cervejas se enquadram diante dos três questionamentos com os quais eu comecei esta matéria (aceitação, preço e qualidade)?

No quesito da aceitação do público, as micros brasileiras parecem ir numa direção interessante. Dentre as quatro cervejarias indicadas, pareceu-me que apenas a Way apostou no lançamento de sour ales radicais, de acidez extrema. Em todas as demais, os traços selvagens são relativamente suaves, permitindo que o público se acostume progressivamente com a proposta. No caso das cervejas da Tupiniquim, o caráter de Bretta é quase imperceptível, sobretudo para um leigo, e quase não há acidez. A bem da verdade, as cervejas da Tupiniquim não são sour ales, apenas ales comuns com toques de Brettanomyces. No caso da Abadessa Gose, a acidez lática é sutil, muito equilibrada, dando origem a uma cerveja refrescante e apetitosa que não deverá incomodar o paladar de ninguém minimamente aberto a novas experiências. No caso da Wäls Wild Ale EAP, o perfil se aproxima muito das oud bruin, as mais suaves das cervejas selvagens belgas, com licorosidade o bastante para “disfarçar” a acidez. Ou seja: é um cenário em que, por enquanto, o consumidor relutante tem uma boa gama de opções, digamos, mais “conservadoras”.

No quesito do preço, o ano de 2014 nos autoriza um certo otimismo, mas eu tenho cá para mim que esse cenário vai mudar em 2015 e 2016. Os preços da Tupiniquim e da Abadessa ficaram na média dos demais rótulos das cervejarias. Os da Way ficaram apenas marginalmente acima. Claro que, nos três casos, estamos falando de estilos selvagens de fabricação mais simples, sem o uso de madeira e sem maturação estendida, o que ocasiona preços mais acessíveis. A exceção é a Wäls Wild AleEAP, que teve uma longuíssima maturação de 4 anos na garrafa e que empregou barris de carvalho durante 3 meses. Apesar disso, o preço não foi tão alto assim: R$ 30, o que representa menos de 50% acima da linha belga da cervejaria. Para mim, esse valor é razoável diante de uma cerveja com maturação tão longa e com uso de madeira.

Finalmente, resta o quesito qualidade. Fizemos boas sour ales no ano de 2014? Vejamos caso a caso, inicialmente. As cervejas da Tupiniquim são ótimas representantes de seus estilos de base (American IPA e saison), mas as características selvagens são um tanto tímidas, então elas não contam. A Abadessa Gose é sem dúvida uma cerveja produzida com excelência e com o elevado padrão de qualidade da Abadessa nos estilos alemães, mas seu “perfil selvagem” é bastante conservador, um pouco decepcionante para um “heavy user” de sour ales. A linha Sour me Not da Way é a mais ousada no quesito acidez, mas as cervejas da linha ainda têm algumas arestas importantes a aparar antes de poderem ser consideradas excelentes sour ales com frutas. Por fim, a Wäls obteve, na minha percepção, o melhor equilíbrio entre ousadia e qualidade. Sua Wild Ale EAP tem ousadia o bastante, mas também tem um caráter amigável, semelhante ao estilo oud bruin. Já ouvi a opinião de pessoas que se decepcionaram porque esperavam algo “mais selvagem”. Por outro lado, essa proposta é bem executada, complexa e interessante, talvez com mais destaque para o perfil de evolução do que para o selvagem, propriamente. E vale ainda destacar a surpreendente ousadia da Wäls em apostar na viabilidade de uma fermentação “semiespontânea” – o que, sinceramente, eu achei que demoraríamos muitos anos, quiçá décadas, para ver acontecer no Brasil. Resta saber como ficará toda essa ousadia agora que a Wäls é parte da gigante AB-InBev.

A verdade é que uma sour ale “completona”, ao mesmo tempo excelente e ousada – seca, com caráter exuberante de Brettanomyces, complexa e equilibrada como as melhores belgas – ainda é uma meta a ser atingida pela indústria nacional de cerveja. Mas tenhamos calma. O jogo está só começando e estamos nos primeiros lances da partida.